Júlio de Sá passou e repassou distraidamente o guardanapo sobre os beiços carnudos, distendidos num vago sorriso tranquilo. O companheiro de mesa, que ouvira calado a abundante narrativa, aconchegou a gola erguida do sobretudo, e, com uma voz cujo timbre e cuja toada diziam, antes e melhor que as palavras, a índole de uma filosofia, de resignação e de comodismo:
— Mas isso cansa, ó Júlio, não cansa? De todas essas aventuras, de todas essas idas e vindas, viagens, festas, pândegas e idílios, o que tens tirado, decerto, é a conclusão de que não há como a gente viver na sua terra, com os seus...
Júlio de Sá cravou os olhos nos do comensal, carregando o cenho.
— Estás doido. Eu quero lá saber de sossego! Eu quero lá saber de calma, de paz, de vida metódica! Não nasci para isso, meu velho.
E o outro, apertando com as mãos a gola do sobretudo, o guarda-chuva entre os joelhos:
— Gostas então de uma vida desordenada e áspera?
— Quanto mais, melhor. A vida de carneiro não me tenta. A agitação é uma necessidade do meu temperamento. E mais: é uma maneira por que eu entendo, cá por umas ideias, que devo viver a minha vida. Se eu não fosse um exuberante por natureza, seria um agitado por convicção. Para mim a vida que merece ser vivida é a vida ultra-movimentada: movimento incessante, em todos os sentidos; expansão física, expansão afetiva, expansão dos instintos, expansão do espírito; viagens e lutas, paixões e negócios, prazeres, jogo, carraspanas, arte, mulheres, esporte, tudo, e tudo de pressa, sem parar em coisa alguma nem em parte alguma.
— Então, é convicção tua...
— Convicção, sim, senhor.
— Convicção, não, senhor. Dize que tu gostas, que o teu temperamento te leva por aí, que o teu feitio dá para essa vida dispersiva e doida. Convicção, é que não. Que diabo de convicção pode ser essa, ó Júlio! Tu confundes os termos...
— Não confundo nada. O que estou é com a boca seca. Este diabo de vinho... "Garçom", mais meia garrafa de cerveja aqui para este senhor, e vê se me arranjas aí um "Bourgogne" gelado, mais decente do que essa coisa que me deste há pouco. Digo-te que não confundo nada. Repito que, se assim não vivesse por temperamento, viveria assim por efeito de uma maneira minha de encarar as coisas. Não sou um simples praticante, sou um teorista da vida superativa. A existência repousada, assente, dentro de um quadro prefixado, com princípios gerais imutáveis e com um programa particular miudamente estabelecido, é apenas um atentado contra a natureza. A vida do homem não pode ser uma construção arquitetônica, com terreno escolhido a dedo, com plantas matematicamente organizadas, com materiais conhecidos, com destinação certa. Toma nota deste teorema negativo: a nossa vida não é uma construção. A nossa vida é apenas isto: vida — uma coisa cuja essência e cujo sentido nos escapam, que nos é superior, que nunca conseguiríamos abarcar nos limites da nossa consciência, porque esta não lhe apreende senão umas pálidas faúlhas, nem subjugar à nossa vontade, que só é forte quando se lhe submete a ela...
Todos os princípios morais com que nós pensamos dominar a matéria e o instinto se repartem em duas classes: ou são inerentes à própria índole das coisas, e nesse caso não valia a pena gastar tanto tempo e tanto esforço em compendiá-los, ou são puro artifício humano, inútil e ridículo como a pretensão de um sujeito que fosse pregar normas de movimento e de orientação ás ondas do mar. De resto, nem podemos saber quais são os princípios que existem na própria natureza e quais os que ela desconhece e rejeita. Não ha normas de vida! Nenhuma norma. Ninguém sabe se o santo que passou pelo mundo empanturrado de virtudes, dizendo palavras de concórdia e de piedade, distribuindo benefícios aos homens, não terá feito maior mal ao homem do que o bandido de alma opaca e de mãos mortíferas... Aquele que espalha esmolas e consolações pode garantir e suavizar a existência a alguns que consideraria menos dignos dela; o que cria exaltações e represálias em torno de si coopera para a formação de corações fortes, de almas altivas, de energias indômitas.
E, de pé, batendo no ombro do amigo estarrecido:
— A vida é para ser vivida. Viva cada qual a sua vida. A maior virtude que um homem pode ambicionar é a de viver — amplamente, desassombradamente, sem restrições, sem liames, sem dobras, sem receios, deixando livre ao próprio ser o máximo de expansão a que ele possa atingir. Aí tens a minha moral, e aí tens o que eu faço: vivo, num esforço contínuo, numa contínua agitação, sempre fremente, inquieto e anelante, sempre envolto na maravilhosa nuvem das sensações que me mandam os sentidos hiperestesiados, tudo vendo, tudo palpando, tudo experimentando. Vivo, numa palavra, durante o meu fugitivo minuto de existência, a própria vida eterna, magnífica e indecifrável do universo. — E sabes que mais? Vamos embora.
Júlio de Sá tomou o chapéu, e, acendendo um charuto:
— Vais para casa? Pois vamos juntos. Eu não vou a parte nenhuma. Talvez recolha também. E os dois, braço dado, saíram da claridade e da tepidez do bar, mergulhando na cerração da rua, ponteada de pequenos borrões de luz. Júlio de Sá, as mãos enfiadas nos bolsos, a bengala a emergir de um deles, encostada ao ombro, apoiava-se rudemente ao braço do companheiro pachorrento, e falava sempre, numa voz cada vez mais pastosa:
— Tu não vives, meu caro Lucas, tu não conheces a vida...
O outro tentou uma réplica. Não conhecia a vida que ele, Júlio, levava e exaltava, mas conhecia-a por uma outra face, menos fascinante talvez, mas com certeza mais nobre. Era a vida apagada, subterrânea e sofredora do maior número, a vida feita de sacrifícios quotidianos, de desejos contidos, de aspirações imoladas, de sonhos recalcados, de trabalho tenaz, absorvente, esmagador, opiniático, heroico...
E sublinhava com o gesto o ultimo qualificativo. Tinha a sua poesia, pois não tinha? Mas o Júlio, feroz:
— Poesia! A poesia do Dever, hein? Que raio de poesia tu achas numa vida artificial, toda de restrições duras, que te foi imposta sem discussão nem consulta, e que assim aceitas e praticas? A poesia da canga... a poesia da polé...
Gaguejando estas coisas, Júlio sacudia pesadamente o braço do amigo. E, num repelão forte, que o levou de brusco à parede:
— É isso que tu achas belo, meu pedaço de asno? O amigo pachorrento olhou-o na cara, insultado, e fez o gesto de quem queria desvencilhar-se e ir embora. Mas Júlio de Sá reteve-o. Ora essa! Já não se podia brincar! Deixasse de tolices. Amigos sempre....
Agora Júlio de Sá, com o chapéu atirado para a nuca, pendurava-se ao braço do camarada, resmungando desculpas entremeadas de elogios e de indiretas. Estava maçador, carinhoso e irritante. Sucumbido sob a dura prova, Lucas ia e vinha, aos boléus, jungido ao braço pesado do boêmio, ao longo da interminável rua deserta. Passou um carro. Lucas meteu-se nele com o importuno, resignado a sofrê-lo até que o largasse em casa. Abandoná-lo não podia, não seria decente. Tinha de ser naquela hora o seu arrimo; era o seu protetor forçado. O super-homem dependia, naquele momento, do seu sacrifício; sem este, talvez tivesse de dormir na rua, como um beberrão vulgar, ou num posto de polícia.
Aos solavancos do carro, sob o ar frio que zunia na coberta, Júlio espalhou-se molemente nas almofadas, as pálpebras descidas sobre os olhos mortiços. E quando chegaram à casa, saltou sozinho, quase firme, e bateu. Uma luz amarela veio de dentro, por baixo da porta, sobre a soleira. Em seguida silenciosamente, a porta abriu-se, e apareceu o vulto de uma velhinha, vagamente lambido pelo clarão, alongando de sob o xale traçado o braço que sustentava o lampião caseiro. Sorria, curvada e trêmula, na longa resignação de um velho sacrifício. Era a mãe do notívago.
Mas havia no seu semblante e na sua voz um vago e suave ressentimento. Júlio, como quem está acostumado, não lho percebeu. Percebeu-o e compreendeu-o vivamente o Lucas, que com enfado se atirou para o fundo do carro, depois de uma despedida apressada.
— Adeus, ó, super-homem!
— Adeus, ó trouxa! Medita no que eu te disse, mastigou Júlio de Sá, cuspindo grosso.
De dentro do carro, numa volta, Lucas ainda viu o filósofo, com um pé na soleira, a acender pachorrentamente um cigarro sobre a chaminé do lampião, que a velhinha lhe baixara à altura do nariz.
Fonte: O Poeteiro
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