Namoro comprido foi aquele...
Custou a passar a noivado oficial e esse mesmo, por sua vez, se arrastava sem pressa e com muita intimidade. Não se falava em casamento, nem havia disso grandes esperanças, Todo mundo já se habituara com a delonga e só uma ou outra pessoa mais simplória ou mais maliciosa perguntava:
- Quando seriam os doces?...
Não que Clarisse fosse tola. Moça como outras do seu tempo. Vaidosa, bem pintada, decotada, saia justa, cigarrinho no bico, esmalte assanhado nas unhas. Figurinha de garota do "Cruzeiro".
O Dirceu também era do seu tempo, sabido e gozador. Guiava com desembaraço qualquer marca de carro dos amigos e pilotava teco-teco. Tinha bom emprego e boa presença, disfarçando o que lhe ia por dentro, que isso ninguém via,
Era um aproveitador das moças, tolas ou não, filhas de pais complacentes e alérgicos á autoridade. No fim do proveito, dava o fora, com todas as regras do gato sabido. As pequenas ficavam faladas e Seu Dirceu, bem fofo, namorando outras. Nem isso era coisa nova no lugar, Toda cidade conhece desse tipo. Os pais sofrem, e as filhas não se emendam... Muita conversinha, muito comentário, muito diz-que-diz...
Alguma altercação entre marido culpando a mulher e esta deitando culpas àquele. Com a moça ninguém fala nada, com medo de ela beber "Formicida Tatu" misturado com guaraná. Uns vagos "bem que falei..." da mãe, só que a filha responde - "já evém a senhora..." - com gritos histéricos e ataques de nervos
A esse tempo o nosso Dirceu tinha aprontado a patifaria e só pensava em dar o fora de fininho, antes que a bomba estourasse na casa, e o velho, que era de cara feia, viesse por cima dele. Em casos tais, sabia como arranjar saída. Inventou, primeiro, o truque das briguinhas e cancelou os encontros furtivos. Encurtou as horas de noivar e passou a achar que era besteira, quando deixava a sala, ficarem ali no portão, encostadinhos falando de amor.
O termômetro do amor tinha baixado a graduação febril, e a pressão sentimental ameaçava colapso.
Clarisse, muito versada em literatura sexual, compreendeu a manobra e alarmou para a mãe, entre choro e ameaças de suicídio. Esta passou ao marido, numa sábia equação das responsabilidades conjugais. Fez, com jeito, reservas e atenuações — que não falasse nada com a filha, coitada, até queria se matar...
Seu Zeferino achou o caso ruim mesmo, mas (era homem no duro) amargou calado a desfeita. Não disse palavra, não brigou com a mulher, nem quis bate-boca com a filha. Isso tudo não resolveria nada. A saída para o caso seria outra; e voltou sua melhor atenção para o rapaz. Passou a aceitar o futuro genro, dos lados, pelas costas e pela frente e recomendou à filha que "apertasse o noivo". Este compreendeu o cerco e achou que era mesmo a horinha do fora, ainda com as boas cartas do jogo.
Seu Zeferino, que não tinha olho de vidro, passou a cobrir o Dirceu como sombra vigilante. Fez pausa nas caçadas de perdiz, coisa de que mais gostava, e deu férias às traíras do ribeirão - gostava também de pescar de vara. Passou a rastrear caça maior. Muito amável de boca e encontradiço, mas carranca fechada até ali. O pessoal das rodas manjou tudo. A sujeira da casa saltou para a rua, que isso, em cidade pequena, bem se sabe como é. E vieram os comentários. Numa roda, alguém mais brincalhão arriscou a piada:
- Olha que o velho é caçador de espera...
Dirceu levantou os ombros, superior, pagou a Brahma e saiu queimando um cigarro. No dia seguinte, pelas tantas, Seu Zeferino percebeu o futuro genro na agência das aerovias, com jeito de quem queria ser passageiro e, se possível, clandestino. Chegou, entrou, encostou e disse qualquer coisa. O outro respondeu baixo - viagem urgente, sem tempo de avisar. Telegrama de casa com chamado, às pressas...
Seu Zeferino, muito rijo, muito seco, mexeu na aba do paletó. O moço viu um pequeno cabo reluzente, qualquer coisa parecida com um objeto que os homens conhecem muito...
Acovardou-se, Saiu do balcão, desajeitado, e acompanhou o velho, fingindo naturalidade. Foram dali ao Cartório. Tiraram os papéis que o Dirceu pagou com o dinheiro da viagem. Marcou-se o dia do casamento.
Na saída, Seu Zeferino segredou, pedindo fogo para o cigarro.
- Moço, se você trastejá e arreda o pé,,, afastou o paletó com decisão e mostrou, aninhado no cós das calças, um legítimo e expressivo calibre 38.
Tudo, dali por diante, ficou mais fácil. O noivado se arrastou por mais quatro semanas; os papéis foram processados dentro da rotina, e o casamento se fez com convites, presentes, mesa de doce e bolo artístico. A noiva, numa homenagem póstuma, pôs véu e grinalda e ninguém disse "bolacha".
Seis meses depois, nascia um menino macho, muito ao gosto do pai, deslembrado da rasteira feia que tentara passar, e agora, orgulhoso e comovido, com aquele primeiro filho. Na verdade, ninguém recebeu o cartão da cegonha com a criança no bico. Dessa vez a pernalta negou sua cooperação no caso.
Agora, o Dirceu, orgulhoso e emocionado, como pai neófito, participa pessoalmente, aos conhecidos que vai encontrando, sua paternidade radiante,
- Dona Soledade, um criadinho às suas ordens. Forte, gordinho, mas fora de tempo...
- Dona Lindaura… um criado para a servir. Fortezinho, mas fora dos prazos,
~ Dona Janoca, um molequinho para seus mandados. Está na incubadeira… um pré-ma-turo...
Dona Janoca, muito boa, muito simples, muito crente, muito anjo, ficou impressionada com aquelas últimas palavras, novas para a candura de suas oiças ignorantes. Incubadeira… prematuro…
Juntou as mãos. Virgem Santa... o pobrezinho...
Resolveu dar um pulinho à Casa de Saúde São Judas Tadeu e tirar a limpo aquele prematuro. Levou uma lata de talco Johnson e um babeiro, desses que têm bordado "não-me-beije",
Muitos cumprimentos, muitos abraços, perguntinhas discretas e alusões discretíssimas aos trabalhos de um primeiro parto. Louvores ao médico parteiro, louvores às enfermeiras e louvores à lindeza do quarto e coisa tal…
E a criança prematura?…
Era hora do banho do bebê. Um meninão bonito, graúdo, bem servido, com 4 quilos e 200 gramas de peso, esperneava dentro da bacia, seguro pela enfermeira.
- Coitadinho, lamenta Dona Janoca, compungida, tão forte, tão sacudido e tão prematuro...
Fonte:
Cora Coralina. Estórias da casa velha da ponte.
Custou a passar a noivado oficial e esse mesmo, por sua vez, se arrastava sem pressa e com muita intimidade. Não se falava em casamento, nem havia disso grandes esperanças, Todo mundo já se habituara com a delonga e só uma ou outra pessoa mais simplória ou mais maliciosa perguntava:
- Quando seriam os doces?...
Não que Clarisse fosse tola. Moça como outras do seu tempo. Vaidosa, bem pintada, decotada, saia justa, cigarrinho no bico, esmalte assanhado nas unhas. Figurinha de garota do "Cruzeiro".
O Dirceu também era do seu tempo, sabido e gozador. Guiava com desembaraço qualquer marca de carro dos amigos e pilotava teco-teco. Tinha bom emprego e boa presença, disfarçando o que lhe ia por dentro, que isso ninguém via,
Era um aproveitador das moças, tolas ou não, filhas de pais complacentes e alérgicos á autoridade. No fim do proveito, dava o fora, com todas as regras do gato sabido. As pequenas ficavam faladas e Seu Dirceu, bem fofo, namorando outras. Nem isso era coisa nova no lugar, Toda cidade conhece desse tipo. Os pais sofrem, e as filhas não se emendam... Muita conversinha, muito comentário, muito diz-que-diz...
Alguma altercação entre marido culpando a mulher e esta deitando culpas àquele. Com a moça ninguém fala nada, com medo de ela beber "Formicida Tatu" misturado com guaraná. Uns vagos "bem que falei..." da mãe, só que a filha responde - "já evém a senhora..." - com gritos histéricos e ataques de nervos
A esse tempo o nosso Dirceu tinha aprontado a patifaria e só pensava em dar o fora de fininho, antes que a bomba estourasse na casa, e o velho, que era de cara feia, viesse por cima dele. Em casos tais, sabia como arranjar saída. Inventou, primeiro, o truque das briguinhas e cancelou os encontros furtivos. Encurtou as horas de noivar e passou a achar que era besteira, quando deixava a sala, ficarem ali no portão, encostadinhos falando de amor.
O termômetro do amor tinha baixado a graduação febril, e a pressão sentimental ameaçava colapso.
Clarisse, muito versada em literatura sexual, compreendeu a manobra e alarmou para a mãe, entre choro e ameaças de suicídio. Esta passou ao marido, numa sábia equação das responsabilidades conjugais. Fez, com jeito, reservas e atenuações — que não falasse nada com a filha, coitada, até queria se matar...
Seu Zeferino achou o caso ruim mesmo, mas (era homem no duro) amargou calado a desfeita. Não disse palavra, não brigou com a mulher, nem quis bate-boca com a filha. Isso tudo não resolveria nada. A saída para o caso seria outra; e voltou sua melhor atenção para o rapaz. Passou a aceitar o futuro genro, dos lados, pelas costas e pela frente e recomendou à filha que "apertasse o noivo". Este compreendeu o cerco e achou que era mesmo a horinha do fora, ainda com as boas cartas do jogo.
Seu Zeferino, que não tinha olho de vidro, passou a cobrir o Dirceu como sombra vigilante. Fez pausa nas caçadas de perdiz, coisa de que mais gostava, e deu férias às traíras do ribeirão - gostava também de pescar de vara. Passou a rastrear caça maior. Muito amável de boca e encontradiço, mas carranca fechada até ali. O pessoal das rodas manjou tudo. A sujeira da casa saltou para a rua, que isso, em cidade pequena, bem se sabe como é. E vieram os comentários. Numa roda, alguém mais brincalhão arriscou a piada:
- Olha que o velho é caçador de espera...
Dirceu levantou os ombros, superior, pagou a Brahma e saiu queimando um cigarro. No dia seguinte, pelas tantas, Seu Zeferino percebeu o futuro genro na agência das aerovias, com jeito de quem queria ser passageiro e, se possível, clandestino. Chegou, entrou, encostou e disse qualquer coisa. O outro respondeu baixo - viagem urgente, sem tempo de avisar. Telegrama de casa com chamado, às pressas...
Seu Zeferino, muito rijo, muito seco, mexeu na aba do paletó. O moço viu um pequeno cabo reluzente, qualquer coisa parecida com um objeto que os homens conhecem muito...
Acovardou-se, Saiu do balcão, desajeitado, e acompanhou o velho, fingindo naturalidade. Foram dali ao Cartório. Tiraram os papéis que o Dirceu pagou com o dinheiro da viagem. Marcou-se o dia do casamento.
Na saída, Seu Zeferino segredou, pedindo fogo para o cigarro.
- Moço, se você trastejá e arreda o pé,,, afastou o paletó com decisão e mostrou, aninhado no cós das calças, um legítimo e expressivo calibre 38.
Tudo, dali por diante, ficou mais fácil. O noivado se arrastou por mais quatro semanas; os papéis foram processados dentro da rotina, e o casamento se fez com convites, presentes, mesa de doce e bolo artístico. A noiva, numa homenagem póstuma, pôs véu e grinalda e ninguém disse "bolacha".
Seis meses depois, nascia um menino macho, muito ao gosto do pai, deslembrado da rasteira feia que tentara passar, e agora, orgulhoso e comovido, com aquele primeiro filho. Na verdade, ninguém recebeu o cartão da cegonha com a criança no bico. Dessa vez a pernalta negou sua cooperação no caso.
Agora, o Dirceu, orgulhoso e emocionado, como pai neófito, participa pessoalmente, aos conhecidos que vai encontrando, sua paternidade radiante,
- Dona Soledade, um criadinho às suas ordens. Forte, gordinho, mas fora de tempo...
- Dona Lindaura… um criado para a servir. Fortezinho, mas fora dos prazos,
~ Dona Janoca, um molequinho para seus mandados. Está na incubadeira… um pré-ma-turo...
Dona Janoca, muito boa, muito simples, muito crente, muito anjo, ficou impressionada com aquelas últimas palavras, novas para a candura de suas oiças ignorantes. Incubadeira… prematuro…
Juntou as mãos. Virgem Santa... o pobrezinho...
Resolveu dar um pulinho à Casa de Saúde São Judas Tadeu e tirar a limpo aquele prematuro. Levou uma lata de talco Johnson e um babeiro, desses que têm bordado "não-me-beije",
Muitos cumprimentos, muitos abraços, perguntinhas discretas e alusões discretíssimas aos trabalhos de um primeiro parto. Louvores ao médico parteiro, louvores às enfermeiras e louvores à lindeza do quarto e coisa tal…
E a criança prematura?…
Era hora do banho do bebê. Um meninão bonito, graúdo, bem servido, com 4 quilos e 200 gramas de peso, esperneava dentro da bacia, seguro pela enfermeira.
- Coitadinho, lamenta Dona Janoca, compungida, tão forte, tão sacudido e tão prematuro...
Fonte:
Cora Coralina. Estórias da casa velha da ponte.
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