INIMIGOS SILENCIOSOS
DEPOIS DE muito relutar a boa senhora dona Gertrudes resolveu ligar para a secretária e marcar uma consulta com seu clínico geral. No dia aprazado, lá foi ela ter com o especialista, um pouco angustiada, ruborizada e muito, muito embaraçada e confusa:
— Bom dia, doutor.
— Bom dia, dona Gertrudes — gritou o médico. — Quanto tempo! Estava sentindo a sua falta. A última vez em que a senhora esteve aqui o doutor Godofredo ainda gozava de boa saúde:
— Como? Ah sim, é verdade.
— Por favor, sente-se. O que me conta de bom?
— Como disse, doutor?
— Pedi para a senhora se sentar (voltou o médico a falar alto) e me contar o que há de bom.
— Ah claro, de bom. Entendi. Doutor, de bom... De bom, nada. As mesmas baboseiras de sempre. Tenho, porém, um problema novo... Nem sei por onde começar... Nesta idade, quase beirando os oitenta e nove... Sinto um certo constrangimento e... Confesso, estou com vergonha do senhor.
— Que é isso, dona Gertrudes — voltou a berrar o esculápio. — Vergonha de mim?
— Que foi que disse, doutor?
— A senhora disse estar com vergonha de mim?
— Nunca. Jamais. Mas o senhor deve ter em mente que apesar de ser meu médico há mais de trinta anos, os motivos que me trouxeram aqui antes eram outros e claro, não tão sérios.
— Vamos fazer o seguinte: faça de conta que no meu lugar a senhora está vendo seu marido, o falecido e saudoso doutor Godofredo —, que o Altíssimo o tenha em sua santa bondade. Abra o jogo. Não pense em mim... Concentre-se...
— Dá para repetir, doutor?
— Eu disse para a senhora se concentrar.
— Me encontrar com quem?
— Se concentrar, dona Gertrudes. Se concentrar. Pense em seu falecido marido, doutor Godofredo.
— O que tem o Godofredo? Ele morreu...
Novo grito do médico se fez ouvir:
— Olhe para mim e veja na minha pessoa o retrato do doutor Godofredo. E me conte o que a trouxe aqui.
— Entendi. Sabe o que é doutor?
— Só saberei se a senhora me contar o que está realmente acontecendo.
— Doutor... Misericórdia, que horror! Estou cheia de gases.
— Isso é natural, dona Gertrudes. Todos nós temos problemas com gases. Eu, particularmente, minha esposa, meus filhos, minhas netas, minha secretária, até nossos bichinhos de estimação...
— Como disse, doutor? Repita, por gentileza.
— Falei, dona Gertrudes, que seus gases são naturais. Todos nós temos problemas com gases.
— Eu sei, eu sei, acredite doutor, não me aborrece a coisa, ou o fato em si. Me deixa avechada a coisa. Ou melhor, as coisas...
— As coisas?
— Isso mesmo, doutor. E são estas coisas que me causam estranheza. Eles...
— Eles, dona Gertrudes? Eles quem?!
— Quem falou em quem?
— A senhora falou que certas coisas lhe causam estranheza. E mencionou eles. Eles quem, dona Gertrudes?
— Ah, sim, me lembrei. Os traques...
— Ah agora entendi. Claro, os traques, ou as flatulências...
— O pior vem agora, doutor. Eles nunca cheiram.
— Pois sim!... Isso é normal.
— O que foi que disse, doutor? Isso é anormal?
— Não dona Gertrudes, eu disse que isso é NORMAL, NORMAL.
— Por que o senhor está gritando, doutor? Não sou surda!
— Desculpe, dona Gertrudes.
— E são literalmente silenciosos.
— Silenciosos?
— Completamente, doutor. Não fazem barulho.
— Um bom quadro, dona Gertrudes. Um bom quadro. Silenciosos e sem odores acres.
— Horrores a que? Doutor, dá para o senhor falar mais alto?
O médico voltou a aumentar um pouco mais o tom da sua voz:
— Eu disse odores, dona Gertrudes. Odores.
— As dores... As dores o quê?!
— Perdão. Quis dizer que não exalam mau cheiro.
— Ah! Pois bem, doutor. Desde que cheguei ao seu consultório, contando o tempo que passei na recepção —, soltei aproximadamente uns trinta puns. Sua secretária, tão amável —, serviu várias xícaras de café e água gelada. Coitadinha, não reclamou, nem fez cara de deboche. Significa dizer que não sentiu nenhum cheiro esquisito nem torceu o nariz ao ouvir minhas bufas.
— Honestamente não vejo onde reside a sua preocupação, dona Gertrudes.
— Vou tentar ser mais clara. Posso?
— Por favor!
— O senhor está me ouvindo bem?
— Perfeitamente, dona Gertrudes.
— Enquanto estou aqui a falar com o senhor, soltei meus repolhos intestinais... Desculpe... Soltei mais uns quarenta ventinhos. O senhor não percebeu.
Sempre sorridente o médico prescreveu uma receita:
— Compre estas pílulas na farmácia e tome uma de duas em duas horas durante uma semana. Após esse prazo, retorne e marque um novo horário com a Fabiana. Vamos ver que progresso conseguimos.
— Conseguimos progresso? Que progresso?
— Dona Gertrudes, compre o remédio que lhe prescrevi.
— Comprarei, doutor. Assim que sair de seu consultório. Fico muito agradecida, doutor. Passe bem.
Uma semana depois a velha Gertrudes retornou ao consultório:
— Doutor, não sei que droga me aviou. Por Nossa Senhora do Sagrado Coração de Maria. Meus gases, desde então, passaram a feder terrivelmente. Carniça, doutor, carniça. Já sentiu, alguma vez, em sua vida, cheiro de carniça?
O médico começou a rir:
— Do que está rindo, doutor? Perguntei se sentiu cheiro de carniça. Um horror, doutor! No meu caso, não estou aguentando mais ficar perto de mim. Parece que morri e esqueceram de me enterrar. Todavia, devo esclarecer um detalhe importantíssimo: eles, ao menos, continuam silenciosos e comportados.
— Dona Gertrudes, graças a Deus embrenhamos pelo caminho certo. Conseguimos curar definitivamente a sua sinusite. Agora que vencemos esta etapa, vamos dar uma atenção maior e mais acentuada aos seus ouvidos.
— Não entendi, doutor. Aos meus ouvidos?
— Sim dona Gertrudes. Vou encaminhá-la, agora mesmo ao otorrinolaringologista.
— Eletricista? Doutor, não estou entendendo. O que tem a ver um eletricista comigo?
— Eu disse que vou encaminhá-la a um otorrinolaringologista.
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
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