O LAMBE-LAMBE
O lambe-lambe lambe o tempo
(como se o tempo fosse
uma bala, um doce)
e vai pregando seus retratos.
No canto da praça
um velho, um menino,
lado a lado
o mesmo desbotado sorriso.
Atrás do pano preto
o lambe-lambe
e seus misteriosos pensamentos:
onde foi parar a moça
que ele fotografou um dia?
A moça rasgou seu coração
como uma velha fotografia
e partiu junto com o vento.
Num canto da praça
o lambe-lambe
e sua estranha galeria.
O MÉDICO
Para o médico, o corpo
não tem segredos:
é como uma fábrica,
uma orquestra,
uma casa com os móveis
todos no lugar.
O sangue corre nas veias
como um disciplinado rio.
O pulso bate com precisão,
afiado relógio marcando a vida.
Se alguma coisa se move
erradamente,
se alguma coisa se quebra,
o médico bota o corpo de castigo,
e vai escrevendo receitas
como cartas que o corpo entendesse.
A RENDEIRA
A rendeira... seu ofício de aranha
tecendo beleza
me ajuda a tecer meus poemas.
Tem mãos de maga,
a rendeira,
tem mãos de espuma.
Não assina seu trabalho
com um nome,
mas com magia,
como um vôo de pássaro
assina o céu.
O VENDEDOR DE COCADA
Lá vai o vendedor de cocada
com seu tabuleiro,
pano branco na cabeça.
Lá vai o vendedor de cocada
vendendo um mundo de coco:
cocada branca ou queimada
pra vida ficar mais gostosa.
Lá vai o vendedor,
tabuleiro na cabeça,
adoçando a calçada.
A ARQUITETA
A arquiteta gostaria
de projetar mil casas
por dia,
aéreas, subterrâneas,
casas de vidro e de paina,
redondas, de esvoaçantes
telhados.
Em frente à prancheta
a arquiteta sonha
o justo sonho
de todo mundo ter
onde morar.
OS CATADORES DE PAPEL
Pela cidade afora,
noite ou dia,
a qualquer hora,
os catadores de papel
são triste paisagem.
Vão juntando papel e pobreza,
moram assim,
nas praças, nos vãos,
em casa feita de nada.
Tenho tanta pena
dos catadores de papel,
agora moram aqui,
no meu poema.
OS MÚSICOS
Na casa dos músicos
as paredes são sonoras,
no teto moram acordes,
e nos vãos sustenidos se escondem.
Os pensamentos dos músicos
não são como os pensamentos comuns,
moram em outras altíssimas esferas.
Para nós, os outros,
eles constroem algodoados
caminhos de sons.
Para que nossa vida
fique mais leve,
fique mais bela.
A ATRIZ
No camarim a atriz
cola uma outra alma
na sua,
um outro rosto
no seu,
e vão pro palco
assim tão grudados,
que é como um rio
navegando em outro
rio.
O palco suspenso
por um fio de magia
é a casa da atriz.
A BAILARINA
A bailarina,
como frágil lamparina,
como pequeno colar,
faz do ar sua casa,
sua estrada pontilhada
de água.
Entre uma estrela e outra
a bailarina descansa.
Ali onde os humanos
não podem ir,
só os loucos, os loucos
e os que sabem
que com um desejo
se constrói um planeta.
O PESCADOR
Os sonhos do pescador
são feitos de espuma, de sal,
de muitos milhares de peixes,
como feixes de girassol.
Na rede do pescador
pedaços de luz e de prata,
seus sonhos materializados.
Em terra firme o pescador
é habitante provisório,
anda meio de lado,
cheio de silêncios marinhos,
suas mãos de alga.
AS FEITICEIRAS
Não sei se existe ainda
o ofício de feiticeira,
isso é coisa medieval.
Naqueles tempos
elas eram lenha de fogueira
com seus ardentes pensamentos.
Queria hoje ser uma delas,
virar tudo pelo avesso,
trocar as almas e os corações.
Fazer por um segundo
deste triste planeta
um outro mundo.
OS CARTEIROS
Abrir uma carta,
o coração batendo,
é precioso ritual.
O que terá dentro?
Um convite, um aviso,
uma palavra de amor
que atravessou oceanos
para sussurrar em meu ouvido?
São como conchas as cartas,
guardam o barulho do mar,
o ar das montanhas.
Para mim os carteiros
são quase sagrados,
unicórnios ou magos
no meio dessa vida barulhenta.
O POETA
O poeta vai tirando da vida
os seus poemas
como pássaros desobedientes
e amestrados.
A palavra é o seu castelo,
sua árvore encantada,
abracadabra construindo o universo.
RECEITA CONTRA DOR DE AMOR
Chore um mar inteiro
com todos os seus barcos a vela
chore o céu e suas estrelas
os seus mistérios o seu silêncio
chore um equilibrista caminhando
sobre a face de um poema
chore o sol e a lua
a chuva e o vento
para que uma nova semente
entre pela janela a dentro
RECEITA DE ACORDAR PALAVRAS
Palavras são como estrelas
facas ou flores
elas têm raízes pétalas espinhos
são lisas ásperas leves ou densas
para acordá-las basta um sopro
em sua alma
e como pássaros
vão encontrar seu caminho
RECEITA DE INVENTAR PRESENTES
Colher braçadas de flores
bambus folhas e ventos
e as sete cores do arco-íris
quando pousam no horizonte
juntar tudo por um instante
num caldeirão de magia
e então inventar um pássaro louco
um novo passo de dança
uma caixa de poesia
RECEITA DE PÃO
É coisa muito antiga
o ofício do pão
primeiro misture o fermento
com água morna e açúcar
e deixe crescer ao sol
depois numa vasilha
derrame a farinha e o sal
óleo de girassol manjericão
adicionado o fermento
vá dando o ponto com calma
água morna e farinha
mas o pão tem seus mistérios
na sua feitura há que entrar
um pouco da alma do que é etéreo
então estique a massa
enrole numa trança
e deixe que descanse
que o tempo faça a sua dança
asse em forno forte
até que o perfume do pão
se espalhe pela casa e pela vida
RECEITA DE TOCAR O OUTRO
Porteira aberta
para o universo cada
um é único
lugar sagrado
onde árvores antigas
e estrelas cantam
tocar o outro
em sua alma
como se fosse
uma flauta
RECEITA DE OLHAR O FOGO
Pula o fogo e dança
nos olhos
uma dança muito antiga
de rios caçadas cavernas
estrelas entrelaçadas
no fogo os pensamentos
se derramam
e os sonhos como poeira mágica
RECEITA DE ESPANTAR A TRISTEZA
Faça uma careta
e mande a tristeza
pra longe pro outro lado
do mar ou da lua
vá para o meio da rua
e plante bananeira
faça alguma besteira
depois estique os braços
apanhe a primeira estrela
e procure o melhor amigo
para um longo e apertado abraço
RECEITA DE OLHAR
Nas primeiras horas da manhã
desamarre o olhar
deixe que se derrame
sobre todas as coisas belas
o mundo é sempre novo
e a terra dança e acorda
em acordes de sol
faça do seu olhar imensa caravela
AMOR NÃO É SÓ
Amor não é só de homem
por uma mulher
ou de mulher por um homem
amor é amor por tudo
que é justo e livre
amor é horror a tudo
que o ser inventa
para humilhar outro ser
AMOR À PRIMEIRA VISTA
Amor à primeira vista
é alma trocando de corpo
feito pássaro de ninho
é sede repentina
sede da água do outro
PEQUENOS LUXOS
Amor tem seus pequenos luxos
um pôr-de-sol caprichado
luar derramando água
uma flor recém-colhida
um verso equilibrado
na ponta dos dedos
amor tem seus pequenos luxos
de planta nascendo ontem
pedindo terra adubada
FOLHA SECA
Amor não correspondido
vai virando tudo em deserto
vai calando a voz do mundo
vai tirando da água a sua nascente
amor não correspondido
vai tornando em folha seca
tudo o que toca com os dedos
até perder seus espinhos
e se deixar morrer nos vãos
de uma tarde qualquer
FRUTA NO PONTO
Às vezes dá vontade
de agarrar a vida
com uma duas
dez mãos
e levar à boca
e trincar nos dentes
como uma fruta
no ponto
BANHO-MARIA
Amor não deve ser mantido
em banho-maria
pois seus poderes
de luz e encantamento
se esvaem neste lento
cozinhar
amor pede fogo alto
grossas chamas
sol intenso
e muita pimenta
amor pede tempero forte
pede tudo em exagero
mel de se lambuzar
O PRIMEIRO BEIJO
O primeiro beijo
inaugura a casa
inaugura o corpo
talha a primeira pedra
do caminho
pode e deve ser doce
abelha inventando mel
pode e deve ser louco
doce vôo louco
no corpo do outro
RECADO
Ao vento da noite
sussurro sete segredos:
tudo que tenho por fora
tudo que tenho por dentro
que o vento vá levando
minha sede de amor
pule cercas pule sebes
abra porteiras no mar
derramando meu recado
nos quatro cantos do ar
Fonte:
Murray, Roseana. A bailarina e outros poemas. 1. ed. - São Paulo : FTD, 2001. (Coleção literatura em minha casa ; v. 1)
Murray, Roseana. A bailarina e outros poemas. 1. ed. - São Paulo : FTD, 2001. (Coleção literatura em minha casa ; v. 1)
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