segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Dez


CONVERSA DE BOTAS BATIDAS

O SUJEITO ATRAVESSOU a rua e veio diretamente em direção onde o Miguelino estava à espera de um ônibus que o levaria de volta para casa. Do nada, sem mais nem menos, o desconhecido sem se dar ao luxo de dizer boa tarde, mandou a indagação.  Uma meio besta, sem nexo.

— Amigo, desculpe a ousadia. Posso lhe fazer uma pergunta?

Miguelino antes de responder mediu o estranho de cima até embaixo.

— Já fez. Mas tudo bem. À vontade. Em que posso ajudar?

— Desculpe de novo. Curiosidade. Você se acha um bom motorista?

— Sim.

— Sabe tudo sobre trânsito?

— Dá para o gasto.

— Saberia explicar a diferença de um motorista excelente para um condutor bom de roda, ou discernir um volante ruim de um chofer literalmente péssimo?

Miguelino pasmou. Era só o que faltava, àquela hora da tarde.

— Como assim? Que diferença é essa exatamente a que o prezado se refere?

— Bem. O que quero, na verdade saber, é o que discerne, ou o que faz a diferença entre um ás do volante, de um bom motorista para um condutor mais ou menos e aquele simplório “James” considerado extremamente porcalhão e relapso?  

Miguelino pensou um instante.   

— O tempo da carta dele. Eu acho...

— Carta? Que carta?  

— A carta de dirigir.

— Você quer dizer carteira?           

— Isso.

— Ou seria licença? Talvez você prefira chamar o documento de habilitação, pois não?

Miguelino manteve a alternativa que achava a mais conveniente. Insistiu, pois, com firmeza no que havia falado.   

— Carta.

— Carta nada tem a ver com volante — observou o desconhecido passando da discussão à semântica. — Ou tem?

— É uma das maneiras de expressar quem vive com as mãos na massa.

— Na massa ou no volante?

Miguelino deduziu que o cidadão não batia bem da bola.  Louco de pedra ou algo pior.

— Complicado, isso — disse evasivamente.

— Nem tanto... — insistiu o recém-chegado. Há quanto tempo o amigo dirige?

— O quê?   

— Há quanto tempo dirige?

Miguelino chutou um período qualquer, sem pensar. Que diferença faria?

— Dez anos.            

— Já bateu em alguém?

— Não. Fui batido.

— Atropelou alguém?

— Me atropelaram.

O anônimo riu dessa resposta.

— Atropelado? Por quem?

Miguelino mandou bala na primeira idiotice que lhe veio à mente.

— Por um cara de cavalo.

O estrangeiro se desfez num gesto engraçado. Sorriu matreiro.

— Por um cara de cavalo?  Como é lá isso?

— Um cara lá ia pela pista no mesmo sentido que eu, puxando um vavalo...

— Como? — Vavalo ou cavalo?

— Perdão. Quis dizer cavalo.

— Pensei tivesse ouvido errado. Lembra que tipo de cavalo?

Miguelino começou a perder a paciência. “Que raios de homem chato!”.

— De quatro patas.

O outro não deixou por menos. Insistiu:

— E ele tinha rabo?

— Sim. Um bem comprido. Parecia nervoso.

— Quem parecia nervoso? O homem ou o cavalo?

Miguelino pirou na batatinha. De vez. Decididamente aquele não seria seu final de tarde de voltar para o aconchego do lar em paz e sossegado.

— O rabo!

O heteróclito coçou a orelha esquerda.

— Não entendi a colocação...

— Eu explico. O rabo do bicho não parava de se abanar.

— Amigo, um detalhe. Bicho ou animal?

— Os dois.

— E o elemento que conduzia o cavalo, lhe prestou assistência?

Miguelino nessa altura do campeonato concluiu que efetivamente o sujeito gozava da sua pessoa. Antes de mandar o infeliz para os quintos, resolveu se fazer de desentendido. Aquiesceu pressuroso:

— Ele não me deu nenhuma assistência.  O cavalo sim. Foi gentil, amável, cortês. Nunca vi igual. Com todo cuidado me acomodou nas costas dele e marchou a todo galope para o pronto socorro. Seu dono ficou sentado no meio fio, a cabeça enterrada nas mãos. Parecia chorar a criatura.

— Sei, sei... E no pronto socorro, como se deu a chegada?

— Um corre-corre danado.

— Como assim?

Miguelino não deixou a prosa esfriar. Levou na gozação. A mesma que parecia vir de seu interlocutor.   

— O cavalo, suado em bicas, entrou direto na área da recepção.  Correu até o balcão e lascou uma boa tarde à moça. Nessa hora, as pessoas que estavam ali, aguardando, na fila de espera, ao darem de cara com aquele animal, ficaram apavoradas, espantadas e boquiabertas. A debandada, por conta disso, foi geral. Um corre-corre dos diabos.

— Imagino! Continue...

— O tumulto se agigantou mais ainda quando o pobre quadrúpede, furioso com a tal da atendente —, acredite meu amigo, ela permaneceu alguns minutos totalmente congelada —, acho que a ficha custou a cair e ela de fato entender que um cavalo falava com ela, literalmente. Estatelada, como se tivesse visto o tinhoso, gritou. O cavalo, agoniado e aflito, deu uma relinchada básica, empinou estabanadamente para trás e quase não conseguiu me suster em seu colo. Não fui ao chão, por pouco.

— Colo? Você disse colo?!

— Lombo. Lombo. A debandada, nesse ponto, se generalizou mais ainda. Em questão de um abrir e piscar de olhos, não ficou viva alma na mesa da admissão para contar história. O segurança de plantão pulou por uma janela e levou junto uma funcionária que passava pano no chão. Ah, havia um senhor de cadeira de rodas...

— E ai? Vá em frente, complete...

— Esse senhor caiu sentado no cimento.

— Como? Não estava na cadeira de rodas?

— Por certo. Levada pelo medo, ou sei lá o que, a cadeira saiu em corrida desenfreada, arrastando, junto um balão de oxigênio.

— Inacreditável! Simplesmente inacreditável!

— E não parou ai.

— Teve mais?

Miguelino procurou causar impacto no que diria a seguir. Fez pose. Extremamente sério e compenetrado, lembrava uma lagartixa solitária numa parede esverdeada, mais solitária que uma mulher recém-enviuvada.

— Estou perguntando. Ficou mudo? Perdeu a língua? Desembucha. Teve mais?

— Claro. Alguém lá fora chamou a polícia.

— Sim?

— O guarda chegou, e como não tinha ninguém pra fazer perguntas, um dos militares, ato contínuo, prendeu o cavalo e eu tive que ir junto na viatura para prestar esclarecimentos na delegacia.

— Credo, que loucura! — E ai, continue. — Ao chegar à frente da autoridade...?

— Não me lembro de mais nada.

— Como assim, não se lembra de mais nada?!

Miguelino trouxe à baila a carta que escondia na manga.

— O despertador na cabeceira da minha cama começou a tocar... e eu, sobressaltado, acordei.

Fonte:
Texto enviado pelo autor, de:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

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