quarta-feira, 12 de agosto de 2020

José Lucas de Barros (Caderno Poético) II

 

CONSELHO DE AMIGO

Não lamentes, amigo, a sorte dura!
Solta esse copo e sai do botequim!
O amor é forte, mas também tem fim,
e um dia seca o lago da amargura.

Também já fui apaixonado assim!
Como tu, já sofri essa tortura...
Fui vítima também da desventura
de amar demais a quem sorriu de mim!

Minha amada também era morena...
Nos lábios tinha o riso da verbena
e um ninho de paixões ardendo ao peito.

Essa mulher traiu-me… E, por vingança,
eu tentei arrancá-la da lembrança,
mas nunca pude... E vivo satisfeito.

(Caicó/RN, 1956)
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MEU BEM-TE-VI


Do meu tempo de menino,
recordo saudosamente
um bem-te-vi que, contente,
improvisava seu hino
no juazeiro pequenino
que muito perto ficava
do mocambo onde eu morava
e escutava, com alarde,
o canto que toda a tarde
nos prados se derramava.

O tempo lerdo e ronceiro
foi passando, foi passando,
e eu feliz me deleitando
com a voz do belo troveiro;
porém houve um paradeiro
naquele terno cantar,
quando eu triste, a meditar,
perguntava até às relvas:
- Por que o músico das selvas
Deixou de me visitar?

Farto de sofrer sozinho,
mergulhei na mata um dia
para ver se ainda ouvia
o trinar do passarinho;
visitei ninho por ninho,
mas a esperança perdi
quando comprovei que, ali,
alguns meninos, em festa,
com mil flechadas de besta*
mataram meu bem-te-vi!

(Serra Negra do Norte/RN, 1955)
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(*) Besta (pronúncia aberta) é uma arma rústica formada de arco, cabo e
corda com que se disparam setas ou flechas.

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O ABORTO

Duas pessoas,
talvez se amando,
emocionadas
de tantos beijos,
cantam poemas
de encantamento,
e nem se lembram
que estão gerando
um novo ser
que também sonha
cantar um dia
o hino da vida,
como seus pais.
Só não se entende
que dos enlevos
de encantadoras
horas de amor
nasça depois
a ideia-crime
do triste aborto
que faz morrer
pobre inocente,
sem ter ainda
sequer nascido!

(Natal/RN, 1990)
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VIDA DE CIGANO


Vive o cigano a vagar
como eterno retirante,
um pobre judeu errante
sem esperança e sem lar;
não tem casa pra morar
durante um simples verão;
o seu travesseiro é o chão,
onde se estende arrasado...
Cigano velho cansado
Nas estradas do sertão!

Entre pedras e buracos
anda o pobre peregrino,
carregando, sem destino,
sua mobília de cacos;
na solidão dos barracos
inda existe o violão
que plange a triste canção
do trovador do passado,
cigano velho cansado
nas estradas do sertão!


Tem ele a pele tostada
do forte sol que o castiga;
na face, toda a fadiga
da longa e dura jornada;
já não ganha quase nada
numa leitura de mão.
É sempre a desilusão
que não sai mais de seu lado...
Cigano velho cansado
Nas estradas do sertão!


Montando a cavalgadura
que já não dá mais um trote,
só parece Dom Quixote
com sua triste figura;
se algum negócio procura
para conquistar o pão,
inda o chamam de ladrão,
de trapaceiro e safado,
cigano velho cansado
nas estradas do sertão!


Ao rigor da luta inglória
por desgraçados caminhos,
colheste muitos espinhos
sem os louros da vitória,
porém, nos anais da História,
desta civilização,
com certeza, meu irmão,
teu nome será lembrado,
cigano velho cansado,
nas estradas do sertão!


(Natal/RN, 1985)

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014

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