sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Malba Tahan (A Esposa dos Dois Maridos)

 

 Tenho tua imagem nos meus olhos; o teu nome nos meus lábios; a tua lembrança no meu coração. Como julgas, então, que podes estar ausente de mim?
Ben Al Nasir (1163-1223)


Em nome de Alá, Clemente e Misericordioso…

Foi em Saida, (1) a pitoresca cidade da Argélia, que ouvi, pela primeira vez, o nome do justo cádi(2) Rafik ben-Najm (3) Fares Hadjdjat.

Um beduíno(4) chamado Abib, guia de caçadores, homem vivo, falador, confidenciou-me, certa manhã, na mesquita, junto à fonte das abluções:

— O cádi Rafik ben-Najm é um notável ulemá, um sábio. Sábio e justo. Justo e profundamente humano. Não existe, nas terras argelinas, homem mais digno da nossa admiração e do nosso respeito.

E Abib, sempre exuberante, narrou-me espantosa aventura, ocorrida em Mascara, na qual o cádi Rafik brilhava como autêntico herói das Mil e uma noites. Outros casos, mais estranhos, ouvi (uma semana depois) de dois rumis, compradores de fumo.

Mais tarde, em Argel, conversando com um guitarrista, chamado Saliba ou Taliba (não me lembro bem), recebi novos informes sobre o famoso juiz Rafik, o sábio.

— É extraordinário — confirmou com veemência o guitarrista. — Não é possível encontrar, entre os muçulmanos, homem tão surpreendente. Conhece até as letras misteriosas do Livro de Alá. (5)

Aqueles elogios (ditados pela sinceridade popular) despertaram em mim vivo desejo de conhecer o prestigioso e justo cádi Rafik ben-Najm Fares Hadjdjat.

Quando estive, pela terceira vez, em Khalfallah, (6) vendendo louças, relógios, tecidos e comprando pistache (serviço exclusivo do xeque Abd el Rahmã), tive a excelsa ventura de conhecer pessoalmente o justo cádi Rafik ben-Najm.

Será interessante, ó irmão dos árabes, (7) contar o caso como ocorreu.

Na faina diária, em busca de bons negócios, eu havia saído com dois criadores de ovelhas, de Maalif, (8) a fim de levá-los à presença do xeque Abd el-Rahmã, o homem mais violento e impulsivo que conheci até hoje. Ao atravessar pequena povoação nativa, avistei inquieta multidão que se amontoava na porta de uma tenda. Achavam-se ali mercadores árabes, berberes do deserto, nômades esfarrapados e até mulheres. Indaguei do que se tratava.

— É o sábio e justo cádi que está julgando — disse-me um berbere, maneta, de turbante sujo, remordendo dois galhinhos de raque. (9)

— O justo cádi Rafik ben-Najm?

— Sim, esse mesmo — corroborou com voz meio cantada o meu informante. — Já está no terceiro caso.

Voltei-me para os homens de Maalif e disse-lhes numa decisão inapelável:

— Esperem por mim. Um instante.

E meti-me no meio dos curiosos. Depois de alguns empurrões e muitas pragas (três pragas e meia para cada empurrão), consegui chegar ao interior da Kaimat al-hadl (Tenda da Justiça), que era, aliás, ampla e confortável, com sete panos listrados. Reconheci logo o honrado e prestigioso cádi. Estava sentado, pernas cruzadas, em grande almofada, e tinha à sua direita, sobre pequena banqueta, soberbo exemplar do Alcorão. Abria-se, na frente do juiz, largo círculo vazio. Para aquele círculo eram conduzidos os réus, as testemunhas, os acusadores e os litigantes. Atrás do justo cádi, também sentados à moda árabe, achavam-se seus dois auxiliares e cinco guardas armados com espadas recurvas de aço indianizado. Os secretários anotavam, em grandes livros de capa escura, os nomes que interessavam, os fatos que ocorriam e as decisões do cádi. No alto, no centro de belo escudo prateado, lia-se esta sentença:

Fihilm alauiát ua adlihem iajed addoafa amaluon (Na bondade e na justiça dos fortes reside toda a esperança dos fracos).

Observei o justo cádi. Era homem de meia-idade; discreto e impecável nos trajes; rosto largo, barba preta e bem-cuidada. Fisionomia simpática; olhar expressivo. Os seus gestos eram serenos. Deixava, ao mais rápido exame, a impressão de ser pessoa culta e finamente educada.

Um árabe agigantado, de roupa escura, turbante amarelo e semblante carrancudo, perfil adunco de coruja, que se achava de pé na primeira fila dos assistentes, depois de consultar uma folha de papel, anunciou em voz alta:

— Vai ser julgado agora, pelo nobre e honrado cádi Rafik ben-Najm Fares Hadjdjat, representante de nosso governador, o caso da jovem Najat (10) bint-Djelfa, (11) que é reclamada por dois maridos. (Ele proferira o nome feminino — Na-já — separando bem as sílabas.)

Tudo parecia seguir, para mim, um rumo bem curioso. O argeliano do semblante carrancudo bateu palmas. Aqui e ali brotavam, entre os presentes, gestos de impaciência e curiosidade. Uma rapariga, seguida de dois homens, atravessou, aos arrancos, o grupo compacto dos curiosos e foi colocar-se no centro do círculo livre, em frente ao cádi.

Era aquela a jovem de Djelfa que os azares da vida levaram, com dois maridos, ao tribunal. Devia ter, no máximo, vinte ou 22 anos. Seus olhos eram negros bem rasgados e vivos; os cabelos castanhos pareciam brilhar sob o lenço de seda azul que lhe cobria a cabeça. Ostentava um fustam (12) discreto e benfeito. Em seu braço esquerdo, moreno e roliço, rebrilhavam três largas pulseiras de ouro.

À direita da graciosa Najat postou-se, logo, o primeiro marido. Era um tipo forte, muito moço, de aparência sadia, rosto avermelhado. Trazia sobre a cabeça, retorcido para a esquerda, um gorro sujo de pele de coelho. Os seus trajes descuidados davam a impressão desagradável de pessoa grosseira e desleixada.

O outro, o “segundo marido”, ficou, um pouco enleado, à esquerda da esposa. Era bem mais velho e bem diferente do primeiro. Teria, talvez, cinquenta ou 55 anos (sanat). Sentia-se a distinção inconfundível de sua figura, desde o turbante de seda (elegante e discreto) até os sapatos escuros, de bico fino, que reluziam em seus pés. Fazia-se acompanhar de soberbo cão vermelho de fina raça (como era belo o animal!). Logo que o dono parou (ao lado de Najat), o cão deitou-se, com solenidade, a seus pés.

Tudo recaiu em silêncio. Não bolia o mais leve sussurro.

— Liatakalam az-zauj al-aual! (Que fale o primeiro marido!) — ordenou o “justo cádi” (13) com voz serena.

O jovem do rosto avermelhado, para atender o juiz, passou a mão pelo queixo, ajeitou a cinta, cuspiu para o lado, relanceou um olhar de ódio ao rival e assim falou, desenvolto, de semblante iroso:

— Chamo-me Hassã Rida e sou natural de Oran, (14) onde, ainda em Djelfa, em trabalhos de estrada, conheci Najat, filha de Jamil, (15) o carpinteiro. Casamo-nos. Fomos muito felizes. Juntamente com seus pais, levei-a, mais tarde, para Blida; (16) de Blida fomos para Argel. Nessa cidade conheci vários mercadores gregos. Desejoso de viajar pelo mundo e enriquecer depressa, coloquei-me a serviço dos aventureiros gregos e parti, em grande veleiro, para Kubros. (17) Deixei Najat aos cuidados de minha sogra. Não fui feliz nessa viagem. Ocorreu uma desgraça. O nosso navio, em alto-mar, foi atacado por piratas turcos e incendiado. Juntamente com vários companheiros fui aprisionado pelos piratas e vendido, como escravo, em Constantinopla. Passei três anos sofrendo todos os horrores do cativeiro. Durante a minha longa e involuntária ausência, a mãe de minha esposa fez constar, entre amigos e parentes, que eu havia perecido em naufrágio. Preocupada em abiscoitar o dote que esse velho oferecia, concedeu-lhe Najat (falsamente viúva) em casamento. A culpada de tudo foi minha detestável sogra. Lanat — Allah alaiha! (Que o castigo de Deus caia sobre ela!) Volto agora, ó justo cádi, e venho reclamar minha esposa. Procurei-a loucamente, por várias cidades; andei como um chacal pelos oásis; sofri fome e sede no deserto e vim, afinal, encontrá-la aqui, nesta terra hospitaleira. Sou o marido legítimo de Najat, e esse homem — apontou para o rival — não a quer deixar. Não a quer deixar.

Calou-se, neste ponto, o primeiro marido. Fios de baba desciam-lhe lentos aos cantos da boca.

— Desejo ouvir agora o segundo marido — declarou o justo cádi Rafik ben-Najm. E tamborilava com os dedos da mão direita sobre a capa do Alcorão.

Ao ouvir a intimação do juiz, o segundo marido, depois de ligeiro salam, (18) começou, esboçando um sorriso descorado:

— Tomo Alá como testemunha de minhas palavras (19). Chamo-me Chahin Nadli Hanoun. Dedico-me ao comércio de joias e disponho de casa bem instalada em Argel, mas resido, atualmente, nesta cidade, por motivo de saúde. Tendo ido, certa vez, a Ain-Taya (20) adquirir joias e antiguidades, conheci, no mercado, essa jovem Najat, filha de Jamil. Enamorei-me dela. Informado de que se tratava de uma viúva, cujo marido perecera em naufrágio, falei ao respeitável Jamil, seu pai, e pedi-a em casamento. Obrigou-me Jamil a pagar o dote; não fiz a menor objeção a tal exigência, e entreguei ao pai de minha noiva o dobro da quantia exigida. O nosso casamento realizou-se em Argel, perante o cádi e cinco testemunhas. Sou, portanto, diante da lei, o marido legítimo de Najat, filha de Jamil.

Proferidas tais palavras, inclinou-se, com simplicidade, e acariciou a cabeça do majestoso cão, que já dormitava a seus pés.

Ouvida a narrativa do segundo marido, o digno magistrado voltou-se para a jovem e interpelou-a com mansidão, em tom natural e conciliador:

— E tu, Najat, filha de Jamil, o carpinteiro, que dizes diante de tudo isso? Queres continuar com o teu atual esposo, Chahin Nadli Hanoun, ou preferes voltar para a companhia de Hassã Rida, o teu primeiro marido?

— Justo cádi — respondeu a moça com voz cheia de meiguice, envolvendo suas palavras num sorriso de simpatia —, nada posso resolver. Não desejo, neste momento, decidir do meu destino. O generoso Sidi (21) Chahin é bom, extremamente delicado para mim; vivo bem em sua companhia. — Aqui fez ligeira pausa. E concluiu com candura: — Hassã jura, pela sombra da Caaba, que me quer também…

— Por Alá, justo cádi — acudiu o segundo marido com veemência, apontando para o rival com um meio sorriso, sem expressão: — Eu sei muito bem por que ele a quer. Eu sei muito bem, ó venerável ulemá! (22) Najat é bondosa; é diligente; é meiga; é prestativa. Esse moço julga-se poeta e escreve, todos os dias, versos e mais versos. Najat, para agradá-lo, lia com paciência os versos e decorava os poemas. É por isso que ele a quer!

— Perdão, justo cádi! — revidou asperamente o primeiro marido, transbordante de ódio. — Eu sei muito bem por que esse velho a quer! Najat é boa dona de casa; quieta e modesta; prepara com perfeição os pratos mais finos. Um cabrito assado, com recheio, temperado pelas mãos hábeis de Najat, é uma delícia; o kichk (23) preparado por Najat pode ser servido em palácio, ao sultão do Marrocos! Najat não esquece as plantas e as flores da casa, e cuida até do cão de Sidi Chahin. É por isso que ele a quer, justo cádi! É por isso!

E repetiu, num gesto de repulsivo nojo:

— É por isso que ele a quer, ó justo cádi!

— Está bem — atalhou o juiz, encerrando o debate. — Está bem! Já ouvi todos os interessados. Cumpre-me resolver esse caso de acordo com a lei, sem esquecer a delicada situação de constrangimento dessa jovem reclamada por dois maridos que, em tudo e por tudo, diferem profundamente um do outro.

Fez-se profundo silêncio na Tenda da Justiça. Ficaram todos imóveis. Não se ouvia o mais leve sussurro. O árabe agigantado, do turbante amarelo, com os braços cruzados, aguardava, impassivelmente, a sentença. Só o cão de Sidi Chahin, despertado com os gritos do primeiro marido, agitava sua longa cauda avermelhada.

Nesse momento, senti que me puxavam, com força, pelo braço. Era um dos beduínos de Maalif.

— Venha depressa! — segredou-me nervoso, aflito. — Venha depressa!

O xeique (24) Abd el-Rahmã, seu patrão arreliento, já se encontra, lá fora, à sua espera. Está furioso! Por Alá! Depressa! O xeque quer falar-lhe agora mesmo.

A situação era grave. Algo de anormal havia ocorrido com os nossos rebanhos. Roubo? Baixa de preço? Deixei (debaixo de novos empurrões e novas pragas) o tribunal e, impossibilitado de ouvir a sentença do cádi, corri ao encontro de meu chefe, o rancoroso Abd el-Rahmã. Retornamos, na mesma hora, para o oásis de Maalif.

Na tarde desse mesmo dia, segui, por ordem do xeque, para Saida, e de Saida fui, com mercadores de fumo, para Oran. Viajei mais tarde para a Europa. Passei cinco meses no Havre vigiando os embarques e desembarques de mercadorias. De quando em vez, a curiosidade remordiame o coração:

— Como teria o justo cádi, naquele dia, na Tenda da Justiça, resolvido o caso da jovem que dois maridos disputavam? Teria decidido a favor do apaixonado Hassã, o primeiro marido? Teria dado ganho de causa ao velho e generoso Sidi Chahin?

Dois anos depois, vi-me forçado a percorrer vários centros comerciais de Marrocos. Essa viagem delongou-se por cinco semanas. Na volta, resolvi visitar Tlemcen, a cidade mais curiosa da Argélia. Embora pareça incrível, sob o céu de Tlemcen fui conhecer inesperadamente o surpreendente desfecho da singular aventura dos dois maridos de Najat.

Tudo se passou assim, Maktub! (Estava escrito!)

Uma tarde, sentindo-me bem-disposto, julguei que seria acertado levar algumas peças de roupa a uma tinturaria que ficava no fim da rua Kaldoum. Ao entrar na tinturaria, dei de cara com o tal guitarrista de Argel, chamado Saliba ou Taliba (não me lembro bem), admirador fervoroso do justo cádi Rafik ben-Najm.

— Por Alá, meu amigo! — exclamou o argelino. — Sabes quem está morando agora aqui, em Tlemcen? Aquele famoso cádi, o sábio, que fazias tanto empenho em conhecer. Sim — confirmou risonho o guitarrista. — O honrado e benquisto Rafik ben-Najm.

Ora, o guitarrista argelino não era homem inclinado a rir-se das coisas sérias. Exultei, pois, com a notícia. Colhi, no mesmo instante, todas as informações precisas. O justo cádi instalara-se em pequeno prédio, de janelas verdes, que ficava na rua Ora, dois quarteirões à direita, além da mesquita.

No dia seguinte, depois da prece da tarde, dirigi-me à residência do cádi. Era uma casa simples, mas bem-arranjada e distinta. O pátio interno era um primor pelas plantas viçosas e raras que o adornavam. Homem fino, o justo cádi!

Recebeu-me, atencioso, com vivas demonstrações de simpatia. Contei-lhe que o havia conhecido na Tenda da Justiça, em Khalfallah, durante acidentado julgamento. Procurava-o, naquele momento (disse com a maior franqueza), impelido por uma curiosidade martelante: como havia resolvido aquele interessante e delicado litígio dos dois maridos que pretendiam a mesma esposa?

— O caso da jovem Najat, filha de Jamil?

— Esse mesmo! — confirmei.

— Vou informá-lo da minha sentença — tornou o justo cádi, com alegre sombra. — Antes, porém, vamos saborear uma taça de delicioso café!

Naquele mesmo instante vi surgir, na sala, uma criatura encantadora, elegantemente vestida; trazia nas mãos graciosas (pintadas de hena) (25) larga bandeja de prata com duas xícaras de café de Adem! (26)

Foi, para mim, indescritível surpresa. Logo a reconheci. Era a formosa Najat!

O cádi encarou-me risonho e apresentou, com certo entono vaidoso:

— Eis, ó mercador, a minha esposa! É Najat, a filha de Jamil!

Fitei-o assombrado. Sim, assombrado como o homem que custa a crer no que vê e não se atreve a dizer o que sente. Najat sorriu para mim e proferiu com graça e simplicidade (sua voz tinha a claridade suave do luar):

— Ahla ua Sahla! (Bem-vindo sejas a esta casa, ó mercador!) Rafaaka as Saad! (Que a felicidade seja a tua sombra!)

Tão perturbado fiquei ao ouvir aquela delicada saudação árabe que não soube retribuí-la. Inclinei apenas a cabeça à maneira dos nômades do Saara. Retirou-se Najat. Sentia-se no ar, pela sala, invadindo tudo, o perfume inconfundível de sua encantadora presença.

— Quer saber qual foi naquela tarde, em Khalfallah, a minha sentença? — volveu o cádi. — Vou contar-lhe como tudo se passou.

Feita ligeira pausa, o ilustre magistrado, muito sereno, sem uma sombra no olhar, assim começou:

— Naquele tempo eu era viúvo e pensava seriamente em escolher nova esposa. Tinha, porém, receio de errar. Dada a minha situação, a minha carreira, o divórcio seria desastroso. Quando Najat apareceu, naquele dia, acompanhada dos dois maridos, achei-a muito simpática. O seu ar era simples, mas distinto. Parecia até deslocada naquele meio. Um dos maridos, querendo ferir o seu rival — lembra-se? —, elogiou-a: “É bondosa; é diligente; é meiga; é paciente. Muito hábil e inteligente. Lê versos, aprecia os belos poemas.” O outro marido exaltou-a como dona de casa: “É quieta; é modesta. Um cabrito assado, com recheio, temperado pelas mãos de Najat, é uma delícia! Najat faz um kichk digno do sultão; Najat se desvela em cuidar de tudo aquilo que interessa ao esposo!” Citou até as atenções que ela dispensava ao belíssimo cão de Sidi Chahin. Então eu disse para mim mesmo: “Eis a mulher ideal. Eis a esposa que me convém.” Como resolver, porém, com inteira justiça, aquele caso? Declarei nulo o primeiro casamento de Najat, pois o marido passara mais de 1.001 dias ausente, fora do lar. Chariat! (É da lei!) O segundo casamento (realizado em Oran) também era nulo (de acordo com a lei), pois fora efetuado antes que o primeiro tivesse sido legalmente anulado. Ditadas as duas sentenças, e lavrado oficialmente o ato, Najat ficava livre dos dois maridos. Levantei-me, então, e dirigindo-me ao público (xeques e beduínos que se comprimiam na tenda) declarei: “A jovem Najat, de Djelfa, está livre. Pode escolher, agora, sem o menor constrangimento, o marido que quiser. Se algum dos presentes for candidato, e pretender, também, a mão dessa jovem, queira colocar-se ao lado de Sidi Chahin Hanoun, o segundo marido.” As minhas palavras causaram forte impressão. Correu pela tenda prolongado sussurro de espanto. Ninguém poderia admitir ou imaginar que um juiz, em pleno deserto, promovesse aquele concurso de noivado. Mas, afinal, dois homens menos irresolutos destacaram-se do grupo e apresentaram-se como candidatos. O primeiro, já meio pesado no corpo e na idade, era o dono de grande oficina de ferreiro. Chamava-se Bechara. (27) Não seria exagero dizer que era obeso e disforme. A sua apresentação, como terceiro pretendente, foi recebida com risos deleitados. Acercou-se da noiva bamboleando-se nas pernas. O outro era um belo rapaz, alto, moreno, insinuante, filho de Sidi Omar Wahid, riquíssimo vendedor de goma de mascar. Ostentava no pescoço três ordens de ouro.(28) Era antipático, não obstante suas feições corretas. Foram esses dois os únicos. Vendo que ninguém mais se apresentava — direi melhor: ousava se apresentar —, deixei o meu lugar de cádi, entreguei o Alcorão a um dos secretários e fui colocar-me no extremo da fila, como sendo o quinto e último pretendente. E assim falei: “Que cada candidato dirija um apelo à noiva. Ela, no fim, decidirá.” Coube ao primeiro marido, o jovem Hassã Rida, a oportunidade de iniciar aquele singular torneio sentimental. Erguendo o busto, numa atitude desafiadora, ele disse:

“Querida, não me abandones.” O segundo marido, depois de passar a mão pela testa, proferiu, com arrebatamento: “Najat, meu amor, não posso viver sem ti.” O noivo rotundo, sem sentir o ridículo da situação, um pasmo idiota na face, gaguejou contrafeito: “Prometo, ó formosa Najat, fazer-te feliz!” O rapaz moreno, erguendo a mão, em cujos dedos cintilavam vários anéis, formalizou-se, com ostentação de ricaço, naquele concurso oral de galanteria: “Farei de ti a mulher mais ditosa do mundo.” Cabia-me, afinal, a vez de falar. Procurei ser simples e sincero, e disse apenas: “Najat, minha filha, segue, segue os ditames de teu coração!” A jovem meditou durante um rápido instante. A ansiedade era geral. Qual dos cinco noivos teria a preferência da ex-esposa dos dois maridos? Afinal, estendendo o braço, apontou para mim e declarou resoluta: “É a ti, ó justo cádi, que eu escolho para esposo. Foi o único que me honrou com o tratamento de ‘minha filha’. Espero que sejas, para mim, mais do que um marido: um dedicado companheiro e protetor.” Casamos. Vivemos felizes. Najat tem qualidades que os dois primeiros maridos não chegaram a perceber: é econômica, é leal, extremamente asseada e goza de perfeita saúde. É mãe exemplar…

— Mãe?

— Sim, já temos um filhinho. É um encanto de criança. Dentro de alguns instantes ele voltará do jardim, onde foi passear com a sua ama francesa.

Ao ouvir aquele singular relato, exclamei, sinceramente emocionado:

— Não creio, ó ilustre e justo cádi, que possa haver, sob o céu que envolve o mundo, juiz mais sábio, mais esclarecido e mais liberal! Podendo, na Tenda da Justiça, com o prestígio de sua autoridade, com as regalias do cargo, ter tomado logo posse da jovem, submeteu-se a um concurso livre de títulos e provas, democraticamente, com vários candidatos! Isso é notável!

Respondeu o justo cádi:

— Grato sou, ó mercador, pelo elogio que acabo de ouvir. Acredito que és sincero, pois não me iludo com a música das belas frases.

E rematou:

— Todos os dias, nas minhas preces, imploro a proteção e a misericórdia de Deus! Louvado seja Alá, que fez da boa mulher a esposa perfeita, e da esposa perfeita a companheira ideal! Alá seja louvado!
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Notas
1 Saida = Cidade da Argélia. Não confundir com Saida (Sídon), do Líbano.

2 Cádi = Em árabe pronuncia-se cáadi. Quer dizer juiz.

3 Ben-Najm = filho de Najm. Se “Najm” fosse uma tribo ou uma família, seria: Iben-Najm.

4 Beduíno = Habitante do deserto.

5 Livro de Alá =Trata-se do Alcorão. Alá é Deus. Portanto, refere-se ao Livro de Deus ou Livro da Lei. No início de certas suratas (ou capítulos) apresenta o Alcorão letras misteriosas para as quais os exegetas mais sábios não acharam explicação.

6 Khalfallah = Cidade da Argélia.

7 Irmão dos árabes = Tratamento carinhoso.

8 Maalif = Lugarejo perto de Khalfallah.

9 Raque = Haste fina; muito forte. Serve de palito.

10 Najat = Nome árabe feminino. Leia-se Najá. Significa: “aquela que foi salva.” No Líbano existe “Saidá te — Anajá”, que significa “Nossa Senhora da Salvação”.

11 bint-Djelfa = Natural (filha) de Djelfa.

12 fustam = Vestido, traje feminino.

13 justo cádi = O árabe não se refere a um cádi sem preceder esse honrado título do qualificativo “justo”.

14 Oran = Cidade da Argélia.

15 Jamil = significa belo.

16 Blida = Cidade da Argélia.

17 Kubros = Chipre, ilha do Mediterrâneo.

18 Salam = Saudação árabe.

19 Tomo Alá como testemunha de minhas palavras = Essa expressão equivale à seguinte: “Juro por Deus que é verdade tudo aquilo que vou dizer.”

20 Ain-Taya = Pequeno porto de Argel.

21 Sidi = Senhor. Homem de prestígio pela idade ou pela fortuna.

22 Ulemá = Sábio. Homem douto.

23 kichk = Prato árabe, feito de trigo, carne e coalhada.

24 Xeique = Chefe, pessoa de prestígio. No Líbano e na Síria (antes da guerra) era o título concedido aos que não pagavam impostos.

25 hena – As mulheres árabes, de fino trato, pintam de henna (trato especial) as unhas, as palmas das mãos e os pés.

26 Café de Adem – Café Moca.

27 Bechara = Significa “boa notícia”.

28 Ordens de ouro = Colares.


Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais.

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