sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Manuel de Arriaga (Poemas Avulsos)

A CRUZ E O PARA-RAIOS

      Da velha catedral, esbelta e rendilhada,
      Votada a ser mansão do Deus, autor do mundo,
      Na flecha a mais gentil, campeia abençoada
      A cruz do Redentor, da Galileia o oriundo!

      Nos ímpetos da fé, cortantes como a espada,
      O ungido do Senhor, d'olhar cavo e iracundo,
      Aponta á multidão, humilde e ajoelhada,
      Por seu supremo amparo a cruz, no azul profundo!

      Em nome dela exalta a fé porque a aviventa,
      E diz mal da razão que tenta, em vãos ensaios,
      Dos céus arrebatar a luz, de que é sedenta!

      Mas do alto onde ela está, que causa até desmaios,
      Temendo que a derrube o fogo da tormenta:
      Em nome da Razão lhe põe um para-raios!...
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ALVORADA


      Algures brilha o sol no azul do firmamento,
      E expõe com resplendor das coisas o espetáculo!
      Aqui, na escuridão, o mundo é tabernáculo
      Onde os frágeis mortais descansam um momento!...

      Além, o Sol incita o mundo ao movimento,
      Á luta pela Vida, o esteio e o sustentáculo
      Desde o ser da Razão ao mínimo animáculo,
      Aqui, o sono esparsa em todos novo alento!

      Ó Luz! tu és do mundo a Força, a Alma, a Vida,
      A essência do meu Ser, a minha própria Ideia,
      O próprio Deus, talvez!... Beleza, Amor, Verdade!

      Atrás de Ti caminha a Terra, mãe querida!
      Bendito caminhar! Por Ti minha alma anseia!...
      Bem vinda sejas, pois, oh doce claridade!
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AMOR E PROVIDÊNCIA


      Enquanto eu, alta noite, velo e lido,
      Por vós mantendo inúmeros cuidados,
      Dormis, caros filhinhos, sossegados
      Em torno a mim o sonho apetecido!

      Dormis?! sonhais de certo... e eu pai envido
      Meus esforços por ver realizados
      Vossos sonhos gentis e perfumados:
      Ampara-vos um peito estremecido.

      Outro Alguém faz por nós o que eu vos faço:
      Com suprema bondade e sapiência,
      Rege os mundos que rolam pelo espaço!

      Esse Alguém é o Amor por excelência,
      O formidável e invisível braço,
      E o olhar que nunca dorme – a Providência!
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MUNDO INTERIOR

      Matéria ou Força, Lei ou Divindade
      Quem quer que seja que dirige o mundo,
      Esparsa em tudo o espírito fecundo
      Do Sumo Bem – Beleza, Amor, Verdade.

      À luz desta Santíssima Trindade,
      Cercado d'esplendor, clamo e jucundo,
      Sorri-me em volta o universo; ao fundo,
      Por síntese Suprema, a Humanidade!

      Dos homens rujam temporais medonhos...
      Que em mim, no meu labor, do Bem sedento,
      Meus dias correm límpidos, risonhos!

      Estrelas que brilhais no firmamento!
      É menos bela a vossa luz que os sonhos
      Que gera na minha alma o Pensamento!
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O QUE EU VI


Saí um dia a contemplar o mundo,
Por ver quanto há de belo e quanto brilha
Na múltipla e gloriosa maravilha,
Que anda suspensa em o azul profundo!

Vi montes, vales, árvores e flores,
Límpidas aguas, múrmuras torrentes,
Do grande mar as músicas plangentes,
Dos céus sem fim os trêmulos fulgores!

Trouxe os olhos tão ricos de beleza,
O coração tão cheio de harmonia,
De quanto havia em terra, mar e céus,

Que interpretando a sós a Natureza:
Dentro de mim esplêndido fulgia,
Num circulo de luz, teu nome, oh Deus!

Fonte:
Manoel D'Arriaga. Cantos Sagrados. Lisboa/Portugal: Manoel Gomes, 1899.

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