sábado, 8 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 342

 

Baú de Trovas XII


Pelo destino ligados
enfrentando as mesmas lidas,
ainda somos namorados
no final de nossas vidas!
ADALBERTO DUTRA DE REZENDE
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Alguém, com mão distraída,
te prende os louros cabelos,
— e eu dava um terço da vida
pela emoção de prendê-los!
ADELINO MOREIRA MARQUES
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Para matar as saudades,
fui ver-te em ânsias, correndo...
— E eu, que fui matar saudades,
vim de saudades morrendo.
ADELMAR TAVARES
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Alma gêmea de minha alma,
não me tortures assim,
pois, de toda a sua calma,
não tenho a metade em mim!
ADOLFO MACEDO
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Não quero mais os teus beijos
assim dados por favor,
— Eles matam meus desejos,
mas ofendem meu amor...
AGMAR MURGEL DUTRA
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Não lastimo, não deploro
minha vida acidentada;
tu me queres, eu te adoro,
não preciso de mais nada.
ALBANO LOPES DE ALMEIDA
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Se saber te fosse dado
a razão da minha dor,
talvez    houvesses deixado
na ilusão do meu amor!
ALBERTO NAVARRO DE MIRANDA
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Tu és o eterno motivo
do meu sonho embriagador:
se por teu amor eu vivo,
vivo morrendo de amor!
ALTEVIR ALENCAR
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Amor! Como dói lembrá-lo,
esse tempo em que te amei!
— Como é triste ser vassalo
na terra em que se foi rei!
ALTINO MORAES
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Tal como o sol aparece
dissipando a cerração,
um grande amor desvanece
mágoas do coração.
APARÍCIO FERNANDES
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Ao seu amado não ande
cobrando mínimas penas...
— O amor verdadeiro é grande
até nas coisas pequenas!
BALTHAZAR DE GODOY MOREIRA
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A morte passou por mim,
maldade assim ninguém diz!
— Não me levou, mas levou
quem me fazia feliz.
CELINA FERREIRA
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Surges entre grandes almas
E deslumbras, meu amor!
Quando te vi, bati palmas,
aplaudindo o Criador!
GABRIEL VANDÔNI DE BARROS
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Eu choro a ilusão perdida,
com infinito amargor.
— De que me vale esta vida,
se não tenho o teu amor?
HILDA KOLLER
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Tua ternura, criança,
contagia o meu viver.
Parece até que a esperança
vai parar meu padecer…
MARIA FONSECA
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Que grande surpresa eu tive,
dos teus carinhos no ardor,
sentindo quanto se vive
quando se morre de amor!
MÁRIO BRAGA
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O tempo tudo consome:
— tristeza, queixume e dor…
Só não desfaz o teu nome
da minha história de amor!
MÁRIO R. BARRETO
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Não é o mistério da morte
que me envolve de pavor.
Ê a grande falta de sorte
de não possuir teu amor!
NOEL BERGAMINI
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De esperar a minha amada
a minha alma não se cansa,
pois até quem não tem nada
tem ainda a esperança...
NOEL ROSA
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Quem cai também se levanta,
diz assim velho ditado.
— Deixe eu cair, minha santa,
no seu colo perfumado…
ORILO DANTAS
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Menina, pelo que vejo,
não podes avaliar
o tresloucado desejo
que eu tenho de te beijar!
PEDRO PEIXOTO DE AGUIAR
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O mar é triste — eu sou triste.
Ele soluça – eu também.
Por ele um dia partiste
e eu nunca mais quis ninguém!...
RENÉ CHAMUSCA
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Falo de amor, achas graça
e ris da minha paixão.
Sempre rirás da desgraça
que aflige o meu coração?
ROBERTO BELO DE PAULA
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Fui buscar felicidade
Tão longe,,. não sei porque!
Hoje eu sei que, na verdade,
felicidade é você!
ROSE GAMA
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Toda ventura é pequena,
Neste mundo enganador.
E a vida só vale a pena
pelos momentos de amor!
RUBENS DE CASTRO
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Que ando de amores contigo
Dizem s!, na cidade;
e eu guardo a mágoa comigo
de não ser isto verdade...
SADY MAURENTE
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Fecha bem tua janela
quando te fores deitar.
— No quarto de uma donzela
nem a lua deve entrar!
SALOMÃO JORGE
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No deserto que me oprime,
— beduíno da ilusão —
és a miragem sublime
que me deslumbra a visão.
ULYSSES LINS
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Tanto tempo a mendigar
um pouco de sentimento,
e sem poder alcançar
o que pede o pensamento!...
VIRGÍNIA MADEIRA
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Amo-te tanto, querida,
que estremeço ao imaginar:
que será de minha vida,
se você me abandonar?
WALMIR COELHO
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Amor, és mago sagrado.
escravo e dominador!...
E eu te amando e sendo amado
sou teu escravo e senhor!
ZÉLIO BENEVIDES
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Eu canto em trovas, Senhor,
a festa que trago em mim,
porque só quem sente o amor
é feliz e canta assim…
ZOLACHIO DINIZ
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Nas minhas horas de enlevo,
a desfilar emoções,
invejo as folhas de trevo,
feitas com três corações.
ZULEIKA HALLAIS WALSH

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

E. Campel (A Lenda da Pedra Azul)


O menino dormia sozinho, como sempre vivia. Naquele    lugar tudo era diferente. O céu estava sempre estrelado, que fazia a noite parecer dia. De repente tudo era um paraíso. As crianças viviam felizes e sorrindo, contagiadas pelo lindo azul do céu e encantadas diante da aurora boreal.

A noite tinha sempre um brilho como o dourado do sol. Naquele lugar fascinante, como de costume, aquele menino sempre sonhava. De repente uma porta se abriu! Ao mesmo tempo uma folha voava! O ar transformava suas palavras ao tentar se expressar. Na direção em que o vento soprava, um montinho de terra se formava, muito brilhante.

O menino, mesmo de olhos fechados, quase dormindo, queria se levantar e caminhar, para onde o vento levava aquela folha mais distante. O vento ressoava fazendo um zumbido que o assustava. E também ouvia um sussurro que entoava diferente. Parecia um assobio, mas na verdade era alguém chamando pelo seu nome. Pietrus! Pietrus! Pietrus da pedra azul! E ao mesmo tempo dizia: abra os olhos e olhe na direção daquela intensa luz! O menino não conseguia enxergar diante dos feixes de luz do espectro azul.

Logo em seguida, o menino percebeu que estava sonhando. Acordou assustado procurando pela pedra azul do sonho. Recordou-se que antes de dormir, teria prometido aos seus amiguinhos, que acharia a pedra azul em um lago próximo a sua casa.

Na realidade era a pedra azul de uma lenda, que um dia ele teria ouvido alguém contar. Na imaginação de Pietrus, recordava-se de outros sonhos de criança. Vinha numa lembrança que o contagiava, motivando-lhe a cumprir o que teria prometido em dias anteriores. Algo lhe cobrava encontrar a pedra azul, que segundo a lenda, quem a encontrasse teria um grande poder.

Como um despertar diferente!

O poder pelo encontro ou achado capaz de transformar tudo que desejasse. Assim, Pietrus ficou sentindo-se irradiado com tantas energias de encanto que não sabia explicar. Na verdade, não deveria nada temer e sim ser sempre corajoso.

Foi então que decidiu procurar a pedra azul do seu sonho, tomou coragem e seguiu o rio. em direção da forte luz. Lá chegando, recordou-se que era o lugar que sonhava. Onde somente existia alegria radiante pelo brilho do sol.    

Depois de muito dormir naquele lindo lugar, depois de muito sonhar, um novo dia começava diferente para o menino que desejava achar a pedra azul. Só existiam certeza e coragem para aquele menino, mesmo ainda, tão jovem. Desde o dia que sonhara caminhando na direção do espectro azul, os pássaros cantavam uma melodia suave. Cuidavam dos seus ninhos com muito amor. A alegria franzia a testa do menino admirado. Como conseguia avançar na direção dessa luz? O que mais seria um sonho, agora se tornava realidade.

Era o lugar do sonho que ele tanto esperava encontrar. Aos poucos, o ar ficava rarefeito, caíam granizos e fazia muito frio. Ao mesmo tempo, a temperatura tornava-se mais amena. Um clima aconchegante modificava aquele novo lugar. Tudo se confundia como uma magia de encanto, que até parecia que nada era de verdade. E um medo começava a arrepiar Pietrus, que pensava em voz alta.

- Estou sentindo a força de um pássaro. E agora, terei de voar para ultrapassar a corrente do rio!

Na mente de Pietrus parecia existir um poder diferente! Ter toda a coragem que pensava sem nada hesitar.

Mais uma vez, o vento soprava diferente. Embora na direção de Pietrus os granizos não lhe atingiam. Estava agora diante de uma correnteza muito forte, mas avistava no fundo do rio a linda pedra azul. A pedra azul do sonho!

Tinha um brilho tão especial que sinalizava como um ponto mágico! Uma corrente circular se formava transformando-se num redemoinho! Pietrus ficou sem se mexer por alguns instantes! Não sabia se deveria seguir. Ao mesmo tempo, tinha a certeza da sua coragem. Sentia ter um poder em suas mãos. Um poder tão imenso que não imaginava, ao pegar na pedra azul. Lembrou-se que a sua coragem e persistência no que seu sonho trazia, resplandecia numa imensa beleza e satisfação, ao ter a esperança de realizá-lo.

Trazendo um novo encanto com aquela história, vinda da lenda da pedra azul, contava que a coragem deveria existir para certeza da vida. Ensinou para aquele menino que, com o amor, tudo de bom poderia acontecer.

Assim, com muita alegria foi com a pedra azul levar para os seus amiguinhos, a mensagem trazida pela lenda da pedra azul. Este enigma da lenda da pedra azul lhe concedeu desde o seu nascer o título de nobreza, trazido em seu próprio nome sem mesmo, querer.

Fonte:
Rozelia Scheifler Rasia, Alba Pires Ferreira, Ilda Maria Costa Brasil (org.). Coletânea Enigmas. Porto Alegre/RS: Alternativa, 2012.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 341

 

Francisca Júlia (O Maníaco)


Viam-no sempre por montes e vales, exposto à chuva que lhe encharcava as roupas, ou ao sol que lhe queimava a pele, curvado, com os olhos fixos no chão, como quem procura um objeto perdido.

Na primavera, quando os rosais da cerca estavam floridos, os campos verdes e os passarinhos alegres, cruzando-se no ar numa revoada feliz, o pobre rapaz passava, atravessava as campinas, subia as montanhas, indiferente à beleza da paisagem, os cabelos voando ao vento.

Quando se sentia muito fatigado, sentava-se na ponta de uma pedra e adormecia.

Alimentava-se de frutas silvestres, bebia água á nascente dos ribeiros, e, à noite, abrigava-se debaixo de uma árvore ou no fundo de uma gruta, como um animal selvagem.

Um camponês, que o conhecia, chamou-o um dia e perguntou- lhe com curiosidade:

— Ó rapaz! que é que andas fazendo pelos campos e bosques, todos os dias, exposto ao sol e à chuva?

— Procurando tesouros.

— E tens alguma esperança de acha-los?

— Sim, afirmou o moço com convicção, correndo os olhos pela extensão das campinas.

— É melhor, disse o campônio em tom de conselho, que mudes de vida; tu, nesta faina de procurar tesouros, tornas-te um homem completamente inútil, inapto para o trabalho. É melhor, pois, que te esqueças dos tesouros, que os não há, e procures outro gênero de vida em que aproveites a tua inteligência e o teu trabalho.

— Não, disse o maníaco, se há muitos anos dediquei minha existência à procura de tesouros, é porque tenho certeza de encontrá-los.

— Mas como?

— Uma noite, era eu pequeno ainda, estando adormecido em meu leito, apareceu-me uma fada em sonho, que me falou mais ou menos assim: "Tu estás destinado pela sorte a ser o homem mais rico do mundo, e cuja fortuna te facilitará os meios de vencer os maiores soberanos da terra, de conquistar reinos e mares e dominar sobre tudo com o poder do teu cetro. Legiões inteiras de soldados, vestidos de couraças e armados de lanças, te acompanharão nas conquistas; sobre os mares terás navios embandeirados, infindáveis domínios em terra, e um exército de lacaios, ricamente vestidos, que se hão de curvar, submissos, á voz do teu mando. Para isso, porém, é necessário que, logo que fiques homem, vás por campos e montanhas, planícies e vales, sem medo às tempestades nem às noites, em procura de um incalculável tesouro que a sorte destinou para enriquecer-te". Assim me disse a boa fada, com uma voz firme e segura, inspirada pela fatalidade do Destino.

Hoje sou um homem; cumpre-me obedecer-lhe; e, enquanto não encontrar a fortuna que se acumulou para o meu gozo, irei caminhando sempre, mundo fora, os olhos no chão, as roupas apodrecidas de uso, como um mendigo de estrada.

Dito isto, levantou-se, passeou a vista em torno, curvou a cabeça e partiu.

A noite tinha cabido. A lua, muito clara, apareceu entre as nuvens e inundou os campos com sua luz argêntea.

O maníaco foi seguindo.

"Infeliz rapaz!" pensou piedoso o camponês, acompanhando-o com os olhos. Quantos também não há no mundo que atravessam uma existência inútil, tão inútil talvez como esta, incapazes de trabalhar, esperando que a felicidade os venha procurar no sonho, como este louco que pensa encontrá-la no solo.

Fonte:
O Poeteiro

Manuel de Arriaga (Poemas Avulsos)

A CRUZ E O PARA-RAIOS

      Da velha catedral, esbelta e rendilhada,
      Votada a ser mansão do Deus, autor do mundo,
      Na flecha a mais gentil, campeia abençoada
      A cruz do Redentor, da Galileia o oriundo!

      Nos ímpetos da fé, cortantes como a espada,
      O ungido do Senhor, d'olhar cavo e iracundo,
      Aponta á multidão, humilde e ajoelhada,
      Por seu supremo amparo a cruz, no azul profundo!

      Em nome dela exalta a fé porque a aviventa,
      E diz mal da razão que tenta, em vãos ensaios,
      Dos céus arrebatar a luz, de que é sedenta!

      Mas do alto onde ela está, que causa até desmaios,
      Temendo que a derrube o fogo da tormenta:
      Em nome da Razão lhe põe um para-raios!...
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ALVORADA


      Algures brilha o sol no azul do firmamento,
      E expõe com resplendor das coisas o espetáculo!
      Aqui, na escuridão, o mundo é tabernáculo
      Onde os frágeis mortais descansam um momento!...

      Além, o Sol incita o mundo ao movimento,
      Á luta pela Vida, o esteio e o sustentáculo
      Desde o ser da Razão ao mínimo animáculo,
      Aqui, o sono esparsa em todos novo alento!

      Ó Luz! tu és do mundo a Força, a Alma, a Vida,
      A essência do meu Ser, a minha própria Ideia,
      O próprio Deus, talvez!... Beleza, Amor, Verdade!

      Atrás de Ti caminha a Terra, mãe querida!
      Bendito caminhar! Por Ti minha alma anseia!...
      Bem vinda sejas, pois, oh doce claridade!
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AMOR E PROVIDÊNCIA


      Enquanto eu, alta noite, velo e lido,
      Por vós mantendo inúmeros cuidados,
      Dormis, caros filhinhos, sossegados
      Em torno a mim o sonho apetecido!

      Dormis?! sonhais de certo... e eu pai envido
      Meus esforços por ver realizados
      Vossos sonhos gentis e perfumados:
      Ampara-vos um peito estremecido.

      Outro Alguém faz por nós o que eu vos faço:
      Com suprema bondade e sapiência,
      Rege os mundos que rolam pelo espaço!

      Esse Alguém é o Amor por excelência,
      O formidável e invisível braço,
      E o olhar que nunca dorme – a Providência!
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MUNDO INTERIOR

      Matéria ou Força, Lei ou Divindade
      Quem quer que seja que dirige o mundo,
      Esparsa em tudo o espírito fecundo
      Do Sumo Bem – Beleza, Amor, Verdade.

      À luz desta Santíssima Trindade,
      Cercado d'esplendor, clamo e jucundo,
      Sorri-me em volta o universo; ao fundo,
      Por síntese Suprema, a Humanidade!

      Dos homens rujam temporais medonhos...
      Que em mim, no meu labor, do Bem sedento,
      Meus dias correm límpidos, risonhos!

      Estrelas que brilhais no firmamento!
      É menos bela a vossa luz que os sonhos
      Que gera na minha alma o Pensamento!
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O QUE EU VI


Saí um dia a contemplar o mundo,
Por ver quanto há de belo e quanto brilha
Na múltipla e gloriosa maravilha,
Que anda suspensa em o azul profundo!

Vi montes, vales, árvores e flores,
Límpidas aguas, múrmuras torrentes,
Do grande mar as músicas plangentes,
Dos céus sem fim os trêmulos fulgores!

Trouxe os olhos tão ricos de beleza,
O coração tão cheio de harmonia,
De quanto havia em terra, mar e céus,

Que interpretando a sós a Natureza:
Dentro de mim esplêndido fulgia,
Num circulo de luz, teu nome, oh Deus!

Fonte:
Manoel D'Arriaga. Cantos Sagrados. Lisboa/Portugal: Manoel Gomes, 1899.

Manuel de Arriaga (1840 – 1917)

Manuel José de Arriaga Brum da Silveira e Peyrelongue nasceu em Horta, Açores, Portugal, 8 de julho de 1840 e faleceu em Lisboa, 5 de março de 1917.

Manuel de Arriaga nasceu na casa do Arco, na freguesia da Matriz, cidade da Horta, ilha do Faial, filho de Sebastião José de Arriaga Brum da Silveira e da sua esposa Maria Cristina Pardal Ramos Caldeira. Pertencente à melhor sociedade faialense, o pai era um dos mais ricos comerciantes da cidade, último administrador do morgadio familiar e grande proprietário. Foi neto do general Sebastião José de Arriaga Brum da Silveira, que se distinguira na Guerra Peninsular, e sobrinho-neto do desembargador Manuel José de Arriaga Brum da Silveira, que em 1821 e 1822 fora deputado pelos Açores às Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa.

Depois de concluídos os estudos preparatórios na cidade da Horta, em 1860 matriculou-se no curso de direito da Universidade de Coimbra. Em Coimbra cedo se revelou um aluno brilhante e um orador notável. Aderiu ao positivismo filosófico e ao republicanismo democrático, passando a ser frequentador assíduo das tertúlias filosóficas e políticas, onde se destacava pela sua verve e capacidade argumentativa.

Esta adesão ao ideário republicano, então considerado subversivo, levou a que o pai, monárquico conservador com laivos miguelistas, cortasse relações com o filho, proibindo-lhe o regresso a casa. Nessas circunstâncias foi obrigado a trabalhar para sustentar os seus estudos, e os do irmão, igualmente proscrito pelo pai por adesão a ideologias subversivas. Lecionava inglês como professor particular, aproveitando os bons conhecimentos daquela língua que adquirira na Horta com a preceptora americana contratada pela sua família.

Formou-se no ano de 1865 e no ano seguinte abriu um escritório de advocacia em Lisboa, cidade onde se fixou. Não tendo conseguido ingressar na docência, rapidamente se notabilizou como advogado, ganhando uma carteira de clientes que lhe permitia segurança financeira e os meios para ajudar o irmão a terminar os seus estudos.

Também se revelou, desde os seus tempos de Coimbra, cultor da poesia e da literatura, tendo mantido até ao fim da sua vida uma atividade literária e interesses culturais que o integram claramente na Geração de 70.

Já advogado de renome em Lisboa, em 18 de maio de 1871 foi um dos doze signatários do programa das conferências democráticas do casino Lisbonense. Tornou-se membro destacado da geração doutrinária do republicanismo português, afirmando-se como um dos seus principais ideólogos. Afirmava-se partidário entusiasta da democracia, tendo sempre militado no republicanismo unitário e democrático, rejeitando o anticlericalismo e o jacobinismo que marcavam a corrente dominante do republicanismo português daquela época.

Casou em Valença com Lucrécia Augusta Brito de Berredo Furtado de Melo, filha do general Roque Francisco Furtado de Melo, natural da ilha do Pico, que fora comandante da sub-divisão militar da Horta e governador do Castelo de São João Baptista do Monte Brasil em Angra do Heroísmo. Deste casamento nasceram quatro filhas e dois filhos.

Em 26 de agosto de 1876 foi nomeado para a Comissão para a Reforma da Instrução Secundária, sendo este o primeiro cargo público que exerceu.

Em 1878 concorreu para o lugar de professor de História Universal e Pátria do Curso Superior de Letras, mas voltou a ser preterido, apesar do brilhantismo da dissertação que apresentou a concurso. Apesar de ser considerado um gentleman e de vestir à melhor moda da aristocracia do tempo, a sua fama de revolucionário não deixou certamente de influir sobre o júri. Acabaria por conseguir um lugar de professor de inglês do Liceu de Lisboa, cargo que manteria por largos anos.

Nesse mesmo ano de 1878, concorreu pela primeira vez a um lugar de deputado nas Cortes, integrando a lista republicana candidata a um dos círculo eleitorais da cidade de Lisboa (o círculo n.º 96). Apesar da forte campanha que conduziu, foi largamente derrotado, obtendo apenas 456 votos, contra os 1 086 sufrágios do vencedor.

Em 1881 faleceu o seu pai, herdando os bens familiares no Faial e no Pico, já que o seu irmão mais velho, Sebastião de Arriaga, falecera precocemente em 1875. Nesse mesmo ano empenhou-se novamente na campanha republicana para as eleições gerais de 21 de Agosto (24.ª legislatura), sendo novamente candidato por um dos círculos de Lisboa, no qual voltou a ser derrotado.

Em 26 de novembro de 1882, numas eleições suplementares, foi finalmente eleito deputado republicano pelo círculo da Madeira. Esta vitória eleitoral deveu-se a um conjunto de circunstâncias que beneficiaram a sua candidatura: apresentara-se a convite de uma comissão de comerciantes e industriais funchalenses, desiludidos com os partidos do rotativismo, beneficiando da ausência de um candidato do Partido Regenerador. Foi proclamado deputado a 8 de Janeiro de 1883, prestando juramento dois dias depois. Foi o segundo republicano a tomar assento no parlamento português, juntando-se no parlamento a José Elias Garcia, que ali tinha assento desde 1881.

Manuel de Arriaga iniciou o seu percurso parlamentar apresentando de imediato uma proposta que visava eliminar o juramento de fidelidade ao rei e à Carta Constitucional a que estavam obrigados os parlamentares, proposta que obviamente foi de imediato rejeitada. Apresentou durante o ano de 1883 diversas propostas legislativas, todas sem sucesso. Durante estes dois anos no Parlamento renunciou ao seu vencimento como professor liceal, recebendo apenas o subsídio parlamentar a que tinham direito os deputados. Terminado o mandato, não foi reeleito.

Na sua ação como deputado, e mesmo não conseguindo fazer parte de qualquer comissão parlamentar, distinguiu-se pela pertinência das suas intervenções e posições e pela fineza do seu trato. Demonstrando elevados dotes intelectuais e uma cultura superior, aliava a uma oratória brilhante uma grande combatividade política e um elevado rigor ético.

No Partido Republicano Português, o prestígio que conquistara nas Cortes e a sua capacidade intelectual guindaram-no para uma posição preponderante, que manteve entre 1883 e 1892. Revelando-se um orador distinto e tendo dado um forte contributo para a estruturação do partido, foi autor de algumas das suas normas estatutárias e doutrinárias. A partir de 31 de Dezembro de 1891 integrou, com Jacinto Nunes, Azevedo e Silva, Bernardino Pinheiro, Teófilo Braga e Francisco Homem Cristo, o diretório do partidário durante o período da sua estruturação.

Foi também vereador republicano da Câmara Municipal de Lisboa.

Nas eleições gerais de 20 de Outubro de 1889 voltou a candidatar-se a deputado, desta feita pelo círculo da sua cidade natal, a Horta. Apesar das ligações familiares, o meio conservador das ilhas não lhe era favorável, pelo que ficou em quarto lugar, num círculo que elegia três deputados.

No ano seguinte, depois de cinco anos fora do Parlamento, a reação popular ao ultimato britânico de 1890, que levara à dissolução do recém-eleito parlamento, veio abrir uma nova oportunidade para os republicanos. Manuel de Arriaga voltou à ribalta política nacional ao liderar a manifestação organizada a 11 de Fevereiro de 1890 em repúdio ao ultimato britânico e à cedência do governo português. Foi preso durante o evento e conduzido a bordo de um navio de guerra, onde ficou retido até ser libertado por uma anistia régia.

Aproveitado a indignação popular contra o rei e os partidos do rotativismo, nas eleições gerais realizadas a 30 de Março de 1890 (28.ª legislatura) concorreu novamente pelo círculo de Lisboa, sendo eleito folgadamente, em conjunto com outros dois republicanos (Elias Garcia e Latino Coelho). Foi proclamado deputado a 30 de Abril de 1890, prestando juramento, novamente sob protesto, a 3 de Maio. Nesta segunda passagem pelo Parlamento, com um grupo republicano substancialmente alargado, tendo passado dos dois de 1883 para seis, teve um papel bastante mais interventivo, recusando novamente a acumulação de vencimentos. Apesar de não fazer parte de qualquer comissão parlamentar, começou por reapresentar a sua proposta de eliminação da obrigatoriedade de juramento, proposta obviamente rejeitada, passando depois a utilizar as Cortes como uma plataforma privilegiada para a sua atividade político-partidária. Considerando-se eleito pelo voto popular, passou a defender acerrimamente a teoria da soberania popular, recusando qualquer solução política que não resultasse diretamente da vontade dos cidadãos. A defesa da liberdade de consciência, de expressão, de reunião e de associação esteve sempre entre os tópicos da sua acção parlamentar.

Outra temática constante da sua ação parlamentar foi a defesa dos interesses do povo, por ele entendido como todos os cidadão. Nessa defesa dava grande importância à dignificação das classes menos favorecidas, tendo sido notável o empenho que colocou em 1883 na defesa dos camponeses e operários da Madeira, o círculo que o elegera, então a braços com uma profunda crise frumentária que condenava muitos deles à fome.

Foi um dos principais autores do programa do PRP apresentado ao público no dia 11 de Fevereiro de 1891. A partir daí participou frequentemente nos comícios de propaganda republicana, onde a sua capacidade oratória e a sua retórica rica e inflamada era muito apreciada pelas camadas populares. Aliás essa sua presença em comícios já vinha desde longe, já que em 1883 já participara num comício dissolvido pela força, razão que o levara depois a protestar veementemente nas Cortes.

Apesar da forte atividade e da pertinência das suas intervenções parlamentares, desencantou-se com a atividade parlamentar, declarando, no termo do mandato que não voltaria às Cortes enquanto novas leis ou melhores condições não investissem os representante do povo de melhores garantias. Desencantado com a política, dedicou-se gradualmente às suas obras literárias, com forte pendor filosófico, publicando, entre 1899 e 1907, dois livros de poesia e um de prosa.


Após a implantação da República Portuguesa, a 17 de Outubro de 1910 foi nomeado reitor da Universidade de Coimbra. Pouco depois, a 17 de Novembro de 1910, foi nomeado Procurador-Geral da República.

A 28 de Abril de 1911 foi eleito novamente deputado constituinte pelo círculo da Madeira. Na Assembleia Nacional Constituinte revelou-se um orador notável, tendo muitos dos seus discursos dado um impulso não negligenciável à causa republicana. Não partilhava, porém, o anticlericalismo próprio dos primeiros republicanos portugueses.

Perante um Partido Republicano Português dividido em facções crescentemente radicalizadas, a 24 de Agosto de 1911 foi eleito Presidente da República Portuguesa, por proposta de António José de Almeida. Sem o apoio da facção dos democráticos de Afonso Costa, tendo como apoiantes toda a ala moderada do republicanismo português. Com 71 anos de idade, foi o primeiro Chefe do Estado eleito do novo regime.

O seu mandato foi atribulado devido a incursões monárquicas movidas por Paiva Couceiro e à crescente instabilidade política resultante da desagregação do PRP. Nesse ambiente, tentou, sem êxito, reunificar o partido que, entretanto, se desmembrava em diferentes facções.

Adversário da hegemonia afonsista da ala radical do PRP, após o Movimento das Espadas, em Janeiro de 1915 Manuel de Arriaga convidou o general Pimenta de Castro a formar governo, dando origem à instauração de uma ditadura, com dissolução inconstitucional do Congresso da República. A decisão deu origem ao descontentamento generalizado dos republicanos, com os parlamentares, reunidos secretamente a 4 de Maio, no Palácio da Mitra, a declararem Manuel de Arriaga e Pimenta de Castro fora da lei e os seus atos nulos. Esta declaração levou a uma revolta, a Revolta de 14 de Maio de 1915.

Desencadeada pelos republicanos democráticos, derrubou o governo do general Pimenta de Castro. Perante a formação de uma junta militar que reclamava a reposição da ordem_presidente constitucional, o bondoso e pacifista Manuel de Arriaga deixou o cargo a 26 de Maio, abandonando em definitivo a vida política, acusado de trair os ideais republicanos democráticos que defendera toda a sua vida. Foi então substituído na Presidência da República por outro açoriano, o professor Teófilo Braga.

Embora amargurado e sentindo-se incompreendido e injustiçado pelos vitupérios de que era vítima por parte dos seus próprios correlegionários republicanos, publicou, em 1916, um livro intitulado Na Primeira Presidência da República Portuguesa, um verdadeiro testamento da sua ação política.

Morreu em Lisboa a 5 de Março de 1917, dois anos depois de ter abandonado a Presidência da República. Foi sepultado em jazigo de família no Cemitério dos Prazeres.

Manuel de Arriaga é patrono da Escola Secundária Manuel de Arriaga, na cidade da Horta, e é recordado em centenas de nomes de ruas e praças. A 19 de Novembro de 2011 foi inaugurada a Casa/Museu Manuel de Arriaga na cidade da Horta, Faial, onde se poderá encontrar a sua história de vida como político, alguns artigos pessoais bem como os seus ideais e valores republicanos.

Conhece-se colaboração da sua autoria nas revistas A Arte Musical (1898-1915) e Brasil-Portugal (1899-1914).

Fonte:
Wikipedia

Luís da Câmara Cascudo (Os Rins da Ovelha)

 Quando Nosso Senhor andava no mundo ia, de uma feita, com São Pedro e São João, comer uma ovelha que recebera de presente. São Pedro encarregou-se de assar mas, ao tratar, provou os rins e achou-os tão gostosos que os comeu. Na hora do almoço, Nosso Senhor pediu os rins e São Pedro procurou, procurou, e acabou dizendo:

- Esta ovelha não tem rins!

- Não pode ser, Pedro. Todos os animais têm rins!

- Eu sei, mas essa ovelha não os tinha.

Por mais que Nosso Senhor perguntasse, São Pedro teimou em dizer que a ovelha não tinha rins. Nosso Senhor não quis discutir e seguiram viagem.

Lá adiante encontraram um rio e não havia ponte. Nosso Senhor meteu o pé em cima d’água e saiu como se pisasse em terra firme. São João fez o mesmo. São Pedro deu os primeiros passos mas foi-se afundando. Começou a gritar.

- Acode-me, Senhor!

Nosso Senhor dizia:

- Quem comeu os rins da ovelha?

- Sei lá quem os comeu! A ovelha não os tinha!

E afundando, afundando. Nosso Senhor puxou-o pelos cabelos e continuaram a viagem.

Depois iam atravessando um tabuleiro comprido quando apareceu fogo por todos os lados. Estavam queimando para fundar os roçados e a queima pegara no pasto. As labaredas foram subindo e cercando os três homens. Nosso Senhor foi com o mesmo passo, pelo meio do fogo. São João acompanhou-o. São Pedro foi-se queimando todo e gritou:

- Senhor acode-me!

- Quem comeu os rins da ovelha?

- Sei lá? A ovelha não os tinha!

Nosso Senhor vendo que São Pedro ficava estorricado, afastou o fogo e seguiram o caminho.

Pela tarde deram numa casa rica onde o filho único estava morrendo, cercado de médicos. Nosso Senhor aproximou-se do doente, abençoou-o e ele levantou, bonzinho de saúde.

O fazendeiro, morrendo de alegria, deu um saco cheio de moedas de ouro a Nosso Senhor.

Depois da ceia, Nosso Senhor botou as moedas em cima da mesa e dividiu o dinheiro em quatro lotes.

- Para que dividistes o dinheiro em quatro partes? Somos três! perguntava São Pedro.

- Não se agonie, respondeu Nosso Senhor - uma parte é minha, outra de João, a terceira é tua e a quarta de quem comeu os rins da ovelha!

- Fui eu, Senhor, fui eu! gritou São Pedro.

E ficou com as duas partes.

O homem resiste mais à água e ao fogo do que ao dinheiro. O que o dinheiro não arrumar, não tem mais arrumação.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1986.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 340


Luiz Vilela (Fazendo a Barba)


O barbeiro acabou de ajeitar-lhe a toalha ao redor do pescoço. Encostou a mão:

- Ele está quente ainda...

- Que hora que foi? - perguntou o rapazinho.

O barbeiro não respondeu. Na camisa semi-aberta do morto alguns pêlos grisalhos apareciam. O rapazinho observava atentamente. Então o barbeiro olhou para ele.

- Que hora que ele morreu? - o rapazinho tornou a perguntar.

- De madrugada - disse o barbeiro; - ele morreu de madrugada.

Estendeu a mão:

- O pincel e o creme.

O rapazinho pegou rápido o pincel e o creme na valise de couro sobre a mesinha. Depois pegou a jarra de água que havia trazido ao entrarem no quarto: derramou um pouco na vasilhinha do creme e mexeu até fazer espuma.

O rapazinho era sempre rápido no serviço mas aquela hora sua rapidez parecia acompanhada de algum nervosismo: o pincel acabou escapulindo de sua mão e foi bater na perna do barbeiro, que estava sentado junto à cama.

Ele pediu desculpas, muito sem-graça e mais descontrolado ainda.

- Não foi nada - disse o barbeiro, limpando a mancha de espuma na calça; - isso acontece...

O rapaz, depois de catar o pincel, mexeu mais um pouco, e então entregou a vasilhinha ao barbeiro, que ainda deu uma mexida.

Antes de começar o serviço, o barbeiro olhou para o rapaz:

- Você acharia melhor esperar lá fora? - perguntou, de um modo muito educado.

– Não, senhor.

- A morte não é um espetáculo agradável para os jovens - disse. – Aliás, para ninguém...

Começou a pincelar o rosto do morto. A barba, de uns quatro dias, estava cerrada. Através da porta fechada vinha um murmúrio abafado de vozes rezando um terço. Lá fora o céu ia acabando de clarear; um ar fresco entrava pela janela aberta do quarto.

O barbeiro devolveu o pincel e a vasilhinha; o rapaz já estava com a navalha e o afiador na mão: entregou-os ao barbeiro e pôs na mesa a vasilhinha com o pincel.

O barbeiro afiava a navalha. No salão, era conhecido seu estilo de afiar, acompanhando trechos alegres de música clássica, que ele ia assobiando. Ali, no quarto, ao lado de um morto, afiava num ritmo diferente, mais espaçado e lento: alguém poderia quase deduzir que ele, em sua cabeça, assobiava uma marcha fúnebre.

- É tão esquisito - disse o rapazinho.

- Esquisito? - o barbeiro parou de afiar.

- A gente fazer a barba dele...

O barbeiro olhou para o morto:

- O que não é esquisito? - disse. - Ele, nós, a morte, a vida, o que não é esquisito?

Começou a barbear. Firmava a cabeça do morto com a mão esquerda, e com a direita ia raspando.

- Deus me ajude a morrer com a barba feita- disse o rapazinho, que já tinha alguma barba. - Assim eles não têm de fazer ela depois de eu morto. É tão esquisito...

O barbeiro se interrompeu, afastou a cabeça e olhou de novo para o rosto do morto - mas não tinha nada a ver com a observação do rapaz; estava apenas olhando como ia o seu trabalho.

- Será que ele está vendo a gente de algum lugar? - perguntou o rapazinho.

Olhou para o alto - o teto ainda de luz acesa -, como se a alma do morto estivesse por ali, observando-os; não viu nada, mas sentia como se a alma estivesse por ali.

A navalha ia agora limpando debaixo do queixo. O rapazinho observava o rosto do morto, seus olhos fechados, a boca, a cor pálida: sem a barba, ele agora parecia mais um morto.

- Por que a gente morre? - perguntou. - Por que a gente tem de morrer?

O barbeiro não disse nada. Tinha acabado de barbear. Limpou a navalha e fechou-a, deixando-a na beirada da cama.

- Me dá a outra toalha - pediu; - e molhe o paninho.

O rapaz molhou o paninho na jarra; apertou-o para escorrer, e então entregou ao barbeiro, junto com a toalha.

O barbeiro foi limpando e enxugando cuidadosamente o rosto do morto. Com a ponta do pano, tirou um pouco de espuma que tinha entrado no ouvido.

- Por que será que a gente não acostuma com a morte? - perguntou o rapazinho. -A gente não tem de morrer um dia? Todo mundo não morre? Então por que a gente não acostuma?

O barbeiro fixou-o um segundo:

- É - disse, e se voltou para o morto.

Começou a fazer o bigode.

- Não é esquisito? - perguntou o rapazinho. - Eu não entendo.

- Há muita coisa que a gente não entende - disse o barbeiro.

Estendeu a mão:

- A tesourinha.

Na casa, o movimento e o barulho de vozes pareciam aumentar; de vez em quando um choro. O rapazinho pensou alegre que já estavam quase acabando e que dentro de mais alguns minutos ele estaria lá fora, na rua, caminhando no ar fresco da manhã.

- O pente - disse o barbeiro. - Pode ir guardando as coisas.

Quando acabou de pentear, o barbeiro se ergueu da cadeira e contemplou o rosto do morto.

- A tesourinha de novo - pediu.

O rapaz tornou a abrir a valise e a pegar a tesourinha.

O barbeiro se curvou e cortou a pontinha de um fio de cabelo do bigode.

Os dois ficaram olhando.

- A morte é uma coisa muito estranha - disse o barbeiro.

Lá fora o sol já iluminava a cidade, que ia se movimentando para mais um dia de trabalho: lojas abrindo, estudantes andando para a escola, carros passando.

Os dois caminharam um bom tempo em silêncio; até que, à porta de um boteco, o barbeiro parou:

- Vamos tomar uma pinguinha?

O rapaz olhou meio sem jeito para ele; só bebia escondido, e não sabia o que responder.

- Uma pinguinha é bom para retemperar os nervos - disse o barbeiro, olhando-o com um sorriso bondoso.

- Bem... - disse o rapaz.

O barbeiro pôs a mão em seu ombro, e os dois entraram no boteco.

Fonte:
Luiz Vilela. O Fim de Tudo. publicado em 1973.

Claudemiro Amaral (Poemas Avulsos)


ALMAS ENCARCERADAS

Velhas saudades dos meus tempos idos
repetem hoje, ao te fitar — Peti!
Lá do passado, sonhos esquecidos
cobrem de amor meu coração por ti!

No teu olhar mais divinal eu vi
partirem certos, para os meus sentidos,
laços de amor... e me desfaleci…
Pois somos ambos já comprometidos!...

Como explicar deste mistério o enredo?
se há pecado?... e no pecar faz medo?...
Mistério, pois... mas essas ondas passam!

Pois nosso amor, que é divinal, consola,
balsamizando sempre, por esmola,
as nossas almas quando se entrelaçam!
****************************************

BUSCANDO A VERDADE


Vale pensar maduramente e crer,
vendo a verdade em toda parte estar!
Vale buscar para depois saber
que quem procura sempre há de encontrar!

Mas o saber que em tudo faz vibrar
mostra a verdade a palpitar no ser!
Se na distância ela nos faz pensar,
dentro de nós ela nos faz crescer...

Pois o saber, como a estrela-guia,
mantém-se oculto; mas, pra quem confia,
sem ser preciso ele apalpar, nem ver,

ele perdura e sempre está presente,
vendo o passado a refletir na frente,
por luz suprema a palpitar no ser...
****************************************

EU SINTO


Eu sinto em mim uma saudade imensa!
Certo desejo, talvez sede ou fome!
Sinto minha alma em vibração suspensa!
Sinto a verdade me mudando o nome...

Sinto, não nego, que uma luz consome
a densa treva como recompensa,
mas o segredo social que tome
outro caminho onde há respeito e crença!

Eu sinto fome... fome de saber!
Eu sinto sede é de me ver crescer
no meu saber para matar a fome!.,.

Eu, vendo a treva a consumir quem erra,
vejo a virtude aproximar da terra,
como a verdade me mudando o nome!
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FRATERNIDADE


Quero falar sem atacar. Porém,
nunca fugi, falando a verdade.
Mostrar defeito em quem talvez não o tem
é sinal vivo de perversidade!...

Pra ser sincero, contra tal maldade,
o melhor mesmo é só fazer o bem...
mas, do abuso contra a liberdade,
é bom mostrar sem ofender ninguém!

Quem porventura pode ser isento
da sutileza, do sagaz fermento
que nos envolve, a toda humanidade?

Quem assim for que lave então a mão;
mas que respeite sempre o seu irmão
no doce afeto da fraternidade!...
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MAGIA DIVINA


A luz acende... E, sem mostrar aonde
fica o mistério em combustão no ser:
se em plena luz onde a virtude esconde,
se na magia que lhe faz nascer!...

Se no segredo que lhe faz crescer,
se na ciência que não me responde,
se dentro em mim me conduzindo a ver
no próprio éter, onde o mistério esconde!

Eu sou na carne um embrião movendo..
sou luz no éter devagar crescendo:
um vivo morto pra depois nascer...

Imerso em trevas sem achar saída!
como centelha a navegar perdida,
buscando a vida para à luz volver!
****************************************

OBRA-PRIMA


Do protoplasma até o corpo ereto
que dorme a vida em embrião latente:
transmuta a vida e vai nascer na frente
no ser sublime e já de amor repleto!...

É a própria vida que palpita e sente
necessidade de fazer completo,
no ser vivente, um embrião secreto
reproduzindo e transformando a gente!

Vivendo o corpo, em células reparte
deixando à vida uma função de amor
onde o saber vem revelando a arte...

Como oficina gera mais calor:
vem a função que multiplica e parte
a obra-prima para o CRIADOR!...
****************************************

O MEU RESPEITO


Do meu respeito vem felicidade
como ornamento do meu ser pensante!
Tudo eu respeito... a própria iniquidade,
Por um dever que encontrei distante...

Aqui, porém, como um farol brilhante
está a luz... a própria liberdade!
A decantada e como um astro errante,
mas que nos cobre de felicidade.

Mas do abuso nasce a anarquia:
nasce a vileza na "democracia",
o vitupério na "religião".

Nasce o fermento da sociedade...
Nasce o descaso — nasce a falsidade
e desrespeito por qualquer Nação!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Seis


GALHOS DESFOLHADOS

O MARCELO LOROTEIRO FICOU sabendo, no Bar do Zé  do Caneco da Saideira, que o seu vizinho de frente a sua casa, o Belmiro Funga-Funga estava fazendo um curso presencial para Pai de Santo. Belmiro Funga-Funga tinha uma mulher maravilhosa que fechava o comércio, a Aretuza. A Aretuza era linda por demais e quando passava na frente do bar do Zé do Caneco da Saideira, toda a galera babava. Alguns, mais afoitos, gritavam vivas, outros apenas levantavam o caneco em respeito ao amigo.

Aretuza fora feita por um escultor caprichoso, que não esquecera de colocar todas as belezas do mundo (na dosagem e na medida certa) ao confeccionar tal fêmea. Aretuza era tão linda e majestosa que às vezes  as pessoas, ao cruzarem com ela na rua, no supermercado, na padaria, paravam só para se deleitarem com a sua majestade impecável e porque não dizer, inimitável. A filhota dela, a Luanna, na faixa dos dezessete, não lhe ficava a dever favores.

Quando as duas saíam juntas, difícil dizer, com precisão, qual das criaturas se constituía na mais formosa. Apesar de todas essas felicidades ao alcance das mãos e dos olhos, os  amigos, ao serem sabedores do tal curso de pai de santo, ficaram encucados. A curiosidade aflorou com força total. Literalmente, os amigos que se reuniam no bar, todos os finais de tarde (após a chegada do trabalho), para uma descontração básica antes de chegarem em suas casas, estavam, sem tirar nem pôr, com a bisbilhotice coçando igual sarna braba.

Entretanto, nenhum dos amigos, tinha coragem suficiente para chegar nas barbas do Belmiro Funga-Funga e inquirir sobre o tal curso. Marcelo Loroteiro,  contudo, um dos mais chegados amigos de Belmiro Funga-Funga  e, talvez, o mais impaciente de toda a galera, tinha fama de pegar todas, resolveu que daria um jeito de tirar esse troço em pratos limpos e matar o indiscreto que o incomodava desde que tomara conhecimento do fato.

Teve que esperar quase dois meses. No decorrer desses sessenta dias, as investidas foram muitas, porém, o Belmiro Funga-Funga desconversava, mudava de assunto, falava até de futebol (que odiava) e Marcelo Loroteiro se viu quase na iminência de desistir da empreitada. Difícil, claro, deixar pra lá. No bar do Zé do Caneco da Saideira, uma corrente apostava que diante da seriedade de Belmiro Funga-Funga o Marcelo Loroteiro comeria mosca e não conseguiria seu intento.

Outra banda asseverava que ele levaria à termo a  palavra empenhada, e, em breve, revelaria a todos, o segredo trancafiado a sete chaves do tal curso de pai de santo. E as apostas, de ambas as correntes dentro do estabelecimento do Zé voavam alto. As disputam giravam em torno de quatro caixas de cerveja para quem apostara que o Marcelo Loroteiro não alcançaria êxito, contra seis que batia na tecla que ele teria sucesso pleno em sua jornada.

Pois bem. Quase ao extremo de inteirar três meses, e já sem respaldo criativo para interpelar o Belmiro Funga-Funga, eis que Marcelo Loroteiro topou com o seu vizinho e amigo de cervejadas fazendo compras no supermercado. Seu rosto se alegrou. Chegou quase a chorar, em face da oportunidade que lhe caíra do céu. “É hoje que tiro essa história do anonimato – pensou satisfeito com seus botões – é hoje o dia ‘d’ ou deixo de me chamar Marcelo Loroteiro’”.

Enrolou daqui, enrolou dali, quando o Belmiro Funga-Funga se dirigiu a um dos caixas, para passar as compras, pulou atrás dele, colando em seu cangote, dado a impressão de um acaso não programado. Ao vê-lo em sua retaguarda, por sinal, acima do normal, Belmiro Funga-Funga se virou e deu-lhe um forte abraço:

- Belmiro, meu chapa – sorriu Marcelo. Que prazer  cruzar com você.

Belmiro Funga-Funga não se fez de rogado:

- O prazer é todo meu, caro amigo. Não o tenho visto no bar do Zé.

- Falta de tempo, meu camarada. Muito serviço. E você, quais as novidades?

- Por enquanto, nenhuma. Tudo velho. Mais novo só nós dois.

- Pensei que tivesse ganho na loteria.

- Nem de jogo eu gosto, você sabe disso melhor que eu.

- Cara, fiquei sabendo, não sei se é verdade, ouvi uma história  que você está fazendo um curso. Procede essa conversa?

- Sim, meu amigo Marcelo. Tem bem uns três para quatro meses.

- E posso saber por quê, ou para quê?

- Claro, meu amigo. Não faço segredo da minha vida pra ninguém...

- Eu sei, eu sei... Afinal conheço você faz bem uns vinte anos...

- Por ai.

- E quanto ao curso?

- É um curso de Pai de santo, amigo Marcelo. Dentro de uma semana me formarei e receberei o meu canudo.

- Canudo?

- O diploma.

- Ah, entendi. Diga ai: virou macumbeiro?

- Não.

- Espírita?

- De forma alguma

- Então, qual o objetivo desse  curso de  pai de santo?

- É que o Luiz lá da empresa... O Luiz que trabalha no RH, nosso vizinho... Bebe com a gente...  Mora em frente a sua casa, Marcelo...  Seus filhos jogam bola com os filhos dele, como os meus também... O Luiz me falou, em segredo, que eu preciso tirar um certo caboclo safado e pilantra que vive dando em cima da minha mulher quando estou no trabalho. Me indicou esse curso. Estou quase terminando. Até o final deste mês, eu descobrirei, ou melhor, eu verei através dos ensinamentos que recebi, quem é o safado sem vergonha...

Marcelo Loroteiro quase teve um troço. Em questão de segundos, ficou amarelo, empalideceu, passou de preto a vermelho, de vermelho à cor de rosa. Por pouco, não desmaiou. Finalmente conseguiu balbuciar:

- Da... Da...  A... Are... Aretuza?

- Claro, meu chapa. Acaso tenho outra mulher senão a Aretuza? Ei Marcelo, o que houve? Você está bem? Fale, meu amigo, está se sentindo bem?

Desde esse dia, o Marcelo Loroteiro nunca mais foi visto no pedaço. Mudou de repente com toda a sua família para lugar incerto e não sabido.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Ed. AMC-Guedes, 2020.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 339


Humberto de Campos (Os Suspensórios)


Um advogado ilustre, pessoa da minha estima, contava-me, há dias, um caso curioso que o impressionara profundamente. Procurado por uma senhora, que desejava divorciar-se, fizera ele a petição competente, com todo o segredo, e foi levá-la ao juiz. E regozijava-se com a surpresa que ia causar ao péssimo esposo da sua cliente, quando abriu a boca estupefato: no cartório havia, já, uma petição do marido, que apelava para o mesmo recurso judiciário apoiado nas mesmas razões em que se apoiava a mulher. E, como conversa puxa conversa, contou-me o ilustre causídico uma história interessante, que ele havia lido, poucos dias antes, em certa revista estrangeira.

Homem de gênio desigual, o Sr. Fabiano preparava-se para sair, quando, de repente, começou a perder a paciência. Faltava-lhe o suspensório, que devia estar preso à calça vestida na véspera, e era com indignação que ele berrava, com as mãos segurando o cós:

- Não o viste, Maria?

A criada respondia-lhe negativamente e ele trovejava para a mulher:

- Não o viste, Marcela?

De repente, coordenando as ideias, ajustando o "puzzle" das lembranças recentes, calou-se, acalmando completamente a tempestade. E ia fazer o possível para que ninguém falasse mais em tal coisa, quando a mulher chegou à porta do quarto, avisando:

- Fabiano, aí tem uma pessoa que quer falar contigo, com urgência.

- Quem é?

- O Sr. Octaviano, da farmácia.

Um minuto depois, mostrando nas olheiras escuras as infinitas torturas de uma noite de insônia, entrava no quarto, usando da intimidade que ligava as duas famílias, o Sr. Octaviano, farmacêutico de renome. Estava soturno, grave, circunspecto, e, sentindo-se a sós com o amigo, explicou, misterioso, o motivo daquela visita matinal:

- Você sabe - começou - que eu tinha absoluta confiança em minha mulher. Em minha casa não entrava, jamais, outro homem. Entretanto, ao penetrar, ontem, no nosso quarto de dormir, encontrei isto debaixo da cama. Veja!

E, dizendo isso, arrancou do bolso do sobretudo, que não tirara, um par de suspensórios azul, com fivelas de prata, que exibiu, confiante, aos olhos espantados do amigo.

A essas vozes, porém, a porta escancara-se e, de um pulo, aparece no meio do quarto uma figura de mulher. Era D. Marcela que, tendo visto e ouvido tudo pela fechadura, bradava, branca de cólera:

- Mas, que é isso, afinal? Esse suspensório é o teu, que estas procurando há meia hora!

E cerrando os punhos, no rumo do esposo:

- Indigno! Canalha! Miserável! Não fico nesta casa mais, nem um minuto! Cachorro!...

E prorrompendo em soluços:

- Bandido! Infame! Desgraçado!..

Atarantado com o que acabava de ouvir, o Sr. Octaviano recuara até à parede, boquiaberto. Pálido, tonto, desorientado, o Sr. Fabiano fizera outro tanto, em sentido contrário. E ia a comédia por essa altura, com a moça a arrancar furiosamente os cabelos no meio do quarto, quando apareceu à porta a criada, trazendo alguma coisa nas mãos.

- Patrão, achei os seus suspensórios.

A patroa parou de chorar, estacando, de olhos escancarados, pálida, de cera. E a criada continuou:

- Estavam na secretária da senhora, ao lado do canapé.

Recobrando o ânimo, o Sr. Fabiano encaminhou-se, rápido, para a rapariga, e vendo que os suspensórios eram cinzentos, e não azuis, como os seus, trovejou, furibundo:

- De quem são estes suspensórios, senhora?

Mas não obteve resposta. D. Marcela. apavorada havia saído pela porta dos fundos.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XI


Alguns lados têm a vida
e a moeda só dois tem,
esta, pra ser convertida,
deve aquela ser também.
- - - - - -
A perda de um familiar
que na vida amamos tanto,
é difícil superar
sem antes secar o pranto.
- - - - - -
Até parece verdade
tudo o que o falso nos diz,
nada sobre a falsidade,
mas nada de ser feliz.
- - - - - -
A terra ficou molhada
sob a chuva que caía
e a relva toda orvalhada
co'a chuva se confundia.
- - - - - -
Bom se no fim da jornada
revendo as suas 'raízes',
todos deixassem a estrada
plenos de paz e felizes.
- - - - - -
De cinismo e hipocrisia
este mundo está repleto,
causando a paralisia,
de todo e qualquer projeto.
- - - - - -
Do além não temos regresso
para ele caminha a vida,
tem uma porta de acesso
mas nenhuma de saída.
- - - - - -
Ecos de paz bem queremos
todo o momento escutar
e assim também poderemos
num grito a manifestar.
- - - - - -
Em Deus me sinto no meio,
Ele em mim faz a morada,
é meu guia e grande esteio
nesta longa caminhada.
- - - - - -
Encher o mundo de flores
talvez um sonho impossível,
mas abrandar muitas dores,
nos parece ser possível.
- - - - - -
Figueira que não dá figo
no fim deve ser cortada,
tem a morte por castigo
numa sentença marcada.
- - - - - –
Galopa o tempo sem upa,
pelos campos da existência,
nele vamos na garupa
laçar na eterna querência.
- - - - - -
Magistral facho suspenso
às mãos do vasto universo,
sol brilhante, forte e imenso,
tal um fogaréu disperso.
- - - - - -
Nada tem que seja eterno
a não ser a eternidade,
todo o ser é subalterno
em nível de "humanidade".
- - - - - -
Nada tem que tanto esquente
quanto ao fervente quentão,
mas o chocolate quente,
também causa tentação...
- - - - - -
Nas esquinas do passado
deixo um pedaço de mim,
por alguém vai ser juntado
depois de chegar meu fim.
- - - - - –
Na vida quem não caminha
pode ser 'atropelado'.
Acelera ou sai da linha,
que atrás vem um apressado!
- - - - - -
Nem sempre a lágrima traz
traços dum gesto amoroso,
não raras vezes se faz
por um golpe doloroso.
- - - - - -
O poeta reproduz
nos seus brilhantes poemas,
um pouco da sua luz
tendo a sombra como temas,
- - - - - -
Os passarinhos encantam
quando cantam nas florestas,
o astral humano levantam
na cadência das serestas.
- - - - - -
Os tempos passam velozes
cometendo atrocidades,
atrás, uns rastros atrozes,
que chamamos de saudades.
- - - - - –
Ouça a voz do coração
para enfrentar um dilema,
seja sempre a solução,
nunca parte do problema.
- - - - - -
Pedra solta, rola imersa,
na água turbulenta e fria,
rija, impune e controversa,
companheira à travessia.
- - - - - -
Poucas florestas existem
porque foram devastadas,
algumas delas resistem
pois à lei são preservadas.
- - - - - -
Quando a vida nos parece
no abismo se fragmentar,
possamos ter numa prece
a coragem de enfrentar,
- - - - - -
Se houvesse fraternidade
a guerra não nasceria,
no mundo, a felicidade,
com certeza afloraria.
- - - - - -
Sentimentos de ternura
pode a lágrima expressar
e a dor que o tempo não cura
também faz extravasar.
- - - - - –
Sorriso triste no rosto,
rugas na fronte e na mente,
mostram à luz do desgosto
sombras dum sonho pendente.
- - - - - -
Surge a vida no horizonte
sendo rota ao próprio ser,
quanto mais longe da fonte
mais perto do entardecer.
- - - - - –
Todos mantêm a esperança
de ao chegar na eternidade,
poder pôr sobre a balança
algum fruto de bondade.
- - - - - -
Vestígios estão presentes
entre os sonhos do passado,
são linhas que mesmo ausentes
seguiremos seu traçado.
- - - - - -
Vida: maior obra d'arte,
que devemos proteger,
se fizermos nossa parte
mais vida vemos crescer.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro gentilmente enviado pelo autor.

Rubem Braga (Negócio de Menino)


Tem dez anos, é filho de um amigo, e nos encontramos na praia:

- Papai me disse que o senhor tem muito passarinho...

- Só tenho três.

- Tem coleira?

- Tenho um coleirinha.

- Virado?

- Virado.

- Muito velho?

- Virado há um ano.

- Canta?

- Uma beleza.

- Manso?

- Canta no dedo.

- O senhor vende?

- Vendo.

- Quanto?

- Dez contos.

Pausa. Depois volta:

- Só tem coleira?

- Tenho um melro e um curió.

- É melro mesmo ou é vira?

- É quase do tamanho de uma graúna.

- Deixa coçar a cabeça?

- Claro. Come na ...

- E o curió?

- É muito bom curió.

- Por quanto o senhor vende?

- Dez contos.

Pausa.

- Deixa mais barato...

- Para você, seis contos.

- Com a gaiola?

- Sem a gaiola.

Pausa.

- E o melro?

- O melro eu não vendo.

- Como se chama?

- Brigitte.

- Uai, é fêmea?

- Não. Foi a empregada que botou o nome. Quando ela fala com ele, ele se arrepia todo, fica todo despenteado, então ela diz que é Brigitte.

Pausa.

- O coleira o senhor também deixa por seis contos?

- Deixo por oito contos.

- Com a gaiola?

- Sem a gaiola.

Longa pausa. Hesitação. A irmãzinha o chama de dentro d'água. E, antes de sair correndo, propõe, sem me encarar:

- O senhor não me dá um passarinho de presente, não?

Fonte:
Rubem Braga. A Traição das Elegantes. RJ: Sabiá, 1967.

V Prêmio Literário Gonzaga de Carvalho (Classificação Final)



 


CATEGORIA: POESIA

VENCEDORES


Primeiro Lugar:
Oldair Ferreira Motta
Belo Horizonte-MG
“Eterna poesia para Teófilo Otoni”

Segundo lugar:
André Abreu
Taboão da Serra-SP
“As velhas cantigas”

Terceiro lugar:
Dilercy Adler
São Luiz-MA.
“A vida real”

MENÇÕES HONROSAS:


Alfredo Nogueira Ferreira
Florianópolis-SC
“Serra das Esmeraldas”

Paulo Jurza
Belo Horizonte-MG 
“Ver as velas”

Leandro Campos Alves
Caxambú-MG
“Oração de súplica à Nação”

Érika Lourenço Jurandy
Rio de Janeiro-RJ
“Desolação”

Adriano da Silva Ribeiro
Contagem-MG
“Alto Gonzaga de Carvalho”

Maria Luciene
Fortaleza-CE
“Meu poema dedicado”

Mauri Alves da Silva
,Embú das Artes-SP
“Solidariedade e ação”

Valéria Victorino Valle
Anápolis-GO
“É guerra”

Celso Gonzaga Porto
Cachoerinha-RS
“Paz... onde estás?”

Cláudia Lundgren
Teresópolis-RJ
“O frio minh’alma”

Cláudio de Almeida Hermínio,
Belo Horizonte-MG
“Devoção”

Celso Henrique Fermino,
São José do Rio Preto-SP
“À espera”,

Rosimeire Leal da Motta Piredda,
Vila Velha-ES
“Equilibrando-se num fio de linha”

Marcelo de Oliveira Souza
Salvador-BA
“Partida”

Francisco Martins Silva”
Uruçuaí-PI
“Toda arte é sagrada”

Jerônimo Luiz Gonçalves
Goiânia-GO
“Passeio pela vida”

Silvio Parise
Rhode Island-EUA
“Novas descobertas”

Antonia Aleixo Fernandes
São Paulo-SP
“Re-existir”

Antônio Francisco Cândido
Congonhas-MG
“Palavras”

Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco-PR
“O Brasil, terra Pindorama”

Ieda Thomé
Rio de JaneiroRJ
“Abstenção”

Daniela Martins Cunha
Governador Valadares-MG
“Soneto da Pandemia”

Maria Elza Fernandes Melo Reis
Capanema-PA
Nada Seria”

Rossana Monteiro
Aracaju-SE
“Goodless”

Emanuela Rufino
RecifePE
“Somente Eu!”

Lucivalter Almeida dos Santos
Nazaré-BA
“Pra quem sabe viver...”

Cláudio de Almeida
São Paulo-SP
“A mãe nossa de cada dia”

João Bosco de Castro
Bom Despacho-MG
“Estética e ética”

CATEGORIA: CRÔNICA

VENCEDORES

Primeiro Lugar:

Paulo Jurza
Belo Horizonte-MG
“Onde está o mundo”

Segundo lugar:
João Bosco de Castro
Bom Despacho-MG
“O drama das corujinhas”

Terceiro lugar:
Juracy Nonato Ferreira
Santa Helena de Minas-MG
“Impaciente e teimoso”

MENÇÕES HONROSAS:

Lucivalter Almeida dos Santos
Nazaré-BA
“Repensando a realidade do tempo”

Amalri Nascimento
Rio de Janeiro-RJ
“Sonhos”

Celso Gonzaga Porto
Cachoeirinha-RS
“Carnaval”

Carlos Lúcio Gontijo
Santo Antônio do Monte-MG
“O poema que anda”

Paulo Roberto de Oliveira Caruso
Rio de Janeiro-RJ
“irresponsabilidade em grupo”

Maria Eugênia Porto Ribeiro da Silva
Belo Horizonte-MG
“Teatro de amor”

Helena Selma Colen
Ladainha-MG
“Mínimos detalhes”

Marina Barreiros Mota
Nova Viçosa-BA
“Sutiã”

Vânia Rodrigues Calmon
Vila Velha-ES
“Liberdade da Maria”

Coracy Teixeira Bessa
Salvador-BA
“O boquê no centro da mesa”

Marcelo Oliveira Souza
Salvador-BA
“A rede social”

Ândrei Clauhs”
Brasília-DF
“O corredor do bom humor”

Leandro Campos Alves
Caxambú-MG
“Envelhecer”

Fernando Catelan
Mogi das Cruzes-SP
“Até Amanhã!”

Evandro Ferreira
Caucaia-CE
“Lá em cima”

Magali Maria de Araújo Barroso
Belo Horizonte-MG
“Voo rasante”

João Carlos de Araújo Júnior
Tomé-Açu-PA
“Quaresmal”

Elizabeth Cury Bechir Watanabe
Itanhaém-SP
“Minha praça”

Carmelita Ribeiro Cunha Dantas
Aparecida de Goiânia-GO
“Milagre da vida”

de Dilercy Adler
São Luiz-MA
“O pijama de papai”

Alfredo Nogueira Ferreira
Florianópolis-SC
“Um lamento e um apelo”

Isabel Cristina Silva Vargas
Pelotas-RS 
“Meus medos e minha fé”

Paulo Murilo Carneiro Valença
Receci-PE.
“A voz do retrato”

CATEGORIA: CONTO

VENCEDORES

Primeiro Lugar:

Cláudio de Almeida
São Paulo-SP
“Casal italiano apaixonado por sueca”

Segundo lugar:
Adevaldo Rodrigues de Souza
Belo Horizonte-MG
“O dia em que o apocalipse chegou”

Terceiro lugar:
Paulo Jurza
Belo Horizonte-MG.
“Que foi feito do boi?”

MENÇÕES HONROSAS:

Décio Mallmith
Porto Alegre-RS
“A cerveja”

Celso Gonzaga Porto
Cachoeirinha-RS
“A curiosidade e o aprendizado”

Marina Motta Barreiros
Nova Viçosa-BA
“O homem no espelho”

Cosme Custódio da Silva
Salvador-BA
“Medo”

Josenilson Costa dos Santos
Salvador -BA
“O amor do Beija-Flor”

Amalri Nascimento
Rio de Janeiro-RJ
“Salto para a morte”

Almir Zaferg
Teixeira de Freitas-BA
“Milla”

José Moutinho dos Santos
Belo Horizonte-MG
“Contando o conto”

Tereza Azevedo
Campinas-SP
“Pout-pourri da Carocinha”

Paulo Roberto de Oliveira Caruso
Niterói-RJ 
“No lugar errado”

Patrícia Ferreira dos Santos
Salvador-BA.
“A Lua, o Sol e os Cometas”

Teófilo Otoni/MG, 21 de julho de 2020.

PROFª ELISA AUGUSTA DE ANDRADE FARINA
Presidente
PROF. WILSON COLARES DA COSTA
Secretário-Geral