DONA MARGARIDA, aos oitenta e sete anos completos e bem vividos, foi em espaços idos, a derradeira voz bradativa do grande passado vitorioso em que viveu. Com o avanço dos cabelos brancos e sendo devorada pelos janeiros inexoráveis, deixou de ser a linda e encantadora senhora de outrora, o pedestal sobre o qual constituiu todos os momentos de sua trajetória pontilhada de glórias e triunfos.
Vive, hoje, a pobrezinha, aparafusada aos cuidados desastrosos de uma miséria indigesta, enfurnada numa casinha humilde, contendo apenas um quarto, uma sala cozinha e banheiro simples, sem os benfazejos da modernidade e pior, sem saúde, dinheiro, sem amigos mais chegados, caminhando, vez em quando, em companhia de seu fiel escudeiro, um pau de arrimo dos cafundós do ronca.
Passa seus dias sentada em uma cadeira de balanços doada pela Comunidade. A pedido dela, vizinhos próximos, fazem a gentileza de ora colocarem o assento na varanda, ora na sala. Do alpendre ela espia a rua larga que levanta uma poeira dos diabos, quando passa um carro. Quando na sala, revê retratos anosos, numa tentativa de relembrar seus pares, muitos dos quais se mudaram de mala e cuia para o pequeno cemitério local.
O resto das fotografias, são vultos encanecidos e carcomidos pelos sumiços das efígies, cujos rostos se evaporaram em processos amarelentos em conformidade com os desgastes dos tempos. Seus trezentos e sessenta e cinco dias de cada novo ano que chega, fluem tristes e vazios, descoloridos e de prazeres cada vez mais desfalecidos. A vida desta pobre alma, na verdade, não tem outra saída; outro porque; senão chorar e esperar pacientemente pela hora de ir; de vez; experimentar a mortalha que a acompanhará para a viagem sem regresso à terra dos sepulcros selados.
Cansada de tudo, distante dos familiares, atormentada pelas frialdades que a degradam, divorciada dos filhos e netos, esquecida pelas noras, genros e irmãs, acha que a hora do adeus já deveria ter chegado. “Será que Jesus se esqueceu de mim?”. De repente, agarra a pensar numa maneira rápida e rasteira de acabar, de vez, com a própria existência. Sem dar na vista, logicamente e para não alardear a atenção dos bisbilhoteiros. Com este pensar meio que macabro, se arrasta numa eternidade pesada, o corpo apertado num vestido comprido de chita esmaecido até o prédio de uma UPA que o prefeito construiu recente no antigo prédio da rodoviária. Quer ser atendida por um clinico geral, por um cardiologista e, de lambuja, por um geriatra.
Custa realizar seus intentos, apesar da ancianidade (os velhinhos não tem vez neste país), a marcar um horário com os médicos pretendidos. Consegue. O derradeiro deles, se faz muito requisitado e a sua agenda praticamente superlotava a cada dia. Finalmente, depois de muitas idas e vindas, quase seis meses diariamente na portaria da UPA, pinta uma brecha com o cardiologista. Ao se avistar, finalmente com o postremo (o último dos três), e falar, ou melhor, de repetir incansavelmente os esboços de suas dores e desprazeres, quase ao cimo da consulta, indaga, como quem não quer nada, qual a posição exata de um órgão importante, que bate desde sempre dentro de seu peito: o coração.
O especialista (aquele dia) de plantão, meigo e carinhoso, que a atende, em atenção ao avançado das rugas e refolhos da paciente, acha por bem examina-la com acuidade e lhe dar a informação pleiteada. O papo descontraído rola por uns vinte minutos (apesar da agenda complicada com pessoas gritando na recepção) e, em resumo, se sucedeu mais ou menos assim:
- Então, doutor!. O que me trouxe até sua beira e dos outros dois anteriores, foi o seguinte. Como o senhor mesmo me disse, no geral estou ótima. Aguento, ainda, seguir adiante, sem que careça me preocupar com o caixão. Preciso saber, do senhor, pequenos detalhes com relação a determinados pontos fracos do meu corpo....
- Sou todo ouvidos, minha linda. Pode perguntar o que quiser. Como os demais colegas que a atenderam, procurarei fazer o meu melhor.
- Agradeço, doutor a sua paciência e compreensão.
O médico muda um pouco o rumo da prosa:
- Antes de lhe dar os esclarecimentos que deseja, se me permite – diz o doutor, a certa altura -, posso lhe confessar um particular? Sabia que a senhora lembra muito, mas muito mesmo, uma avó minha, que faz uma fileira de anos não vejo?
- É, doutor? – Me fale um pouco dessa pessoa.
- Eu gostava de morar com ela. Foi quem me criou. Esteve comigo o tempo todo, praticamente a minha infância inteira.
- Entendo...
- Olhando agora, para a senhora -, imagine, me veio à memória a ternura da voz dela, não sei explicar o motivo. Vi, na senhora, os mesmos olhos calmos que ela possuía, o rosto como se torneado por mãos hábeis, a boca bem feita...
Faz uma pausa, sorri e continua:
- De nascença carregava um acantoma* do lado do nariz. Que loucura! Percebo o vento batendo em seus cabelos, meu avô chegando dos serviços da fazenda e a ajudando a colocar a mesa para o almoço...
- Continue, meu filho...
- A senhora, nestes poucos minutos em que está aqui sentada, me fez surgir, do nada, um amontoado de coisas que trago guardadas dentro de recordações que, por mais que eu queira, ou tente esquecer, não me deixam...
- Doutor, acredite. Fico feliz em saber que, aos oitenta e sete, ainda sirvo para alguma coisa.
- Que é isso, dona Margarida. A senhora é uma mulher e tanto. Eu diria que vale ouro.
Dona Margarida sorri e coloca a sua mão direita sobre as do médico:
- Neste ponto lhe dou completa e inteira razão, meu jovem. Quando moça, aí pela faixa dos dezoito ou vinte, por valer, realmente ouro, acabei dando muito no prego para um mancebo alto e forte. A criatura tinha um bigodinho à Charlie Chaplin. Me encantei com ele. Amor ao primeiro colar de pérolas. Trabalhava na Caixa Econômica Federal. Me comeu, aos poucos, todas as joias de valor.
Ambos se abrem em farta gargalhada a esta tirada quase infantil daquela pobre criatura desgastada pelo furor dos encarquilhos:
- Que bom que a senhora existe, dona Margarida. Ganhei meu dia proseando com a senhora. Mudando as páginas dos nossos assuntos, o que a senhora queria, de fato, saber?
Dona Margarida se pôs séria:
- Doutor, me dissipa uma curiosidade. Vou lhe fazer a mesma pergunta que fiz ao clínico geral e ao geriatra aqui mesmo nesta sala. Hoje, pela minha idade, sei que o corpo da gente sofre mudanças e se transforma... Enfim, pela minha compleição esquelética, uma dúvida me persegue: qual a posição exata do meu coração?
O doutor cachina* gostosamente alto e explica:
- O seu coração, dona Margarida está situado na reta da sua linha mamária, ou seja, para que a senhora compreenda, ele se acha atrás do osso esterno (este osso é um osso igual a uma gravata). Aliás, é ele que segura todas as suas costelas. Este osso, ou esta gravata, está voltado para o seu lado esquerdo. Para não confundir a sua cabecinha branca, grosso modo, eu simplificaria dizendo que o seu coraçãozinho se acha alojado e batendo perfeitamente bem dois dedinhos abaixo do seu seio esquerdo.
Dia seguinte, dona Margarida se torna manchete de primeira página no jornal de maior circulação da cidade. Com direito a foto e entrevista exclusiva. O assunto se fez tão envolvente e inesperado, tão atraído e flanqueado, que pega e não só pega, deixa a população inteira do bairro em pavorosa repulsão e desespero:
"MULHER IDOSA AO TENTAR SUICÍDIO ACERTA O SEU JOELHO ESQUERDO”.
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* Vocabulário:
Acantoma = tumor benigno que se forma a partir da camada espinhosa da epiderme.
Cachina = rir, zombar, gargalhar.
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: AMC-GUEDES, 2020.
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