quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Manoel Barros (Poemas Rupestres) Parte VII, final


O COPO

Estava o jacaré na beira do brejo
tomando um copo de sol.
Foi o menino
E tascou uma pedra
No olho do jacaré.
O bicho soltou três urros
E quebrou o silêncio do lugar.
Os cacos do silêncio ficaram espalhados
na praia.
O copo de sol não rachou nem.

Uma metáfora sustenta a construção deste poema: ‘um jacaré tomando um copo de sol!'

Como sempre o infante mexeu com o jacaré e lhe tascou uma pedra no olho. Os urros do jacaré suscitaram a outra grande metáfora do poema: ‘quebrou o silêncio do lugar!' e os cacos do silêncio, para o menino ficaram espalhados na praia devido ao urros do jacaré ofendido no olho.

Mas a metáfora do poema persiste: ‘O copo de sol não rachou nem!”

Talvez o poema tenha surgido devido ao linguajar popular que afirma “estou tomando sol”. No poema o sol é servido no copo.

ARMÁRIO

O avô despencou do alto da escada aos
trambolhos.
Como um armário.
O armário quebrou três pernas.
O avô não teve nada.
Ué! armário não é só um termo de comparação?
Aqui em casa comparação também quebra perna.
O avô dementava as palavras.

Como no poema anterior, o poeta brinca com as palavras e com as possibilidades que existem nelas de as fazer significar. Com uma agilidade de criança usa de uma metáfora, como usara no poema anterior, com a palavra polissêmica maçã, com a palavra armário e com os jogos de linguagem com as pernas.

Como interlocutor aparece o avô que tem gosto inusitado de estar em lugares muito estranhos.

Ainda tem uma maneira especial de se relacionar com o processo metafórico, torna-o lúdico e lhe revela o caminho de adquirir outro significado, mas ironiza e cria outro sentido, outro processo, mais aberto: “Aqui em casa comparação também quebra perna.” Como o avô poderia ter quebrado a perna pelo tombo assim como o armário que, imaginariamente, teria despencado da escada e quebrado três pernas, somente como segundo termo de comparação, o que não aconteceu, pois o avô não quebrou a perna como o armário deveria ter quebrado três pernas.

Como conclusão: “O avô dementa as palavras.” Estas, quando nas mãos do avô despreendiam-se de seus significados comuns, enlouqueciam e passavam a indicar o inusitado. Esse avô tornou-se poderoso e bom mestre do poeta. Poesia ou poeta é aquele que enlouquece as palavras para fazê-las dizer ou significar algo fora do seu comum expressar.

Enlouquecer as palavras é tirar-lhes a lógica comum para assumir outros parâmetros de significação, principalmente para inaugurar sentidos e horizontes novos. Também para inaugurar poetas. Em outras palavras, o avô, o poeta, carnavaliza as palavras.

O CASACO

Um homem estava anoitecido.
Se sentia por dentro um trapo social.
Igual se, por fora, usasse um casaco rasgado
e sujo.
Tentou sair da angústia
Isto ser:
Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no
lixo.
Ele queria amanhecer.

Poema simples e extraordinário capaz de revelar as angústias humanas.

Com três metáforas básicas disseca a evolução interior do homem.

Entre os limites do paradoxo entre o anoitecer e o amanhecer, acontece o traçado da angústia de um homem.

No trajeto de sua história ele – “Se sentia por dentro um trapo social”. Maior desgaste ou estado lamentável não poderia haver.

Em seguida para descrever o estado de miséria interior, usa a metáfora do ‘casaco rasgado e sujo'.

A concepção do poeta coloca nele a capacidade de reagir e de suspirar por outros momentos, quer sair dessa situação. Então o homem “queria jogar o casaco rasgado e sujo no lixo.” Essa atitude do homem angustiado é o exato momento, situação ou realidade que o poeta quer expressar, quer colher com dignidade.

Angustiar-se e anela-se,r deixar o peso da angústia, querer sair do jugo da angústia é o instante ou momento que é aprofundado e retratado pelo poeta como a vontade de um nascimento, de um renovo. A força da vida e dos desejos de liberdade e tranqüilidade impele o homem para uma situação de dignidade ou de abertura. O instante da constatação do nascimento desse desejo é construído pelo poeta com um verso magistral que inaugura a vida, a força vital, a alma humana e seus anseios: “Ele queria amanhecer”.

“Amanhecer” é a grande metáfora de todos os inícios e de todas as situações de renovação e de todas as esperanças de renascimentos. Aqui, pelo contexto do poema o verso inaugura a força, mesmo humilde, do início de um desejo, de um princípio de querer renovar-se.

Por outro lado o verbo amanhecer, por sua natureza abre horizontes amplos e iluminados. Um homem que quer amanhecer, quer deixar o horizonte estreito e estrangulador de uma noite de angústia da alma.

Não poderia haver fecho mais poético que “Ele queria amanhecer”.

O OLHAR

Ele era um andarilho.
Ele tinha um olhar cheio de sol
de águas
de árvores
de aves.
Ao passar pela Aldeia
Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida.

O olhar como ponto de vista para se entender e entender o mundo ou os processos. Surge neste pequeno poema uma consideração pelo homem e por valores da vida a partir de um foco: o olhar.

Antes de tudo somente vê quem quer ver. Pode-se olhar para tudo e a nada se fixar ou adquirir uma ciência que passa pelos olhos para se enxergar e perceber as diversas dimensões da vida.

O olhar no poema surge pela metáfora do andarilho. O andarilho pode e deve em seu percurso ter pontos de vista bem diferentes. Não repete o ponto de partida para fixar a origem, o olhar e, concomitantemente, o sujeito do olhar. O andarilho varia constantemente seu ponto de vista e não se repete. Esse andarilho tem a propriedade de ter um olhar marcado pela liberdade do trajeto. De outra forma, o percurso do andarilho vai semeando-lhe pontos de vista para contemplar as paisagens. Uma vez escolhido o percurso determinam-se os pontos de vista do olhar. Porém, no poema, a denominação de andarilho está para a plena liberdade dos percursos. Andarilho combina com aquele que anda sem rumo fixo, determinado. Este é o ponto de vista do poeta que assim vai explicitando o olhar do andarilho.

Ele tinha um olhar cheio de sol
de águas
de árvores
de aves.

Constata-se que o andarilho tinha um olhar de amplidão; fixava-se em horizontes vastos e nunca repetidos: o sol marca sua trajetória pelo movimento contínuo (Nosso), as águas não se repetem, mesmo quando em estado de lagoas ou represadas; as árvores estão aí mas variam, e finalmente as aves que não repetem os seus vôos. Assim tudo pode ser diferente a cada momento: o sol visto por entremeio das nuvens ou com céu límpido; as águas em seus movimentos que inventam até sons e as aves que não deixam rastros.

Elementos que determinam uma qualidade vital para a variabilidade da vida, a liberdade para se construir e inventar.

Tudo o que é muito poderoso e definitivo ou definido já dominou o seu horizonte, não poderá ver como o andarilho aprendeu a ver. O poder e as certezas estabelecidas impedem a simplicidade para se recriar ou mudar de lugar, do ponto de vista para se ver e ver a realidade. No andarilho as possibilidades foram incorporadas a ponto de o poeta afirmar que o seu olhar tinha os pontos de vista do sol, das águas, das árvores e das aves. Nem sequer deixou de ser pessoa ao incorporar as visões de outras perspectivas, simplesmente ampliou a sua liberdade.

O preço de sua liberdade foi o julgamento dos “outros” que se fixam – o desapego era evidente ou notável a ponto de “Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos”. Logicamente aqui para expressar a abrangência desse estado de liberdade, nem sequer necessita de proteção da roupa. Uns simples trapos compõem sua liberdade. Trapos aqui não para dizer o empobrecido, mas o ampliado.

Por fim o poeta conclui: “O silêncio honrava a sua vida”.
O comedimento de quem descobriu a simplicidade e não se põe a julgar. Somente pode assumir o silêncio como experiência do aprendizado e do aprofundamento. As descobertas são tantas que a possibilidade de outras tantas leva-o a esperá-las, a estar comedido em seu olhar que lhe oferece a simplicidade como valor e parâmetro. Acredita que todos estejam iluminados em suas liberdades para integrarem as inaugurações que o mundo e a vida lhes oferecem.

De forma inequívoca o silêncio deveria ser a aura de sua liberdade, de seus pontos de vista inaugurados com simplicidade e sabedoria. Nem todos estão preparados para abrir mão do poder, até o poeta que se admirou do andarilho.

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Nota do Blog: Alguns poemas do livro foram propositalmente não incluidas nestas análises por serem de teor erótico, o que estaria ferindo os objetivos deste blog.

Fonte:
Portal das Letras - Pe. Afonso de Castro
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/p/poemas_rupestres

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