A CRUZ E O PARA-RAIOS
Da velha catedral, esbelta e rendilhada,
Votada a ser mansão do Deus, autor do mundo,
Na flecha a mais gentil, campeia abençoada
A cruz do Redentor, da Galileia o oriundo!
Nos ímpetos da fé, cortantes como a espada,
O ungido do Senhor, d'olhar cavo e iracundo,
Aponta á multidão, humilde e ajoelhada,
Por seu supremo amparo a cruz, no azul profundo!
Em nome dela exalta a fé porque a aviventa,
E diz mal da razão que tenta, em vãos ensaios,
Dos céus arrebatar a luz, de que é sedenta!
Mas do alto onde ela está, que causa até desmaios,
Temendo que a derrube o fogo da tormenta:
Em nome da Razão lhe põe um para-raios!...****************************************
ALVORADA
Algures brilha o sol no azul do firmamento,
E expõe com resplendor das coisas o espetáculo!
Aqui, na escuridão, o mundo é tabernáculo
Onde os frágeis mortais descansam um momento!...
Além, o Sol incita o mundo ao movimento,
Á luta pela Vida, o esteio e o sustentáculo
Desde o ser da Razão ao mínimo animáculo,
Aqui, o sono esparsa em todos novo alento!
Ó Luz! tu és do mundo a Força, a Alma, a Vida,
A essência do meu Ser, a minha própria Ideia,
O próprio Deus, talvez!... Beleza, Amor, Verdade!
Atrás de Ti caminha a Terra, mãe querida!
Bendito caminhar! Por Ti minha alma anseia!...
Bem vinda sejas, pois, oh doce claridade!****************************************
AMOR E PROVIDÊNCIA
Enquanto eu, alta noite, velo e lido,
Por vós mantendo inúmeros cuidados,
Dormis, caros filhinhos, sossegados
Em torno a mim o sonho apetecido!
Dormis?! sonhais de certo... e eu pai envido
Meus esforços por ver realizados
Vossos sonhos gentis e perfumados:
Ampara-vos um peito estremecido.
Outro Alguém faz por nós o que eu vos faço:
Com suprema bondade e sapiência,
Rege os mundos que rolam pelo espaço!
Esse Alguém é o Amor por excelência,
O formidável e invisível braço,
E o olhar que nunca dorme – a Providência!****************************************
MUNDO INTERIOR
Matéria ou Força, Lei ou Divindade
Quem quer que seja que dirige o mundo,
Esparsa em tudo o espírito fecundo
Do Sumo Bem – Beleza, Amor, Verdade.
À luz desta Santíssima Trindade,
Cercado d'esplendor, clamo e jucundo,
Sorri-me em volta o universo; ao fundo,
Por síntese Suprema, a Humanidade!
Dos homens rujam temporais medonhos...
Que em mim, no meu labor, do Bem sedento,
Meus dias correm límpidos, risonhos!
Estrelas que brilhais no firmamento!
É menos bela a vossa luz que os sonhos
Que gera na minha alma o Pensamento!****************************************
O QUE EU VI
Saí um dia a contemplar o mundo,
Por ver quanto há de belo e quanto brilha
Na múltipla e gloriosa maravilha,
Que anda suspensa em o azul profundo!
Vi montes, vales, árvores e flores,
Límpidas aguas, múrmuras torrentes,
Do grande mar as músicas plangentes,
Dos céus sem fim os trêmulos fulgores!
Trouxe os olhos tão ricos de beleza,
O coração tão cheio de harmonia,
De quanto havia em terra, mar e céus,
Que interpretando a sós a Natureza:
Dentro de mim esplêndido fulgia,
Num circulo de luz, teu nome, oh Deus!
Fonte:
Manoel D'Arriaga. Cantos Sagrados. Lisboa/Portugal: Manoel Gomes, 1899.
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sexta-feira, 7 de agosto de 2020
Manuel de Arriaga (Poemas Avulsos)
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