CONVERSA DE BOTAS BATIDAS
O SUJEITO ATRAVESSOU a rua e veio diretamente em direção onde o Miguelino estava à espera de um ônibus que o levaria de volta para casa. Do nada, sem mais nem menos, o desconhecido sem se dar ao luxo de dizer boa tarde, mandou a indagação. Uma meio besta, sem nexo.
— Amigo, desculpe a ousadia. Posso lhe fazer uma pergunta?
Miguelino antes de responder mediu o estranho de cima até embaixo.
— Já fez. Mas tudo bem. À vontade. Em que posso ajudar?
— Desculpe de novo. Curiosidade. Você se acha um bom motorista?
— Sim.
— Sabe tudo sobre trânsito?
— Dá para o gasto.
— Saberia explicar a diferença de um motorista excelente para um condutor bom de roda, ou discernir um volante ruim de um chofer literalmente péssimo?
Miguelino pasmou. Era só o que faltava, àquela hora da tarde.
— Como assim? Que diferença é essa exatamente a que o prezado se refere?
— Bem. O que quero, na verdade saber, é o que discerne, ou o que faz a diferença entre um ás do volante, de um bom motorista para um condutor mais ou menos e aquele simplório “James” considerado extremamente porcalhão e relapso?
Miguelino pensou um instante.
— O tempo da carta dele. Eu acho...
— Carta? Que carta?
— A carta de dirigir.
— Você quer dizer carteira?
— Isso.
— Ou seria licença? Talvez você prefira chamar o documento de habilitação, pois não?
Miguelino manteve a alternativa que achava a mais conveniente. Insistiu, pois, com firmeza no que havia falado.
— Carta.
— Carta nada tem a ver com volante — observou o desconhecido passando da discussão à semântica. — Ou tem?
— É uma das maneiras de expressar quem vive com as mãos na massa.
— Na massa ou no volante?
Miguelino deduziu que o cidadão não batia bem da bola. Louco de pedra ou algo pior.
— Complicado, isso — disse evasivamente.
— Nem tanto... — insistiu o recém-chegado. Há quanto tempo o amigo dirige?
— O quê?
— Há quanto tempo dirige?
Miguelino chutou um período qualquer, sem pensar. Que diferença faria?
— Dez anos.
— Já bateu em alguém?
— Não. Fui batido.
— Atropelou alguém?
— Me atropelaram.
O anônimo riu dessa resposta.
— Atropelado? Por quem?
Miguelino mandou bala na primeira idiotice que lhe veio à mente.
— Por um cara de cavalo.
O estrangeiro se desfez num gesto engraçado. Sorriu matreiro.
— Por um cara de cavalo? Como é lá isso?
— Um cara lá ia pela pista no mesmo sentido que eu, puxando um vavalo...
— Como? — Vavalo ou cavalo?
— Perdão. Quis dizer cavalo.
— Pensei tivesse ouvido errado. Lembra que tipo de cavalo?
Miguelino começou a perder a paciência. “Que raios de homem chato!”.
— De quatro patas.
O outro não deixou por menos. Insistiu:
— E ele tinha rabo?
— Sim. Um bem comprido. Parecia nervoso.
— Quem parecia nervoso? O homem ou o cavalo?
Miguelino pirou na batatinha. De vez. Decididamente aquele não seria seu final de tarde de voltar para o aconchego do lar em paz e sossegado.
— O rabo!
O heteróclito coçou a orelha esquerda.
— Não entendi a colocação...
— Eu explico. O rabo do bicho não parava de se abanar.
— Amigo, um detalhe. Bicho ou animal?
— Os dois.
— E o elemento que conduzia o cavalo, lhe prestou assistência?
Miguelino nessa altura do campeonato concluiu que efetivamente o sujeito gozava da sua pessoa. Antes de mandar o infeliz para os quintos, resolveu se fazer de desentendido. Aquiesceu pressuroso:
— Ele não me deu nenhuma assistência. O cavalo sim. Foi gentil, amável, cortês. Nunca vi igual. Com todo cuidado me acomodou nas costas dele e marchou a todo galope para o pronto socorro. Seu dono ficou sentado no meio fio, a cabeça enterrada nas mãos. Parecia chorar a criatura.
— Sei, sei... E no pronto socorro, como se deu a chegada?
— Um corre-corre danado.
— Como assim?
Miguelino não deixou a prosa esfriar. Levou na gozação. A mesma que parecia vir de seu interlocutor.
— O cavalo, suado em bicas, entrou direto na área da recepção. Correu até o balcão e lascou uma boa tarde à moça. Nessa hora, as pessoas que estavam ali, aguardando, na fila de espera, ao darem de cara com aquele animal, ficaram apavoradas, espantadas e boquiabertas. A debandada, por conta disso, foi geral. Um corre-corre dos diabos.
— Imagino! Continue...
— O tumulto se agigantou mais ainda quando o pobre quadrúpede, furioso com a tal da atendente —, acredite meu amigo, ela permaneceu alguns minutos totalmente congelada —, acho que a ficha custou a cair e ela de fato entender que um cavalo falava com ela, literalmente. Estatelada, como se tivesse visto o tinhoso, gritou. O cavalo, agoniado e aflito, deu uma relinchada básica, empinou estabanadamente para trás e quase não conseguiu me suster em seu colo. Não fui ao chão, por pouco.
— Colo? Você disse colo?!
— Lombo. Lombo. A debandada, nesse ponto, se generalizou mais ainda. Em questão de um abrir e piscar de olhos, não ficou viva alma na mesa da admissão para contar história. O segurança de plantão pulou por uma janela e levou junto uma funcionária que passava pano no chão. Ah, havia um senhor de cadeira de rodas...
— E ai? Vá em frente, complete...
— Esse senhor caiu sentado no cimento.
— Como? Não estava na cadeira de rodas?
— Por certo. Levada pelo medo, ou sei lá o que, a cadeira saiu em corrida desenfreada, arrastando, junto um balão de oxigênio.
— Inacreditável! Simplesmente inacreditável!
— E não parou ai.
— Teve mais?
Miguelino procurou causar impacto no que diria a seguir. Fez pose. Extremamente sério e compenetrado, lembrava uma lagartixa solitária numa parede esverdeada, mais solitária que uma mulher recém-enviuvada.
— Estou perguntando. Ficou mudo? Perdeu a língua? Desembucha. Teve mais?
— Claro. Alguém lá fora chamou a polícia.
— Sim?
— O guarda chegou, e como não tinha ninguém pra fazer perguntas, um dos militares, ato contínuo, prendeu o cavalo e eu tive que ir junto na viatura para prestar esclarecimentos na delegacia.
— Credo, que loucura! — E ai, continue. — Ao chegar à frente da autoridade...?
— Não me lembro de mais nada.
— Como assim, não se lembra de mais nada?!
Miguelino trouxe à baila a carta que escondia na manga.
— O despertador na cabeceira da minha cama começou a tocar... e eu, sobressaltado, acordei.
Fonte:
Texto enviado pelo autor, de:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
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