segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Doze



INIMIGOS SILENCIOSOS

DEPOIS DE muito relutar a boa senhora dona Gertrudes resolveu ligar para a secretária e marcar uma consulta com seu clínico geral. No dia aprazado, lá foi ela ter com o especialista, um pouco angustiada, ruborizada e muito, muito embaraçada e confusa:

—  Bom dia, doutor.

—  Bom dia, dona Gertrudes — gritou o médico.  —  Quanto tempo! Estava sentindo a sua falta. A última vez em que a senhora esteve aqui o doutor Godofredo ainda gozava de boa saúde:

— Como?  Ah sim, é verdade.

—  Por favor, sente-se. O que me conta de bom?

—  Como disse, doutor?

—  Pedi para a senhora se sentar (voltou o médico a falar alto) e me contar o que há de bom.

— Ah claro, de bom. Entendi. Doutor, de bom... De bom, nada. As mesmas baboseiras de sempre. Tenho, porém, um problema novo... Nem sei por onde começar... Nesta idade, quase beirando os oitenta e nove... Sinto um certo constrangimento e... Confesso, estou com vergonha do senhor.

—  Que é isso, dona Gertrudes — voltou a berrar o esculápio. — Vergonha de mim?

—  Que foi que disse, doutor?

— A senhora disse estar com vergonha de mim?

— Nunca. Jamais. Mas o senhor deve ter em mente que apesar de ser meu médico há mais de trinta anos, os motivos que me trouxeram aqui antes eram outros e claro, não tão sérios.

—  Vamos fazer o seguinte: faça de conta que no meu lugar a senhora está vendo seu marido, o falecido e saudoso doutor Godofredo —, que o Altíssimo o tenha em sua santa bondade. Abra o jogo. Não pense em mim... Concentre-se...

—  Dá para repetir, doutor?

— Eu disse para a senhora se concentrar.

— Me encontrar com quem?

— Se concentrar, dona Gertrudes. Se concentrar. Pense em seu falecido marido, doutor Godofredo.

— O que tem o Godofredo? Ele morreu...

Novo grito do médico se fez ouvir:

— Olhe para mim e veja na minha pessoa o retrato do doutor Godofredo. E me conte o que a trouxe aqui.

— Entendi. Sabe o que é doutor?

— Só saberei se a senhora me contar o que está realmente acontecendo.

—  Doutor... Misericórdia, que horror! Estou cheia de gases.

—  Isso é natural, dona Gertrudes. Todos nós temos problemas com gases. Eu, particularmente, minha esposa, meus filhos, minhas netas, minha secretária, até nossos bichinhos de estimação...

—  Como disse, doutor? Repita, por gentileza.

— Falei, dona Gertrudes, que seus gases são naturais. Todos nós temos problemas com gases.

  — Eu sei, eu sei, acredite doutor, não me aborrece a coisa, ou o fato em si. Me deixa avechada a coisa. Ou melhor, as coisas...

—  As coisas?

—  Isso mesmo, doutor. E são estas coisas que me causam estranheza. Eles...

—  Eles, dona Gertrudes? Eles quem?!

—  Quem falou em quem?

— A senhora falou que  certas coisas lhe causam estranheza. E mencionou eles. Eles quem, dona Gertrudes?

 — Ah, sim, me lembrei.  Os traques...

—  Ah agora entendi. Claro, os traques, ou as flatulências...

—  O pior vem agora, doutor. Eles nunca cheiram.

—  Pois sim!... Isso é normal.

—  O que foi que disse, doutor? Isso é anormal?

— Não dona Gertrudes, eu disse que isso é NORMAL, NORMAL.

— Por que o senhor está gritando, doutor?  Não sou surda!

— Desculpe, dona Gertrudes.

— E são literalmente silenciosos.

—  Silenciosos?

—  Completamente, doutor. Não fazem barulho.

— Um bom quadro, dona Gertrudes. Um bom quadro. Silenciosos e sem odores acres.

—  Horrores a que? Doutor, dá para o senhor falar mais alto?

O médico voltou a aumentar um pouco mais o tom da sua voz:

— Eu disse odores, dona Gertrudes. Odores.

— As dores... As dores  o quê?!

—  Perdão. Quis dizer que não exalam mau cheiro.

— Ah! Pois bem, doutor. Desde que cheguei ao seu consultório, contando o tempo que passei na recepção —, soltei aproximadamente uns trinta puns. Sua secretária, tão amável —, serviu várias xícaras de café e água gelada. Coitadinha, não reclamou, nem fez cara de deboche. Significa dizer que não sentiu nenhum cheiro esquisito nem torceu o nariz ao ouvir minhas  bufas.

— Honestamente não vejo onde reside a sua preocupação, dona Gertrudes.

—  Vou tentar ser mais clara. Posso?

—  Por favor!

— O senhor está me ouvindo bem?

— Perfeitamente, dona Gertrudes.

— Enquanto estou aqui a falar com o senhor, soltei meus repolhos intestinais... Desculpe... Soltei mais uns quarenta ventinhos. O senhor não percebeu.

Sempre sorridente o médico prescreveu uma receita:

—  Compre estas pílulas na farmácia e tome uma de duas em duas horas durante uma semana. Após esse prazo, retorne e marque um novo horário com a Fabiana. Vamos ver que progresso conseguimos.

—  Conseguimos progresso? Que progresso?

— Dona Gertrudes, compre o remédio que lhe prescrevi.

— Comprarei, doutor. Assim que sair de seu consultório. Fico muito agradecida, doutor. Passe bem.

Uma semana depois a velha Gertrudes retornou ao consultório:

—  Doutor, não sei que droga me aviou. Por Nossa Senhora do Sagrado Coração de Maria. Meus gases, desde então, passaram a feder terrivelmente. Carniça, doutor, carniça. Já sentiu, alguma vez, em sua vida, cheiro de carniça?

O médico começou a rir:

— Do que está rindo, doutor?  Perguntei se sentiu cheiro de carniça. Um horror, doutor! No meu caso, não estou aguentando mais ficar perto de mim. Parece que morri e esqueceram de me enterrar. Todavia, devo esclarecer um detalhe importantíssimo: eles, ao menos, continuam silenciosos e comportados.

— Dona Gertrudes, graças a Deus embrenhamos pelo caminho certo. Conseguimos curar definitivamente a sua sinusite. Agora que vencemos esta etapa, vamos dar uma atenção maior e mais acentuada aos seus ouvidos.

— Não entendi, doutor. Aos meus ouvidos?

—  Sim dona Gertrudes. Vou encaminhá-la, agora mesmo ao otorrinolaringologista.

— Eletricista? Doutor, não estou entendendo. O que tem a ver um eletricista comigo?

— Eu disse que vou encaminhá-la a um otorrinolaringologista.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

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