EIS QUE se instalava na porta da cozinha o meu consultório sentimental:
— Doutor, estou precisando de um conselho seu.
Imediatamente me veio à cabeça o conselho de Manuel Bandeira a uma jovem, que lhe perguntou o que ele aconselharia a quem quisesse iniciar-se na literatura: o de não pedir conselhos a ninguém. É o único conselho que sei dar.
Mas o homem, pelo jeito, não parecia estar pensando em iniciar-se na literatura:
— Eu sei que o senhor entende dessas coisas e sempre quis me ajudar.
Eu, entender dessas coisas? Devagar com o andor que o santo é de barro: que coisas? O que estava pintando mesmo era uma facada daquelas fundas, eu que me preparasse. Sempre quis ajudá-lo apenas a arranjar lugar melhor para passar a noite, como faxineiro do prédio onde eu morava. Era aflitivo sabê-lo escondido na garagem como rato: a água com que lavava os carros acabava inundando o cantinho onde ficava a cama dele, os sapatos saíam boiando. Vivia gripado. Por obra de que às vezes vinha a sugestão, diga-se a bem da verdade sempre atendida, de uns trocados para comprar remédio, tomar uma injeção de vitamina C no botequim ali da esquina. Só que agora a conversa era mais enfeitada, a doença mais grave, ia exigir no mínimo um transplante.
— O senhor é homem entendido — insistiu ele: — Pode me dar um adjutório...
A palavra “adjutório” me rendeu: dava um ar de algo vagamente religioso, como se ele me pedisse uma oração qualquer que o livrasse da sua aflição. Fosse o que fosse, agora eu lhe daria o que tivesse no bolso, e ainda o que não tivesse — no que dependesse de mim naquela noite ele tomaria um porre e esvaziaria a alma até o rabo.
Adjutório! E eu, que jamais tivera oportunidade de usar aquela palavra!
Mas o adjutório que ele queria de mim era outro. As coisas de que me julgava entendedor não se compravam com dinheiro e nem encontrariam na bebida a solução.
Limpando a garganta, começou por declinar a sua qualidade de noivo: havia ficado noivo.
— Ah, sim... Noivo — murmurei idiotamente, sacudindo a cabeça.
— E acontece que tem um sujeito lá no prédio onde trabalha minha noiva que está se fazendo de engraçado com ela. O que é que eu faço?
E essa, agora? Propor-lhe que baixasse o braço no tal sujeito, sobre violentar meus princípios de sagrado repúdio à violência, seria uma insensatez: via-se que eu só faria humilhá-lo, era magrinho e mirrado, não aguentava uma gata pelo rabo. Quando muito seria capaz de surrar a própria noiva, partindo da suposição de conivência dela com as graças do outro, desde que tomasse como provocação feminina o fato de ela própria as haver denunciado. Foi, pelo menos, o que ele logo confirmou:
— Toda noite ela vem com essa história: ora é uma piadinha que ele disse, ora é um papo furado pra cima dela. Ontem a coisa engrossou: teve o descaramento de dizer pra minha noiva que me largasse de banda e se mandasse com ele. Como é que eu posso dormir com um troço desses na cabeça, doutor? Tenho que tomar uma atitude, que diabo.
Aconselhei-o como pude: que tomasse uma atitude, sim, mas que tivesse calma, não perdesse a cabeça, para a coisa não dar em desgraça. Quem sabe se pedisse ao outro com jeito, que parasse de chatear? Sem que se humilhasse, hein? Com calma, mas com energia, sendo preciso usasse uma ameaça velada, já de longe, como por exemplo a expressão “de homem para homem”... Hein? Afinal de contas, que diabo, a noiva dele vai ver que estava exagerando, só para fazer ciúme, convinha apurar primeiro, não fosse partindo logo para a ignorância.
— É isso mesmo, doutor, é isso mesmo — ele concordava sério.
Ao fim, para surpresa minha, falou que, pensando bem, o melhor era acabar com aquele noivado logo de uma vez, não ia “dar mesmo em nada”. E para provar que aproveitara bem o adjutório, aproveitou também a ocasião, e, de homem para homem, me pediu cem cruzeiros emprestados.
Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar! RJ: Record, 1985.
— Doutor, estou precisando de um conselho seu.
Imediatamente me veio à cabeça o conselho de Manuel Bandeira a uma jovem, que lhe perguntou o que ele aconselharia a quem quisesse iniciar-se na literatura: o de não pedir conselhos a ninguém. É o único conselho que sei dar.
Mas o homem, pelo jeito, não parecia estar pensando em iniciar-se na literatura:
— Eu sei que o senhor entende dessas coisas e sempre quis me ajudar.
Eu, entender dessas coisas? Devagar com o andor que o santo é de barro: que coisas? O que estava pintando mesmo era uma facada daquelas fundas, eu que me preparasse. Sempre quis ajudá-lo apenas a arranjar lugar melhor para passar a noite, como faxineiro do prédio onde eu morava. Era aflitivo sabê-lo escondido na garagem como rato: a água com que lavava os carros acabava inundando o cantinho onde ficava a cama dele, os sapatos saíam boiando. Vivia gripado. Por obra de que às vezes vinha a sugestão, diga-se a bem da verdade sempre atendida, de uns trocados para comprar remédio, tomar uma injeção de vitamina C no botequim ali da esquina. Só que agora a conversa era mais enfeitada, a doença mais grave, ia exigir no mínimo um transplante.
— O senhor é homem entendido — insistiu ele: — Pode me dar um adjutório...
A palavra “adjutório” me rendeu: dava um ar de algo vagamente religioso, como se ele me pedisse uma oração qualquer que o livrasse da sua aflição. Fosse o que fosse, agora eu lhe daria o que tivesse no bolso, e ainda o que não tivesse — no que dependesse de mim naquela noite ele tomaria um porre e esvaziaria a alma até o rabo.
Adjutório! E eu, que jamais tivera oportunidade de usar aquela palavra!
Mas o adjutório que ele queria de mim era outro. As coisas de que me julgava entendedor não se compravam com dinheiro e nem encontrariam na bebida a solução.
Limpando a garganta, começou por declinar a sua qualidade de noivo: havia ficado noivo.
— Ah, sim... Noivo — murmurei idiotamente, sacudindo a cabeça.
— E acontece que tem um sujeito lá no prédio onde trabalha minha noiva que está se fazendo de engraçado com ela. O que é que eu faço?
E essa, agora? Propor-lhe que baixasse o braço no tal sujeito, sobre violentar meus princípios de sagrado repúdio à violência, seria uma insensatez: via-se que eu só faria humilhá-lo, era magrinho e mirrado, não aguentava uma gata pelo rabo. Quando muito seria capaz de surrar a própria noiva, partindo da suposição de conivência dela com as graças do outro, desde que tomasse como provocação feminina o fato de ela própria as haver denunciado. Foi, pelo menos, o que ele logo confirmou:
— Toda noite ela vem com essa história: ora é uma piadinha que ele disse, ora é um papo furado pra cima dela. Ontem a coisa engrossou: teve o descaramento de dizer pra minha noiva que me largasse de banda e se mandasse com ele. Como é que eu posso dormir com um troço desses na cabeça, doutor? Tenho que tomar uma atitude, que diabo.
Aconselhei-o como pude: que tomasse uma atitude, sim, mas que tivesse calma, não perdesse a cabeça, para a coisa não dar em desgraça. Quem sabe se pedisse ao outro com jeito, que parasse de chatear? Sem que se humilhasse, hein? Com calma, mas com energia, sendo preciso usasse uma ameaça velada, já de longe, como por exemplo a expressão “de homem para homem”... Hein? Afinal de contas, que diabo, a noiva dele vai ver que estava exagerando, só para fazer ciúme, convinha apurar primeiro, não fosse partindo logo para a ignorância.
— É isso mesmo, doutor, é isso mesmo — ele concordava sério.
Ao fim, para surpresa minha, falou que, pensando bem, o melhor era acabar com aquele noivado logo de uma vez, não ia “dar mesmo em nada”. E para provar que aproveitara bem o adjutório, aproveitou também a ocasião, e, de homem para homem, me pediu cem cruzeiros emprestados.
Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar! RJ: Record, 1985.
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