segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Sinclair Pozza Casemiro (Uma Mão Lava a Outra)


Isso é sério. E é também uma cacofonia, eu sei. Cacofonia é um vício de linguagem; uma sucessão desagradável de sons, segundo Dr. Francisco Borba e todos os dicionaristas, gramáticos e linguistas de que eu me lembre... Mas é muito verdadeiro e então, apesar do vício, figura malquista na língua, o povo anda repetindo "uma mão lava a outra" pelos séculos dos séculos, amém.

O que vou contar aqui aconteceu com o Seu Gancedo, nosso amigo e professor nessas andanças do Caminho de Peabiru. Com ele e sua esposa, Dinorah, grávida de sua primeira filha na ocasião.

Moravam num sítio, no município de Engenheiro Beltrão, viviam ali felizes, porém batalhando nas dificuldades próprias do lugar e dos tempos, ainda sem muita estrutura no campo. Quando chovia, por exemplo, o que era uma dádiva para as lavouras, era um suplício para os doentes ou para aqueles que precisassem sair de casa por qualquer outro motivo urgente.

E um dia, choveu, choveu. O casal precisava ir à cidade, ela tinha consulta, ele tinha interesses urgentes para tratar. E eles tinham um trator que enfrentava qualquer tropeço daquele chão misterioso. Então, foram.

Num determinado ponto, uma subidinha complicada, seu Gancedo precisou parar, deu um probleminha no motor. Estavam já muito tristes, desanimados, quando decidiram buscar ajuda na casa do sítio que dali se avistava, muito perto. O coração de Dinorah se encheu de esperança, se avivou, seus lábios se descontraíram.

Mas, não é que o dono da casa (e do sítio) mesmo reconhecendo o casal, não eram amigos, apenas conhecidos, não socorreu? Isso mesmo! Viu a mulher, grávida, ouviu o apelo do marido, mas não pôde atender, estava sem condições de ir até ao trator, não saberia mesmo o que fazer e ficou por isso mesmo. A princípio seu Gancedo não entendeu, ficou entre a perplexidade, a vergonha e a revolta, um tanto desolado. Dinorah, então, na sua costumeira candura, não conseguia mesmo compreender aquilo de jeito nenhum. Por que seria tanta indiferença? Aquilo não era comum, as pessoas no sítio costumavam ser solidárias, mesmo desconhecendo-se.

Ficaram os dois, conjeturando: será isso, será aquilo, afinal, o que poderia ser responsável por atitude tão mesquinha?

Inconformados, seguiram de volta à estrada, com o olhar e o peito doloridos pelo que entendiam como injustiça. O sitiante possuía até um veículo, o que poderia ter sido a solução fácil de seus problemas, afinal. Poderia ter oferecido uma carona e nem precisava ser para Seu Gancedo, levasse a Dinorah que ele se arranjava por lá mesmo. E, o olhar fixo no caminho, seguiam, devagar, equilibrando-se no barro liso, até chegarem de volta ao trator e...ficar esperando sabe-se mais pelo quê. De repente, ouviram o ronco de um outro trator, a esperança renasceu. Mas, quem era? O próprio sitiante, que passou por eles dirigindo uma carreta e seguiu, sossegado. Os olhos do casal acompanharam–no, silentes, não havia o que se fazer.

Mais à frente, não é que a carreta do insensível sitiante emperra e barranca? Isso mesmo! Caiu, encostou na ribanceira da estrada, num barranco, coisa que seu Gancedo não teria deixado acontecer se fosse ele o motorista. Aquilo era sinal de "barbeiro". Mas, lá estava a carreta, poderosa, nas mãos de um incompetente (e maldoso) motorista, encalhada na estrada. E... vuuuuumm.... vuuuumm.....vuuuuuuuuuuuumm..., nada!

Aí então aconteceu a maior: o "navalha" desce, com as mãos na cintura ou no bolso, sei lá, mas com atitude de não sei mais o quê fazer e... olha para o trator e o casal! Meu Deus, mas como agir agora? Ele não lhes tinha negado ajuda? E só mesmo um outro trator e a colaboração de um outro motorista para tirá-lo dali!

E seu Gancedo? O que você acha que ele fez?

É... espicaçou o homem, "tá vendo, seu orgulhoso?" Negou ajuda, como o outro fez? Deu risada, zombou da desgraça e humilhação do outro?

Quem conhece o seu Gancedo sabe o que ele fez: foi de encontro ao necessitado, mais que ele ainda, deu sua mão e o acompanhou até a carreta, a Dinorah, muito calma e segura acompanhando com os olhos toda aquela cena. Assim também era ela, o casal se combinava.

Dinorah esperou, às margens da estrada. Seu Gancedo assumiu o volante da carreta e tirou-a do barranco, era mesmo algo fácil de resolver para um bom motorista, nem precisou do trator. Devolveu-a para o arrogante e já bastante arrependido sitiante, que, assim, acabou sendo recompensado com o bem pelo mal que fizera.

Chateado, ofereceu ao casal a esperada carona e seguiram, juntos, até Engenheiro Beltrão, deixando o trator do casal para ser consertado depois, por um mecânico que Seu Gancedo traria.

Acontece? Sim, e muito... Por isso que é bom a gente não esquecer esse ditado antigo, mal escrito e mal exemplo porque é cacofônico, mas muito verdadeiro: uma mão lava a outra.

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.

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