terça-feira, 4 de agosto de 2020

Rachel de Queiroz (O Pó ao Pó)

    
Meu amigo Afrânio Soares faz uma enquete sobre incineração de mortos e eu lhe pirateio a ideia, porque esse assunto de queima de defunto sempre foi muito da minha predileção. Não sei por que se faz objeção a esse método de disposição de cadáveres que tem a favor de si uma tradição milenar e inúmeros outros elementos de conveniência, economia e estética.

Sobre a tradição milenar, não digo novidade nenhuma: a pira era instituição fundamental em grande parte das civilizações primitivas. Na velha antiguidade todos os povos cremavam os seus mortos — com exceção dos egípcios que os embalsamavam, dos judeus que os depunham em sepulcros e dos chineses que os enterravam, Mas os gregos, que foram os mestres do nosso mundo, usavam a pira para consumir os seus mortos, como ainda hoje o fazem indianos e mais povos asiáticos.

Diz-se que foi o cristianismo que acabou com a incineração dos cadáveres, em respeito pelo corpo humano, batizado e remido por Nosso Senhor, e destinado a refazer-se na Ressurreição Final. Mas acho que é até heresia, duvidar-se dos poderes de Deus, pensar que Ele não poderia ressuscitar um homem das suas cinzas, se o pode ressuscitar depois de consumido pela terra, devorado pelos bichos, dissolvido pelas águas.

E aqueles que são mortos pelo fogo, em incêndios, por lança-chamas, em guerra? Então esses perdem o direito de voltar à carne no dia do Juízo Final?

Com a incineração dos corpos acaba-se a maioria dos ritos fúnebres, os velórios, a lenta decomposição de alguém que amamos exposto no caixão à luz e ao calor dos círios, ao cheiro adocicado da cera derretida e das flores que murcham. E isso ainda não é nada, quando pensamos na repugnante operação que se vai processar debaixo da terra, até que só fiquem do morto os ossos limpos do esqueleto.

Já o fogo purifica tudo. Apressa, dignifica. Neste instante você é defunto, um instante mais é cinza. Pó ao pó, como diz a Escritura. E às suas cinzas, ao próprio resto pulverizado do seu invólucro mortal, podem-se dar os destinos mais variados jogá-las ao mar, onde serão dissolvidas nas grandes águas, atirá-las à terra, onde talvez ajudem a brotar uma flor ou uma fruta e, mesmo, quem sabe, a piedade dos filhos há de guardá-las em santuário doméstico, pequeno depósito, relicário do ausente querido.

Acaba-se o horror dos cemitérios. Os mortos já não serão importunos nem incômodos — já não haverá o problema angustioso de alojá-los. A gente morre, quem nos ama chora, reza, fecha-se o caixão, abre-se o forno — e está tudo liquidado. Rapidamente. Limpamente.

Por mim, não quero outro destino para esta fatigada carcaça. Joguem a cinza pelo mundo, porque o mundo todo eu amei; e talvez algum punhadinho seja levado pelo vento até ao Ceará.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

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