quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Onze


FETO DE ÚTERO RESSENTIDO

O AVÔ DE JULINHO, SEU LISBÓRIO, é um homem na casa dos sessenta anos. Possui os cabelos grisalhos e o rosto bastante enrugado. Viaja de ônibus leito, do Rio de Janeiro para São Paulo, acompanhado de seu inseparável neto, um guri de  seis anos, esperto e tremendamente traquinas.

Em face do pequeno ser muito levado e extremamente desobediente, ninguém aguenta ficar com ele. Em razão disso, para onde seu Lisbório precise se locomover, leva a tira colo, o alegre ganapo (garoto).

Órfão da mãe, que morreu com seu nascimento, desde então o cacafelho (pirralho) passou a ser criado e cuidado por esse avô. O pai da criança, com o óbito repentino da mulher (filha de seu Lisbório), se mandou, tomando lugar incerto e não sabido. Nunca mais deu as caras, sequer para saber se o pirralho precisava de alguma coisa.

Dona Geringonçinha, a esposa de seu Lisbório, mais nova que ele três anos, ajuda no que pode. A mulher ama o menino como se filho de seu sangue fosse. Todavia, como o moleque se mostra levado da breca e apronta todas, ela não lhe dá muita trela.

Seu Lisbório, maquinista aposentado da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, em face de possuir algumas propriedades de aluguel em Santíssimo, bairro situado na Zona Oeste do Rio de Janeiro, todo mês carece estar presente na cidade maravilhosa e, claro, com ele vem o infante sapeca de contrapeso.

Na verdade, apesar do avanço e da disparidade dos anos, igualmente o espevitado ama o avô, gosta dele de coração e, dentro das suas limitações de criança, ajuda o velho quando o mesmo necessita de ajuda.

Ocupando as poltronas um e dois, tardão da noite, enquanto o Tribus segue seu destino, o párvulo (criança) passa o tempo sem pregar os olhos, se entretendo com seus joguinhos preferidos no celular do avô. O longevo dorme a sono solto, roncando e babando.  

No meio da estrada, seu Lisbório acorda com sede. Espia pela janela e percebe, estar o ônibus relativamente um pouco distanciado da parada Graal Alemão, em Queluz. Para variar, aquela noite, em face de um acidente envolvendo duas carretas, a Via Dutra se faz morosa e lenta, com ambas as vias bastante congestionadas.

—  Julinho, acha aqui na bolsa a caneca do seu avô e vai pegar água. Estou com uma sede danada.

Obediente, o petiz sobe na poltrona, alcança o bagageiro e dele retira a caneca acondicionada numa sacola de plástico e corre até os fundos, buscar o líquido precioso para o avô.

Dois ou três minutos depois, retorna com o recipiente cheio, até a boca:

— Toma, vô.

Seu Lisbório passa a mão na caneca e toma tudo de uma só golada:

— Meu lindo, volta lá e enche de novo...

O pequerrucho não espera segunda ordem. Sai tropeçando corredor adentro, se segurando entre as poltronas, sumindo em direção ao banheiro. Não imprime delongas em retornar. Da mesma forma que a primeira, o pequerrucho vira tudo de uma só vez:

— Chega, vô?

— Ainda não, meu gatinho lindo. Sem fazer muito barulho, me arranja mais um pouquinho. Cuidado para não perturbar os demais passageiros, ou cair e se machucar, ou pior, dar um banho em alguém:

— Tá bom, vô.

Julinho reaparece, e novamente entrega a caneca ao senhorzinho que bebe com gosto e sofregamente:

— Se eu falar pra você que ainda sou capaz de beber umas dez... Você faria a gentileza de ir lá, de novo, e atender seu velho avô chato?

O miúdo ralha com o abrandecido fazendo um gesto de contrariedade a estas palavras:

— O senhor não é chato, vovô. Eu vou buscar quantas canecas o senhor quiser...

Julinho volta a desaparecer por mais alguns minutos, todavia, desta vez, retorna ao ponto de partida com a caneca vazia. O avô indaga o que aconteceu:

— O que houve, meu piá?  Não me diga que a água acabou?

O rapazinho vacila antes de responder.

— Fale, Julinho, a fonte secou?

Julinho, então, faz a revelação surpreendente e imprecisa, o que deixa o avô literalmente furioso e descontroladamente fora de si:

— Acabou não, vô!

— Então, por que não me trouxe a água?

— Quando eu abri a porta do banheiro, topei com uma moça sentada no poço!

Fonte:
Texto enviado pelo autor, do livro
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

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