sábado, 27 de julho de 2013

Carlos Lúcio Gontijo (Literariamente, a vida!)

Libreria Fogolla Pisa
Ando meio cansado, desgastado pelo tempo que a tudo leva e consome. Incomoda-me a ignorância, sempre atrevida e agressora. Para descansar, desejo uma esteira de vime, feita com fibras de versos do poeta Bueno de Rivera, mineiro de Santo Antônio do Monte.

Neste instante, ser-me-ia exponencial contar com um horizonte banhado na luz da sensualidade dos temas de Vinícius de Moraes. De bom alvitre, consolar-me-ia a aplicação de providencial argamassa nas paredes, pintadas com as cores da rica prosa brejeira de Guimarães Rosa.

As janelas da minha casa podem ser em madeira de lei, ao mesmo tempo rija e suave, como texto de Machado de Assis. A porta descorada deve ser repintada com leves tons de voo, ao sabor de palavras de Clarice Lispector, magicamente misturadas à metafórica tinta pé no chão de Cecília Meireles.

Vir-me-ia a calhar um teto na cor alinhavada no verdor de montanha, ao feitio de versos tecidos por Carlos Drummond de Andrade, para que eu possa rolar morro abaixo as pedras que atravancarem o caminho de liberdade dos meus sonhos, nos quais me cabe mergulhar de corpo inteiro e pessoalmente, sem os heterônimos de Fernando Pessoa.

Para dar-me segurança, ergam muros em formato de ponte – segundo a natureza humana coletada pelo olhar escafandrista de Sigmund Freud, sob cuja lente reveladora nos é permitido assistir ao eclodir tanto de homens de abraço e afago quanto de seres humanos de desabraço e punhal nas mãos –, utilizando a engenharia filosófica de Dostoievsky e Tolstói, com majestosa vista voltada para o som do mestre Cartola, ensinando-nos os moinhos deste mundo, que é povoado de jardins repletos de Vênus de Milo, onde em tudo falta um pedaço, em meio a rostos perdidos nos espinhos de gigantescos cactos, tornando realidade a arte de Tarsila do Amaral, estendida no varal de nossos corpos, à espera de um verso concreto e lapidar de Ferreira Gullar, a descrever o apagar da chama da vida de cada um de nós.

Fonte:
O Autor

Joana D’arc da Veiga (Horinhas de Descuido)

Joana é de Nova Friburgo/RJ
(3o. Lugar no VI Concurso Literário “Cidade de Maringá” 2013, modalidade Cronica, Troféu Lucilla Maria Simas de Assis)
============
“Felicidade se acha é em horinhas de descuido”

    Atarefado leitor, que em sua horinha de descuido lê o meu texto: o labor é semelhante ao açúcar que tem de ser usado na medida; trabalhar demais, por uma ansiedade descabida, torna a vida enjoada, pois sufoca o gosto da alegria; entretanto, trabalhar de menos deixa a vida sem energia, o que pode provocar desgosto.

    Devo dizer-lhe que este pequeno, mas importante ensinamento entrou em mim através de uma conversa que ouvi, sem ser notada, entre dois refinados colaboradores que moram em nossa casa. Vou contar-lhe o diálogo na íntegra, mas não tome isto como fofoca, é apenas a ilustração da afirmativa inicial.

    - Hoje você parece mais frio e sem vontade para o trabalho, meu amigo pano!

    - Desculpe-me, vassoura, você sabe que não estou no comando, sou jogado na liquidez “baldeante” e forçado ao labor por mãos alheias; gostaria eu, neste momento, de estar ao relento, desdobrado de sentidos, com o sol a percorrer em raios, a trama do meu tecido e, então, adormecido, esticar-me em vida.

    - Entendo bem você e digo que gostaria, meu amigo, de espreguiçar-me no canto de um armário, ao sabor do descuido da patroa, plantar-me em bananeira tal qual uma criança em tempos de brincadeira. Seria isso felicidade, meu amigo pano?

    - Sim. E, ainda, enxugo o dito de João Guimarães Rosa: “A felicidade se acha é em horinhas de descuido”. E é verdade, pois nelas sinto melhor o meu trançado e, na falta delas, o cansaço encharcado da vida.

    - Com excessos de cuidados, continuou a vassoura, a vida nos impõe esta rotina de quase inutilidade, nos grãos de superfície, em farelos de vida, nas sobras de nada acumuladas no chão das coisas. Entretanto, meu amigo pano, eu poderia aos poucos juntar os grãos, recolher o pó sem desgastar-me demais.

    - Concordo, pois, embora retorcido, eu retiro gotas, elimino os líquidos que impedem o circular da vida e, então, penso ser o labor, neste momento, açucarado.

    Nesta altura da conversa, a minha esposa chegou, pegou a vassoura envolveu-a no pano, expulsou-me do meu canto, afastou de mim a horinha de descuido e interrompeu, num afã, a maravilhosa conversa daqueles que sabem adocicar o labor com colherinhas de descanso.

Fonte:
Livro dos Concursos

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Problemas

Hoje, o bonde vinha cheio, e tive de ceder o meu lugar a uma senhora. Esta, ao invés de me agradecer, parece que ficou ligeiramente arrufada com a minha gentileza.

Creio que a ética do bonde manda que, ao ceder o lugar, o passageiro não dê a isso a mais ligeira aparência de um ato de cortesia faça-o friamente, como por uma obrigação regulamentar. Deve ser isso.

Mas será? Eis aí um dos inumeráveis problemas psicológicos que o bonde depara. O bonde é um saco de víspora: é só meter a mão, remexer, pegar, lá vem o problema psicológico.

Infelizmente, esses problemas vão ficando cada vez mais obscuros, à medida que cresce o número dos psicologistas, número infinito, hoje em dia, só comparável ao dos sociólogos. Se o futuro do Brasil dependesse da psicologia da sociologia, estava garantido; e só nos restava lamentar que não pudéssemos viver mais uns cinqüenta ou cem anos, para assistir ao grande fogo de vistas dos resultados. Estupenda coisa a ciência!

Há dias, vi o Sr. João Cesário a conversar atentamente com um mocinho sisudo e altivo. Este falava em coisas difíceis: mentalidade primitiva -formação alógena -metabolismo racial camadas de aluvião -idealismo hipocondríaco -teorias de Comte e Spencer -obras de Le Play, Fouillet, Tarde, Novicow, Pareto, memórias de Schwaartzemberg e Perikowski, de Astrinaieffe e Dragobsen. De repente, despediu-se e desapareceu veloz, como uma motocicleta.

Corria, provavelmente, a endireitar algum erro perigoso de técnica social, que estivesse para desabar sobre nós. Digno bombeiro da Ciência!

Neste ínterim, perguntei assombrado ao Sr. Cesário:

-"Quem é este menino? Que sábio!"

-"Nem tanto. Muito estudioso, isso sim. Especializou-se - não sabe? É apenas sociólogo".

Senti-me absolutamente acalcanhando com ver um menino que, ainda longe dos trinta anos já havia conseguido ser um sociólogo, apenas. Senti necessidade de esquecer aquilo.

Montesquieu disse que não havia aborrecimentos que não lhe passassem com meia hora de leitura. Não sei se isto provará a virtude da leitura ou antes de Montesquieu. A mim, muitos aborrecimentos me desaparecem com a decifração de problemas ou com jogos de paciência. Armei logo uma série de dificuldades através dos miolos, e depois mergulhei em cogitações para as desmanchar uma por uma.

Foi o que fiz hoje. Não tendo mais em que me ocupar, comecei a extrair e remexer os problemas que o bonde me oferecia, abundante corno pedreira.

Por que é que os nossos conhecidos sempre nos aparecem nos bancos de trás à hora da cobrança das passagens?

Por que é que as senhoras apeiam voltadas para o lado traseiro do carro?

Por que é que os condutores, quando recebem as passagens, vêm com cara de cobradores de contas atrasadas?

Por que é que não se pode tirar um lenço ou abrir uma cigarreira sem despertar a atenção vigilante do vizinhos?

Por que é que, ao contrário, se a gente sofre e tosse com o fumo de um cigarro alheio isso não é percebido nem pelo vizinho fumante?

Por que é que, quando lemos, há sempre um passageiro a querer por força descobrir o que vamos lendo?

Por que é que os homens, quando pedem licença para passar, são mais atenciosos à entrada do que à saída?

Por que é que o lavador de pratos ou o vendedor de bananas trata os condutores como se estes fossem os trintanários de seus coches?

Por que é que o passageiro acha graça nas grosserias ou desaforos do condutor, desde que não são com ele?

Por que é que, encontrando um amigo distraído e pagando-lhe a passagem, ele imediatamente nos pergunta como vai a família?

Por que é que só assobiam no bonde indivíduos inteiramente desprovidos de memória musical?

Por que é que, se chove, há sempre, ao nosso lado ou à nossa frente, um passageiro que não tolera cortinas arriadas?

Por que é que tantas senhoras gordas, não permitindo que se lhes toque de leve com o dedo, não fazem contudo nenhuma cerimônia para se amesendar em cima de nossa perna?

Por que é que há tanta comoção no bonde, se este pega uma galinha, e não há nenhuma por causa do homem enfermo, aleijado e decrépito que vai no carro?

Por que é que os moços bonitos e os célebres ficam sentados de viés?

Por que é que temos tanta paciência para perder duas horas numa pane difícil de automóvel, e nenhuma para sofrer dois minutos de parada do bonde num desvio?

Por que é que as senhoras, ao pagar a passagem, custam tanto a encontrar o dinheiro na bolsa?

Por que é que o bonde estimula em certos indivíduos a vontade de comer amendoim torrado e tremoços?

Por que é que as pessoas mais desocupadas e mais pachorrentas se tomam de pressa e de nervos quando o bonde vai chegando ao ponto final?

Por que é que nos dói mais termos perdido o nosso bonde do que o ter um amigo perdido o trem - ou mesmo uma perna?

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 16

CAPÍTULO VIII
 
Os últimos acontecimentos vieram perturbar de todo a vida dos dois rapazes. Coruja tinha de guardar um pouco mais a companhia de Teobaldo, cuja inquietação de espírito lhe trazia agora sérios receios. Cobertos ambos de luto, pareciam eternamente fechados a qualquer consolação mundana; Teobaldo caíra em uma espécie de abatimento moral, de cujo estado não conseguiam arrancá-lo as palavras do companheiro.

E preciso que também não te deixe levar assim pelo desgosto, dizia-lhe este, procurando meter-lhe ânimo. — A vida não se compõe só de coisas agradáveis! Concordo em que não estejas habituado a certas provações e que por isso as sintas mais do que qualquer; mas, valha-me Deus! Um homem deve antes de tudo ser um homem!

— Do que me serve a vida?... respondia o outro; do que me serve a vida, se já não tenho as pessoas que mais me amaram?...

— E então eu?! Reclamava André. — Eu não estou ainda a teu lado?... É uma injustiça o que acabas de dizer!...

— Tens razão, é uma injustiça não pensar em ti; mas imagina que será de mim agora, sem recurso e sem o hábito de trabalhar?...

— Ora! Deixa-te disso! Não pareces um rapaz de 20 anos... Que diabo! com o teu talento e com os teus recursos só quem de todo não quer subir!... Tens um enorme futuro diante de ti.

— Ah! Falas assim porque te coube em sorte a inestimável ventura de dar no mundo os teus primeiros passos pelo teu próprio pé e não tiveste, como eu, de entrar na vida carregado ao colo de meus pais! Ah! O trabalho é a alegria e a consolação dos filhos da pobreza, mas é também o castigo e o suplício dos que nasceram ricos e mais tarde se acham no estado em que me vejo!...

— Teobaldo! Essas idéias são indignas de ti!

— Não! Tudo que eu dissesse ao contrário disto, seria hipocrisia!

— É porque estão ainda muito abertos os dois tremendos golpes que acabas de receber tão em seguida um do outro; tenho plena certeza de que em breve a tua coragem se erguerá mais altiva e mais forte do que nunca e que, à força de talento, conseguirás uma invejável posição. Enquanto assim não suceder, cá estou eu ao teu lado para amparar-te; e com isto, não tens que te envergonhar, porque nada mais faço do que seguir os exemplos aprendidos em casa de teus pais, quando me socorreram. Eu te pertenço, meu amigo!

Teobaldo, sinceramente comovido, agradeceu aquela dedicação e prometeu que se faria digno dela. Mas pelo espaço de um ano quase inteiro a sua mágoa absorvia-lhe todos os instantes, não lhe deixando tempo nem forças para coisa alguma. Descuidou-se de obter os meios de ganhar a vida e, depois de comido o último dinheiro, teve de lançar mão de algumas jóias das que foram de sua mãe, para vender. Agora, com o correr do tempo por cima da sua desgraça, vinham-lhe já, de quando em quando, alguns rebotes de energia; então falava em trabalhar muito, fazer-se independente e forte por meio do próprio esforço. E neste delírio de boas intenções, lembrava-se de tudo conjuntamente e sonhava com o comércio, com as indústrias, com as artes e com a literatura.

Qual não foi, porém, a sua decepção, quando, levando trabalho a um jornal, ouvia essas palavras daqueles mesmos que dantes o elogiavam:

— Homem! Deixe ficar isso... Havemos de ver, mas o senhor bem sabe que o público vai e tornando exigente: é preciso dar-lhe coisas boas!.

Teobaldo compreendeu então o alcance de certas palavras de seu pai: "Esconde o mais que puderes a tua necessidade; ela só por si é o pior estorvo que se pede levantar defronte de ti, quando precisares de dinheiro..."

E com eleito: dantes, Teobaldo mal apresentava algum trabalho nas redações, só ouvia em torno de si elogios e palavras de entusiasmo. É que sabiam perfeitamente que ele não precisava ganhar a vida; agora era um necessitado como qualquer e então viravam-lhe as costas, porque a necessidade é sempre ridícula e importuna

O mesmo justamente lhe sucedera com os teatros. Dantes, quando Teobaldo freqüentava a caixa dos teatros nas horas de ensaio, pagando champanha aos artistas e levando-os depois do espetáculo a cear nos melhores hotéis; dantes, quando ele os presenteava nos benefícios e lhes emprestava dinheiro, muita vez perguntaram-lhe os empresários por que razão, dispondo de tanto talento e de tanto espírito, não escrevia ele alguma coisa para ser levada à cena. Havia por força de fazer sucesso!... Teobaldo que experimentasse!

E agora, quando a necessidade lhe invadira a casa, rapaz, lembrando-se de tão repetidas solicitações feitas ao seu talento, tornou de um romance inglês e extraiu daí um drama que, se não era um primor de arte, estava ao menos no gosto do público e podia dar lucro ,aqueles mesmos empresários o receberam com frieza, dizendo-lhe secamente que deixasse ficar o trabalho e aparecesse depois. E, mais tarde, talvez sem terem lido a obra, acrescentaram-lhe com meias palavras e dando-lhe o pretensioso tratamento de "filho" que ele fosse cuidar de outro ofício e perdesse as esperanças de arranjar alguma coisa por aquele modo.

Com o seu gênio altivo, com a educação que tivera, Teobaldo não podia insistir em tais pretensões. Era bastante perceber um gesto de má vontade ou de pouco caso para lhe subir o sangue às faces, e muito fazia já conseguindo reprimir a cólera que se assanhava dentro dele, sôfrega por escapar em frases violentas. Depois dessas lutas e dessas tentativas estéreis, voltava para casa desanimado e furioso contra tudo e contra todos, encerrando-se no quarto e fechando-se por dentro para chorar à vontade. Vinha-lhe então quase sempre a idéia do suicídio, mas não vinha com ela a resolução, e o desgraçado continuava a viver.

Todavia o tempo ia-se passando e o círculo das necessidades apertava-se cada vez mais.  Coruja era agora o único sustentáculo da casa, era quem pagava o aluguel, a pensão de comida para Teobaldo que ele continuava a almoçar e jantar no colégio, era quem lhe pagava a lavadeira, e quem lhe fornecia dinheiro. Mas tudo isso era feito com tamanha delicadeza, com tanto amor, que Teobaldo, quando lhe aparecia qualquer revolta do caráter, ficava mais envergonhado de seu orgulho do que com receber aqueles obséquios. E nunca o André andou tão satisfeito, tão alegre de sua vida; dir-se-ia que ele, praticando aqueles sacrifícios, alcançava enfim a realização dos seus melhores sonhos.

Era comum vê-lo chegar a casa com uma caixa de charutos debaixo do braço e depo-la ao lado do amigo, dizendo quase envergonhado:

— Olha! Como estavam a acabar estes charutos e sei que são dos que mais gostas, trouxe-os, porque depois quando fosses procurá-los, já não os encontrarias a venda.

E tinha sempre uma desculpa a apresentar, uma razão para disfarçar os seus benefícios. Teobaldo quis privar-se do vinho à mesa; Coruja, que aliás não bebia nunca, opôs-se-lhe fortemente.

— Não! Disse ele — Estás muito acostumado com o vinho à comida e, por uma miserável economia de alguns tostões, não vale a pena fazeres um sacrifício!.

A maior dificuldade era, porém, quando precisava passar-lhe dinheiro, sem lhe ferir, nem de leve, o amor próprio. A princípio tinha para isso uma boa desculpa — os quinhentos mil réis; mas esta quantia não podia durar eternamente e, já por último, dizia o Coruja:

— Sabes? Quando eu tinha em meu poder aquele teu dinheiro, servi-me de tanto e esqueci-me de repor o que tirei; por conseguinte, se precisares agora receber algum por conta, eu posso pagar.

Um dia ele apareceu em casa com um grande rolo de papéis, e disse ao companheiro que o diretor do colégio o havia encarregado de organizar uma seleta muito especial, destinada ao estudo da sintaxe portuguesa.

— A coisa não é má... Acrescentou o Coruja, abaixando a voz, como quem conspira. — Eles pagam 300$ pelo trabalho...

— Bom, fez Teobaldo.

— Eu estive a recusar, porque me falta talento; lembrei-me, porém, de que tu, se quisesses... Podias encarregar-te disso... A coisa é maçante, é, mas enfim... sempre é um achego... Além de que, eu te posso ajudar, sim, quer dizer que... — Ah! Para ajudar não te falta talento! Hipócrita! Respondeu Teobaldo abraçando-o.

— E se precisares durante a obra de algum dinheiro adiantado... É do contrato! Sabes!

Esta situação tinha para o Coruja apenas um ponto de desgosto e vinha a ser este, o seguinte: desde que D. Margarida lhe falou em casamento com a filha, André resolveu ir fazendo as suas economias para poder em breve realizá-lo; mas, com o amigo na difícil posição em que se achava, não lhe era permitido por de parte um só vintém, e o projeto ia ficando adiado para mais tarde.

E D. Margarida a perguntar-lhe como iam os negócios dele e a pedir-lhe com insistência que marcasse o dia das núpcias. Ora o Coruja, que era tão incapaz de mentir, quanto era incapaz de confessar o verdadeiro motivo da sua demora, via-se deveras atrapalhado e desculpava-se como melhor podia.

Entretanto, D. mezinha concluíra afinal os estudos, fizera exame e estava preparada para reger uma cadeira de primeiras letras.

A mãe resplandecia com isso.

— Assim desembuchasse por uma vez aquele demônio do Coruja!... Exclamava ela às amigas, quando lhe falavam na filha.

E tão impaciente se fez com as reservas e meias palavras do futuro genro, que afinal disparatou e disse-lhe às claras:

— Homem? Você se não tenciona casar com a pequena, é melhor dizer logo, porque não faltará quem a queira! Estas coisas, meu caro, quando não são ditas e feitas, servem apenas para atrapalhar o capítulo!

— Oh, minha senhora, respondeu André, se eu não tivesse a intenção de casar com sua filha, há muito tempo que já o teria declarado!...

— Pois então!?...

— Mas é que ainda não me é possível! Estas coisas não se realizam só com o desejo!

— Ora! Com boa vontade tudo se faz!

— Nem tudo; entretanto, se a senhora entende que sua filha não pode esperar por mim, é casá-la com outro; não serei eu quem a isso se oponha!...

Estimo-a muito, desejo fazer dela a minha esposa, mas não quero de forma alguma prejudicar-lhe o futuro. Se há mais quem a deseje, e se ela acha que deve aproveitar a ocasião, aproveite; porque eu me darei por muito feliz em vê-la satisfeita e contente de sua vida!.

— O senhor diz isso porque sabe que ela está disposta a esperar.

— Tanto melhor, porque nesse caso realizarei o que desejo.

— Mas, se o seu desejo é casar com ela, case-se logo por uma vez! Tanto vive o pobre como vive o rico!

E por este caminho a impertinência de D. Margarida foi subindo a tal ponto, que o Coruja, para tranqüilizá-la um pouco, deixou escapar um segredo que a ninguém tinha ainda revelado. Era a idéia de montar um colégio seu, perfeitamente seu, feito como ele entendia uma casa de educação; um colégio sem castigos corporais, sem terrores; um colégio enfim talhado por sua alma compassiva e casta; um colégio, onde as crianças bebessem instrução com a mesma voluptuosidade e com o mesmo gosto com que em pequeninas bebiam o leite materno.

Sem ser um espírito reformador, o Coruja sentiu, logo que tomou conta de seus discípulos, a necessidade urgente de substituir os velhos processos adotados no ensino primário do Brasil por um sistema todo baseado em observações psicológicas e que tratasse principalmente da educação moral das crianças; sistema como o entendeu Pestallozzi, a quem ele mal conhecia de nome.

Froebel foi quem veio afinal acentuar no seu espírito essas vagas idéias, que até aí não passavam de meros pressentimentos.

Mas não era essa a única preocupação de sua inteligência: ainda havia uma outra que não lhe parecia menos desvelos, a de fazer um epítome da história do Brasil, em que se expusessem os fatos pela sua ordem cronológica.

Nesse trabalho de paciente investigação revelava-se aquele mesmo cabeçudo organizador do catálogo do colégio; continuava o Coruja a pertencer a essa ordem de espíritos, incapazes de qualquer produção original, mas poderosíssimos para desenvolver e aperfeiçoar o que os outros inventam; espíritos formados de perseverança, de dedicação e de modéstia, e para os quais uma só idéia chega às vezes a encher toda a existência.
–––––––-
continua…

Noite de Autógrafos e 1. Salão de Artes Plásticas (Desde 2 de Agosto, em Curitiba)


quinta-feira, 25 de julho de 2013

Parabéns, Escritores

 
Congratulo todos os escritores, que com seus textos, sejam quais forem os gêneros, brasileiros ou não, fazem a diferença neste mundo de hoje tão conturbado. Um dia especial para mostrarmos ao mundo a nossa união e a importância que o escritor tem na evolução da humanidade. Hoje o estandarte das Letras tremula diante dos olhos de todos. 

“A verdade é que a pena, na mão de um excelente escritor, resulta por si só numa arma muito mais potente e terrível, e de efeito muito mais prolongado, do que jamais poderia ser qualquer outro cetro ou espada nas mãos de um príncipe.” (Vittorio Alfieri)
 
Paz, com Liberdade 


José Feldman
====
Para este dia, deixo aos irmãos escritores este texto que Daniel Landim, nos presenteia para o Dia do Escritor;

É impossível descrever integralmente a importância e magnitude do trabalho do escritor em nossas vidas. Antes da criação da escrita silábica feita pelos Sumérios, e a escrita hieroglífica no Egito Antigo por volta de 3000 A.C, todo conhecimento humano era transmitido oralmente, e por conta disso sofria de grandes variações, mudanças, e erros naturais de interpretação.

São eles, os escritores, os grandes responsáveis pelo avanço no desenvolvimento da sociedade em todos os aspectos. A escrita é a forma mais pura e direta de se absorver conhecimento, e conhecimento é poder.

A escrita é tão corriqueira que acabamos por desperceber as pequenas utilizações diárias de extrema importância. Aprendemos a fazer aquela receita de lasanha através de um livro de culinária, descobrimos como utilizar o controle do “DVD player” através do manual de instruções, e tomamos corretamente um medicamento ao observar as orientações em sua bula. A escrita é um guia em meio às dúvidas e adversidades enfrentadas pela humanidade. Ela ensina e antecipa o conhecimento adquirido por milhares de vidas e bilhões de horas de aprendizado, informações que uma pessoa jamais obteria em apenas  uma única e ínfima vida.

Só esse aspecto isolado já seria o bastante para valorizar a figura do escritor como primordial na sociedade, mas o escritor vai adiante, além de transferir conhecimento, também compartilha emoção.

Através da leitura vivenciamos grandes romances e tragédias, viajamos por mundos e lugares desconhecidos, conhecemos personagens reais e imaginários, criamos vínculo com eles e sentimos suas dores e alegrias como se fossem nossas. Mudamos, evoluímos, somos transformados por essas aventuras. Quando é virada a última folha, o livro continua com o mesmo número de páginas, com a mesma capa, e com o mesmo conteúdo. Mas o leitor já não é o mesmo, ele ganhou algo a mais. E independente do que for, poderá mudar mínima ou vastamente toda a sua vida.

Por isso comemoramos o Dia do Escritor, por sua enorme importância em nossas vidas e na sociedade em geral. Parabéns a você escritor por permanecer nesse caminho. Por vezes é cansativo, sofrido, irritante e desvalorizado, mas sempre será gratificante. Afinal, és um dos pilares que sustentam a nossa sociedade.

Fonte:
Congratulo todos os escritores, que com seus textos, sejam quais forem os gêneros, brasileiros ou não, fazem a diferença neste mundo de hoje tão conturbado. Um dia especial para mostrarmos ao mundo a nossa união e a importância que o escritor tem na evolução da humanidade. Hoje o estandarte das Letras tremula diante dos olhos de todos. Paz, com Liberdade José Feldmancerveja artesanal

Sebas Sundfeld (Mãe)

Sebas é de Tambaú – SP 
(2o. Lugar no Concurso de Cronicas do Concurso Literário Cidade de Maringá, 2013)

––––––––––––

    Com a morte do marido, servidor braçal, sem Carteira de Trabalho, Letícia viu-se sozinha, com dois filhos menores e a mãe doente e idosa. Maior que o infortúnio, porém, foi a sua decisão de enfrentar um novo propósito de vida. Matriculou seus meninos na Creche Comunitária e com a mãe olhando pela casa, saiu em busca do que sabia fazer. Empregou-se como faxineira em domicílios, escritórios, onde houvesse necessidade de um balde e de uma vassoura. Dividia as horas do dia para cumprir suas obrigações sem descanso. Aliviava os temores rezando enquanto varria. Apesar da aparência mal tratada, revelava um certo quê a motivar inúteis convites maliciosos.
   
De volta à casa, já tardezinha, enfrentava ainda afazeres que dela dependiam, como a daquela vez em que mal chegara e fora direto para o tanque de lavar roupa. Concentrada em seu labor, não percebera a aproximação dos seus garotos, felizes com a alegria inocente de brincar com a bola, presente pelo último Natal. Sem hesitar e sorrindo pela surpresa, Letícia pôs de lado a roupa ensaboada na bacia e, de avental molhado, foi com os filhos jogar bola no fundo do quintal. E riram. E brincaram.

    A vizinha que chegara para um dedo de prosa e a tudo assistia, comentou: - A que hora você vai acabar de lavar esta roupa? De noite?

    A observação continha cabimento. Letícia, porém, explicou uma outra verdade: - Quando meus filhos crescerem não irão se lembrar de que a mãe deles lavava roupa... Mas sentirão saudade de quando brincaram comigo!

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) De Amicitia

Ia eu muito macambúzio, no meu banco de trás, e nem sabia porque.

Lembro-me de que, em casa, quando me aprontava para sair me havia irritado por causa de uns incidentes minúsculos. Ao vestir o colete, o relógio caíra-me do bolso, e ficara suspenso pela cadeia; e algumas moedas que estavam no outro bolsinho despencaram para o soalho, rolando em todas as direções, como expressamente para me fugir. Quando eu passava a escova pelo chapéu, ela deixara pegada à copa uma lanugem de felpas impalpáveis, de seda ou de algodão, que tive de extrair à unha, uma por uma.

Saí quase a correr, e o casaco se me enganchou pelo bolso à maçaneta da porta. Libertei-me, empurrei a porta com um safanão, e ela, voltando, soltou um relincho tão triste, que me senti subitamente envergonhado da minha estúpida impaciência.

Que covardia e que ingratidão ser bruto com as coisas! É preciso, ao contrário, amá-las, no recanto em que vivemos, como as boas protetoras e inalteráveis amigas. O aspecto ordenado, limpo, benévolo e tácito dos objetos que me rodeiam, no meu quarto, parece refletir às vezes algo que não é bem deste mundo: um ambiente de estampa, uma atmosfera de história, um casulo de intimidades intangíveis, uma ilusão de permanência e de espiritualidade -enfim, um sonho, uma doçura, um perfume.

Ao tomar o bonde, porém, já eu pensava em coisas muito diversas daqueles incidentes. De modo que não sei porque fiz metade da viagem tão sombrio, a olhar para o mundo com uma espécie de terror inerte. A estupidez e o mal da vida se me revelavam com a evidência de um acidente brutal, como um sinistro imenso que se acabasse de produzir, ali, de repente, sob meus olhos.

"Hei de consumir os anos que me restam, como tantos que já passaram, a fazer duas e quatro vezes por dia este mesmo trajeto, a percorrer estas mesmas ruas, estas mesmas esquinas, estes mesmos postes, entre as mesmas caras, as eternas caras indiferentes insidiosas, malignas, sornas, fátuas, soberbas, hostis.

Hei de ir todos os dias à repartição, ver a cara regulamentar do chefe, ver as caras dos meus cinco ou seis auxiliares, uma tola outra escarninha, outra fútil e finória, outra bovinamente resignada e mortiça. E não hei de topar muitas vezes na minha frente com alguma cara aberta e sincera, alguma cara iluminada e boa, desfranzida e cordial, que me olhe firme e de chapa com uns olhos direitos e claros como duas espadas, límpidos e quentes como duas chamas.

Meu Deus, como pude viver até hoje deste jeito! Meu Deus como é que hei de viver ainda, sabei-me lá até quando, nesta triturante estupidez e nesta abjeção ignominiosa! Matai-me, senhor, matai-me logo. Ou então, dai-me uma sorte na loteria, que me permita sair por esse mundo, sem cuidados, livre, errante, como o homem que perdeu a sombra, durante os primeiros momentos de sua peregrinação."

Ia engolfado nestes pensamentos amarelos, quando subiu e veio sentar-se a meu lado o Aurélio de Moura. Cumprimentou-me com afabilidade mais larga do que a habitual. Acolhi-o com prônubos alvoroços.

Aurélio perguntou-me solícito pelas minhas coisas, passando-me o braço pelo ombro, com um sorriso de páscoa. Deixei-me abraçar, comovidamente, e conversamos.

Este rapaz é dos que parecem apostados a pensar, no miúdo e no grosso, de modo
radicalmente diverso do meu; mas esta circunstância, que em outras ocasiões me quizilava, então se me tornou mais um motivo de satisfação, como um bom molho ajuntado a um prato já de si excelente. Concedi tudo a Aurélio, pelo prazer de o ver trabalhar em liberdade. As coisas vulgares e as coisas estrambóticas que ele dizia, tudo me soava uma doce música.

"Fala, Aurélio! fala, fala tudo quanto quiseres. Agrada-me pensar que é para mim só que tu falas, que o teu espírito veio verter no meu a espuma generosa do seu mosto vivo -uma forma de confidência sem gravidade e sem segredo, mas indiretamente complexa e escancarada.

Fala Aurélio! Achas que os postes de fios elétricos deviam ser pintados de escarlate? Muito bem. Achas que o Brasil precisa urgentemente ser invadido pelo argentarismo estrangeiro, que é necessário matar todos os leprosos e que as mulheres não devem mais aprender a ler nem escrever? Continua, Aurélio; tens razão, porque me divertes e porque confias na minha tolerância. Continua sempre. Pensas que a música é a mais insignificante das artes e que a poesia deverá ser proibida por decreto? Fala, fala....

A mim tu tens a coragem de dizer tudo, e isto significa que tu avalias afetuosamente a minha capacidade de ouvir todos os destampatórios honestos e de levar a sério todas as tolices sinceras. Com efeito, nada mais interessante do que uma opinião, essa coisa rara, essa coisa inútil e preciosa.

Mas, na verdade, o que ora mais me interessa não são as tuas opiniões, é o fato de mas expores nessa confiança tranqüila e ridente, sem reservas e sem receios, à sombra da frondosa Amizade, -a bela, a santa, a benéfica Amizade, o único dom dos deuses desmemoriados, que nunca mais se lembrariam de nós, os pobres humanos, ou que, tendo-no-la dado, entenderam ter-nos feito a maior oferta compatível com o nosso egoísmo e a nossa ruindade".

Entrementes, Aurélio discorria. Asseverava, por último, que higiene pública é apenas o negócio dos médicos higienistas e dos fabricantes de aparelhos higiênicos.

-"Sim, talvez tenhas razão".

-"Bem, eu salto aqui, seu Felício. Mais uma vez, obrigado pela passagem".

Eu tinha-lhe pago a passagem.

"Ora, ora!"

- "Não você nem sabe que favor me fez. Saí de casa sem um níquel. Mas, quando vi você neste bonde, lá da esquina da alameda, disse cá comigo, estou garantido. E eis aí por que você teve de me aturar todo esse tempo! Como sabe, esta linha não é a que mais me convém. Mas quem não tem cão... Obrigadinho. Ciao!".

-"Té logo, Aurélio..."

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 15

CAPÍTULO VII

Teobaldo viu pela primeira vez o seu nome em letra redonda, assinando uma produção original, graças a um amigo que fez publicar a balada no Diário do Rio.

Ah! Que contentamento o seu! Contentamento que triplicou, quando o rapaz recebeu da capital de sua província uma folha onde vinham as seguintes palavras:

“TEOBALDO HENRIQUE DE ALBUQUERQUE — Este jovem e talentoso mineiro, filho do Sr. Barão do Palmar e que se acha presentemente na corte cursando a Faculdade de Medicina, acaba de publicar aí a bela poesia que em seguida transcrevemos”.

“É sempre com o maior prazer que registramos fatos desta ordem, e fazemos votos para que o esperançoso poeta prossiga na carreira que tão brilhantemente encetou.”

Seguia-se a balada.

Desde então, começou Teobaldo a cultivar as letras com mais entusiasmo; não que o apaixonasse a arte de escrever, mas pelo simples gosto de ter seu nome em circulação. Fez contos, poemetos, artigos que, depois de apurados pelo Coruja, surgiam no primeiro jornal que os aceitasse.

O que lhe faltava em fôlego para as largas concepções do espírito, sobravam-lhe em habilidade para engendrar pechisbeques literários, muito ao sabor de certa ordem de leitores.

Mas um funesto acontecimento veio tarjar de preto os seus dias — a morte de Santa.
Teobaldo ficou fulminado com a notícia; subiu-lhe à cabeça, em ondas, um delírio de paixões que o teria sufocado se logo não se resolvesse em soluços. Foi a sua primeira idéia abandonar a corte e correr à casa do pai; este, porém, na mesma carta em que lhe dava a triste nova, participava-lhe que iria ao encontro dele.

Coruja, em prejuízo dos seus trabalhos, entendeu que não devia abandonar o amigo e passava ao seu lado grande parte do dia no Hotel de França.

Estavam juntos, quando chegou o barão. Teobaldo lançou-se nos braços do pai e, tanto este como o filho, abriram a chorar por longo tempo.

André, meio esquecido a um canto da sala, observava em silêncio o seu protetor, e surpreendia-se de vê-lo tão transformado. Emílio não parecia o mesmo homem; não dava idéia daquele fidalgo de bom humor, que a todos se impunha, quer pela energia do caráter, quer pela insinuação das suas maneiras à Pedro I. Agora estava sombrio, horrivelmente pálido, a fronte coberta de rugas, em cujas dobras se percebia todo o mistério dos seus últimos padecimentos.

Já não era a sombra do que fora; já não era aquela figura desempenada e ruidosa, mas um vulto sinistro, todo vergado para a terra, e em cujo olhar dorido e pertinaz se via transparecer o surdo desalento de uma dor sem tréguas. E aquele espectro lutuoso, descarnado e alto, inspirava compaixão e simpatia.

— Meu filho, disse ele, quando a comoção lhe permitiu falar, a perda de tua mãe é para nós muito mais grave do que podes supor. Com ela fugiu-me a coragem e tudo que me restava de esperanças... Só tu ficaste e só por tua causa viverei mais algum tempo.

Calou-se, depois chamou o Coruja com um gesto, apertou-o nos braços sem lhe dar uma palavra e acrescentou, dirigindo-se de novo ao filho:

— Preciso ter contigo uma larga conferencia, mas quero primeiro repousar um pouco, porque ao contrário não poderei ligar duas idéias…

Teobaldo chamou um criado, mandou servir um quarto ao pai e voltou para junto do Coruja, que à janela abafava os seus soluços com as duas mãos espalmadas sobre o rosto.

Horas depois, Emílio de Albuquerque mandava chamar o filho e, tendo-o feito assentar-se perto dele, começou a pintar-lhe francamente a triste posição em que se achava.

A sua primeira comunicação foi a respeito da hipoteca da fazenda, o que, em completa ignorância de Teobaldo, se realizara havia mais de dois anos. Levara-o a dar semelhante passo a esperança de poder à custa de certas especulações recuperar os bens perdidos e desembaraçar-se das dificuldades em que se via; mas, por desgraça, tudo falhou, e o que ele supunha uma tábua de Salvamento não foi mais do que a mortalha das suas ilusões. E desde então a roda da fortuna, como se recebera um grande impulso, começou a desandar freneticamente; quanto mais enérgicos eram os esforços e tentativas que ele fazia para suster a sua queda, tanto mais vertiginosa ela se tornava; a sorte, afinal, já não tendo do que lançar mão para lhe quebrar a coragem, arrebatou-lhe a última força que lhe restava, a esposa; e tão certeiro fora este último golpe, que o desgraçado sucumbiu de todo, para nunca mais se erguer.

— Dentro em pouco tempo, disse ele, tenho de entregar tudo aos credores; só nos restarão alguns contos de réis que se acham espalhados por aí nas mãos de vários amigos; fica-me, porém, a consolação de que em toda esta desgraça não cometi uma única baixeza; podia ter enganado os meus credores e assegurar-te, a ti, um futuro mais auspicioso; não quis todavia e não me arrependo disso! Creio que farias o mesmo no meu lugar...

— Honro-me de poder afiançar que sim! Respondeu Teobaldo com tal firmeza, que o pai lhe estendeu a mão exclamando:

— Obrigado, meu filho!

Emílio demorou-se na corte apenas dois dias mais; Teobaldo acompanhou-o até ao Porto da Estrela e voltou para o hotel muito impressionado e tolhido de estranhos pressentimentos.

Coruja vinha ao seu lado, caminhando de cabeça baixa, o ar concentrado e mudo de quem procura a solução de um problema.

O amigo acabava de lhe confiar tudo o que ouvira do pai.

— Que achas tu que eu devo fazer?... perguntava-lhe.

André respondeu depois de um silêncio:

— Em primeiro lugar deves sair daquele hotel; é muito dispendioso e, uma vez que estás pobre, precisas fazer economias...

— Tens razão, replicou o outro, mas para onde irei morar? Bem sabes que nunca me vi nestes apuros...

— Eu me encarrego de arranjar a casa. Queres tu morar outra vez comigo?

— Não poderia desejar melhor... Mas, e o colégio!...

— Dá-se-lhe um jeito. O colégio não precisa de mim à noite; é bastante que eu me apresente lá às seis horas da manhã.

— Quanto és meu amigo...

— Pudera!...

E os dois separaram-se daí há pouco concordes na mudança.

Teobaldo correu então à casa do seu correspondente.

— Espere! Disse-lhe o Sampaio com mau humor; .aquele mesmo Sampaio que dantes se mostrava tão atencioso com ele.

Teobaldo estranhou a grosseria do tratamento, mas teve ainda a generosidade de não acreditar que ela fosse já uma conseqüência de ruína de seu pai.

— Venho saber se... ia ele a dizer, quando o outro repetiu ainda mais forte:

— Espere!

O filho do barão mordeu os beiços e não retrucou, até que, meia hora depois, o negociante se dignou enfim de prestar-lhe atenção.

— Disse meu pai que eu tenho aqui algum dinheiro a receber. Quero saber quanto é.

— São quinhentos mil réis, e é o resto. Depois disso nada mais tenho a lhe dar; terminaram os negócios de pai com esta casa.

— Já sei.

— O senhor pode receber a quantia de uma só vez ou por partes, como quiser...

— Quero-a toda.

— Lembra-se de que é o resto... Despache-me.

— Mas por que não deixa alguma coisa de reserva? Porque não quero de novo aturar as suas grosserias.

— Obrigado. Vai ser servido.

— Mas ande com isso!

— Espere, se quiser.

À noite, Teobaldo depositava em poder do Coruja os últimos quinhentos mil réis.

— É o que resta, disse ele; guarda-os tu, que sempre tens mais juízo do que eu.

André obedeceu, e a mudança efetuou-se no dia seguinte.

Foram ocupar duas salas de uma casa de cômodos.

O Coruja escolheu logo a pior para si, dizendo ao entregar a outra ao amigo:

— Agora é preciso começar vida nova... Tens belos recursos e ainda estás muito em tempo de fazeres de ti o que lhes quiseres...

— Ah! Decerto! Respondeu Teobaldo, sempre com a mesma confiança na sua pessoa. É impossível que eu não encontre meios de ganhar a vida!

— Sim, mas convém não te descuidares.

— Não descansarei.

— E os teus estudos?

— Sei cá! Julgo que o melhor é deixar-me disso! Não tenho fé com as academias!

— Não sei se farás bem...

— Mas não vejo em ti mesmo um exemplo palpitante?...

— O meu caso é muito diverso; sou de poucas aspirações, não desejo ser mais do que um simples professor; tu, porém, tens direito a muito, e aqui em nossa terra a carta de doutor é a chave de todas as portas das boas posições sociais.

— Havemos de ver. Não posso agora pensar nisso, tenho a cabeça fora do lugar...

Pouco tempo depois, quando eles ainda estavam inteiramente possuídos pelo golpe que acabavam de sofrer com a morte de Santa, apareceu-lhes em casa, banhado de lágrimas, o velho Caetano, o fiel criado do Barão do Palmar.

Teobaldo estremecera com um pressentimento horrível e levou as mãos à cabeça, como para não ouvir o que seu coração já adivinhava. E depois, voltando-se rapidamente:

— Fala!

— Ele morreu, é exato!

E o velho servo começou a chorar, sem mais poder dizer uma palavra. Teobaldo arrancou-lhe das mãos uma carta que ele havia tirado da algibeira, e leu o seguinte:

Meu filho — Evoca toda a tua coragem e todos os conselhos que te dei durante a minha vida para poderes ler com resignação o que se segue. Escrevo estas linhas resolvido a meter uma bala nos miolos, quando as houver subscritado para ti. Será isso talvez unia fraqueza de minha parte, será talvez um crime, por que tens apenas vinte e um anos; eu, porém, no estado em que me acho, não posso continuar a viver sem aquela Santa a quem devemos: tu, a vida, e eu, a única felicidade que já não tenho.

Morro ainda mais pobre do que supunha, mas não deixo dívidas; perdoa-me e procura dirigir a tua existência melhor do que eu. O nosso velho procurador fica encarregado de remeter-te o que pagarem porventura os meus devedores, e Caetano entregar-te-á pessoalmente um cofre com as jóias que tua mãe possuía antes do casamento; as outros, as que eu lhe dei, foram já reduzidas a dinheiro.

E adeus, até à eternidade, se não me enganaram na religião que aprendi no berço.

Teu pai — Emílio.
––––––––––––-
continua…

terça-feira, 23 de julho de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Um Homem Perfeito

O Sr. João Cesário da Costa é um homem sólido, solidamente refestelado na vida Tem rendas sofríveis, uma bela casa, uma saúde de ferro, um genro colocado na política. Suas ambições nada têm de temerárias nem de atormentadas: são plácidas; limitam-se, evidentemente, a poupar trabalhos e amofinações, a garantir e a entreter a aurea mediocritas ou o otium cum dignitate em que o Sr. Cesário vive desde mocinho.

Conversar com o Sr. Cesário é um exercício que reconforta e tonifica. A uma ausência absoluta de inquietações pensantes, reúne um otimismo tranqüilo. Quando alguma opinião, alguma frase, algum ato equivoco ou complicado cai no domínio de sua percepção, faz um gesto de quem lhe sentisse o mau cheiro, e afasta-o de si, num pudico movimento que não admite réplica.

É possível confabular com ele meia hora, uma hora, sem lhe ouvir outra cousa que considerações sobre o bom e o mau tempo, sobre a superioridade da roupa preta em relação à de cor, sobre a melhor maneira de preparar um molho de tomates, ou sobre as inconveniências de se viajar no estribo do bonde. Fala correntemente, com certa graça natural, acentuando, recortando, remexendo, saboreando com volúpia os ínfimos pormenores, como quem chupa os ossinhos de um frango assado.

O Sr. João Cesário faz-me, às vezes, o efeito de uma boa cadeira de balanço. Quando me sinto fatigado dos meus infindáveis solilóquios, que nada concluem, entreter um quarto de hora de conversação com este homem é o mesmo que trocar um cavalo aragano por uma cadeira fofa e embaladora. Não há senão o trabalho de fazer a cadeira balançar.

Tive ontem esse prazer. O Sr. João Cesário cumprimentou-me com a sua habitual bonomia temperada de autoridade:

-"Como vai o bom amigo?"

-"Bem, obrigado".

-"Bem mesmo?"

-"Assim, assim..."

-"Por que?"

-"Nada. Vou bem."

-"E a família?"

-"Bem."

-"Sua irmã?"

-"Agora bem."

-"Ah! Esteve doente?"

-"Coisa ligeira."

-"Constipação, de certo."

-"Justamente."

-"O tempo é disso. Tudo por aí anda cheio de gripados. Em casa, todos mais ou menos
perrengues."

-"Que maçada!"

-"Mas não há nenhum caso sério. Creio que o mais doente ainda sou eu."

-"Não parece."

-"As aparências. Tenho uma dorzinha de cabeça que não para, aqui, entre a fonte e a nunca, passando por cima da orelha, -vê neste ponto. Mas o pior é que o intestino anda funcionando meio à matroca, -de tudo, uma sensação de cansaço pelo corpo todo, essa sensaçãozinha amolante e gostosa de um corpo que está pedindo cama - ou rede, que é melhor... ah! ah!"

-"E o senhor sai, apesar de tudo?"

-"Ah! Não posso ficar preso -é inútil! -senão em último extremo. Acredito mesmo que a gripe, conseguindo resistir-se-lhe de pé, vai embora mais cedo. 8enti-lhe a visita há três dias, sábado. Sábado à tarde. Disse à minha velha: "Por sua culpa, estou gripado." Ela ficou passada. "Por minha culpa, Cesário?" -"Sim, por sua culpa, porque me obrigou, ontem à noite, com aquele frio, a dar uma grande volta pelo bairro. Coitada, arranjou-me mais que depressa um escaldapés, uma camisa de flanela, umas meias de lá, um chá, e esteve a ponto de fazer promessa a Nossa Senhora da Penha. Mas eu exagerava. Gosto de brincar com a velha; nunca vi criatura mais medrosa, quando se trata de doenças em casa. Claro que apanhei porque tinha de apanhar..."

-"Não se sabe como é que ela chega"

-"Não, às vezes se sabe. Mas, no meu caso, não foi o tal passeio de noite. Digo que não foi porque, já antes de mim, o Alfredinho meu filho sentira a primeira bordoada. Só nos contou isso ontem à hora do chá. Demais, estou habituado a fazer voltas a pé, de noite, depois do jantar,quando não chove. É verdade que aquela noite tinha caído uma garoinha, coisinha de nada, ali pelas sete horas. Quando saímos às nove, o céu estava limpo como um prato. E que luar! Fomos até lá ao alto do morro, descemos pela avenida, passamos pela igreja..."

-"Sr. Cesário, leu a notícia daquele crime?"

-"Nem fale! Que coisa estúpida! Como se mata um homem pacato, trabalhador, boa pessoa! Aqui está um caso em que eu, jurado, não tinha contemplações. Então é assim? destrói-se um pai de família como quem acaba com uma cobra à-toa, por umas questõezinhas de nonada?"

-"Havia uma questão de honra, alega o assassino."

-"Honra, honra! Pusesse a mulher para fora de casa."

-"Mas, ele amava a mulher."

-"Qual, nada. O seu dever era esse, e nunca matar. Ninguém pode matar. A vida, quem a dá é Deus, e quem a pode tirar é só Deus".

-"Mas o senhor garantirá que não foi Deus quem a tirou à vítima por intermédio do assassino, como a podia tirar por meio do tifo ou do automóvel?"

O sr. João Cesário não respondeu; nem pestanejou sequer. Puxou do lenço de linho, que trazia dobrado no bolso da direita, escarafunchou as ventas, tornou a assoar-se, dobrou e guardou o lenço. Em seguida tirou um outro de fina cambraia, que trazia alequeado no bolsinho de cima, e passou-o pelos lábios e pelas fossas. Por fim, arrumou-o de novo, calcou-o, e, numa despreocupação satisfeita:

-"Pois é isso".

Pouco adiante, disse-me adeus, esperou o carro parar bem parado, desceu, voltou-se para mim a fazer uma última cortesia, e partiu, muito apertado no seu terno azul de risquinhas brancas, sopesando com graça a bengala de castão de ouro.

E havia em redor dele um halo de perfeição.

Eis aí um homem feliz. Acompanhei-o com um olhar de inveja, enquanto pude; mas acabei por me resignar. Coisas que não se aprendem, não se adquirem. Que fazer? Limitarmo-nos a admirar.

Este indivíduo, como tantos outros aparentemente insignificantes, é uma verdadeira maravilha da humanidade. Que assombrosa obra de inteligência e de técnica magistral, a composição deste mecanismo físico-psíquico, tão perfeitamente adaptado a todas as condições médias de uma navegabilidade tranqüila!

Foi, sem dúvida, fabricado após uma série imensa de provas e após uma colheita e apreciação rigorosa de milhares de dados experimentais. Diga quem o quiser que é mero produto das forças inconscientes da natureza".

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 14

CAPÍTULO VI

Com efeito, Teobaldo, daí a dias mudava-se para o Hotel de França, abandonando a Ernestina todos os trastes que ele possuía no segundo andar... Foi então que lhe chegou às mãos uma carta do pai, a primeira que tratava de questões pecuniárias. O barão, a pesar seu, tinha de entrar nesse assunto e pedia ao filho que apertasse um pouco os cordéis da bolsa.

Não estamos no caso de fazer muitas larguezas, meu querido filho, dizia ele depois de confessar que sua vida achava-se um tanto complicada; ultimamente persegue-me um azar terrível: em nada do que empreendo me saio bem, e a continuarem as coisas deste modo teremos fatalmente a ruína pela proa! É preciso que desde já restrinjas as tuas despesas. No primeiro ano de Rio de Janeiro gastaste um conto de réis, no segundo quase três e ainda não findou o terceiro e já tens despendido neste muito mais do que nos outros dois reunidos. Acredita que não te falaria nisto se a tal não me obrigassem as circunstâncias. Acabo de ajustar contas com o meu correspondente, não lhe fiz recomendação nenhuma a teu respeito, porque entendo melhor fazê-la a ti próprio; tens bastante critério para avaliar o que aqui vai dito e tomares sérias medidas a respeito de tua vida!

Nada de envolver estranhos neste negócio; mais vale arruinado em segredo do que às claras, porque tudo perdoam à gente, menos a pobreza. Tua mãe continua cada vez mais incomodada; principio a ter sérios receios; os seus padecimentos agravam-se de um modo bem desconsolador. Vê se te aprontas o mais depressa possível e dá um pulo até cá: temos ansiedade de teus abraços.

Esta carta foi um choque terrível para Teobaldo; estava bem longe de contar com ela e, pela primeira vez, refletiu na possibilidade de ficar pobre de um momento para outro; e pensou também no muito que esbanjara desde que residia na corte e no muito que se descuidara dos seus estudos.

Não podia ser por menos com a vida que ele levava ultimamente: os seus dias eram em geral consumidos do seguinte modo: acordava às onze horas da manhã, descia ao tanque, onde durante meia hora se deliciava dentro de um banho perfumado; depois deixava-se enxugar pele Sabino, vestia-se com o auxílio deste e subia ao quarto, onde já o esperava o cabeleireiro com a sua navalha e os seus pentes. Acabada a toilette, passava ao salão do hotel e almoçava. Às vezes fazia duas horas de trote pela praia de Botafogo ou pela rua de Mata-cavalos; jantava à noite; ia quase sempre ao teatro ou à casa de alguma família conhecida ou então, o que era mais freqüente, entretinha-se a beber e a conversar com amigos em casa de mulheres do gênero de Leonília.

A respeito de escola — nada.

Quando se recolhia antes da meia-noite, ainda se entregava a qualquer leitura, literária ou científica, conforme o apetite do momento; outras vezes recorria ao piano e passava duas ou três horas a recordar o clássico repertório que aprendeu em casa da família.

É de notar que Teobaldo, no meio da sua espécie de boêmia aristocrática, não perdera o sentimento do belo, o amor às letras, o entusiasmo pelas coisas heróicas e o respeito às mulheres honestas; tão poderosos e salutares foram para ele os singelos conselhos de sua mãe. Apesar da egoística filosofia do Barão do Palmar, Teobaldo conservava ainda para com o Coruja a mesma sagrada amizade e a mesma dedicação da infância. Era tal o apreço em que tinha o amigo, que chegava a sentir remorsos de não proceder como ele. Instintivamente e a despeito dos seus dotes intelectuais e físicos, reconhecia em André uma certa superioridade moral, um certo privilégio de bondade que o tornava digno de inveja.

Aquele vulto modesto, feio mas sem vícios, trabalhador e honrado, bom e ao mesmo tempo antipático, às vezes até lhe parecia defronte da consciência como um juiz sobrenatural que tacitamente o condenava. E Teobaldo, quisesse ou não, via, através daquela rígida couraça de monstro, transparecer a alma imaculada de um herói.

Entretanto, não seria capaz de confessar a ninguém semelhante coisa e, quando falava do Coruja, aos seus companheiros de pândega, tinha na fisionomia, em vez da admiração9 um gesto frio de risonha condescendência. Às vezes, aos domingos, quando André tirava o dia a descansar, ia ter com Teobaldo muito cedo e arrancava-o da cama para uma excursão fora da cidade.

Aquele amor ao campo, despertado em seu coração pelas primeiras férias passadas na fazenda de Emílio, conservava-se inalterável; e esses passeios, prolongados até à Caixa d'água, aos Dois Irmãos ou à Tijuca, constituíam a grande distração, o luxo, a extravagância de sua vida.

Teobaldo, ou fosse porque estimava deveras o Coruja, ou porque um espírito fatigado da pândega precisa de Vez em quando remansear ao abrigo de um prazer tranqüilo o certo é que ele não acompanhava o outro por mera Condescendência, mas ao contrário punha nisso muito empenho.

Se o passeio era longo, preparavam de véspera o seu farnel, de cuja condução se encarregava o Sabino, e no dia seguinte partiam a cavalo, antes de surgir no horizonte o primeiro raio da aurora. Era nesses longos passeios de domingo, que entre si os dois amigos prestavam contas do que faziam na ausência um do outro. Passavam horas esquecidas a conversar: Teobaldo, sempre muito expansivo, não lhe escondia nenhum de seus atos, bons ou maus, e falava amargamente dos seus tédios e das contrariedade; o Coruja, sempre disposto a achar a vida melhor do que esperava, confessava-se agradecido à fortuna, falava da sua prosperidade e não tinha uma palavra de queixa contra ninguém.

Teobaldo uma vez lhe perguntou:

— A quantos discípulos ensinas tu de graça, ó Coruja?

— Em verdade a nenhum... Respondeu o professor, incomodado com a pergunta.

— Todos eles te pagam?

— Sim; os que não podem pagar já, pagarão mais tarde... Neste mundo a gente não deve olhar só para si... Uma mão lava a outra! Lembra-te de que eu nada seria no rol das coisas, se não fosses tu!

— Sim, mas eu ouvi dizer que até compravas livros, papel, penas e lápis para alguns discípulos.

— Ah! Isso é só quando são de todo muito pobres...

— E que até lhes davas dinheiro para levarem à família.

— Casos muito extraordinários! E o dinheiro não é dado, é emprestado... Hão de pagar, quando puderem...

E, receoso de que o outro insistisse no assunto, Coruja cortou a conversa, perguntando-lhe se tinha escrito mais alguma coisa depois que estiveram juntos.

— Fiz versos. Queres vê-los? Aí os tens.

André passou a ler com todo o cuidado os versos do amigo e logo depois travou-se entre eles a discussão natural entre um espírito que vive da fantasia e um outro que vive do estudo.

Coruja não admitia um galicismo, uma imperfeição de linguagem. Lido como era nos clássicos, queria o português puro e correto; além disso, com a sua memória mais do que privilegiada, poderia jogar facilmente com a velha terminologia da língua, no caso que lhe não faltasse a imaginação; e com Teobaldo sucedia o contrário justamente; — tinha idéias e não tinha a forma.

— Vê agora que tal achas esta balada, disse este, passando-lhe uma folha de papel.

O Coruja leu:

"Meu coveiro, já teu braço
Não te custa a levantar?
Não te pede do cansaço
O teu corpo descansar?
Não me custa, caminheiro,
Não me pesa trabalhar;
Ganho nisto meu dinheiro;
Tenho gente a sustentar.
Pois bem, coveiro, prossegue,
Mas de ti quero um favor;
Não é coisa que se negue,
Não é coisa de valor:
Trago aqui, agasalhada,
Minha amante, que morreu;
Tinha na terra morada
Mas sua pátria era no céu.
Quero apenas, meu coveiro.
Que sepultura lhe dês,
Porém me falta o dinheiro
Para pagar-te, bem vês...
Anda avante, caminheiro;
Já meia-noite bateu.
Não sepulto sem dinheiro,
Que dos mortos vivo eu!"

— Está assim, assim, disse o Coruja, depois de ler; e fez algumas alterações na construção das frases. Aquela rima em ar não devia ser repetida na segunda  estrofe, mas enfim pode passar.
––––––––
continua…

15º Encontro Internacional Literário aBrace (Belo Horizonte, 13 a 16 de novembro de 2013)

15º Encontro Internacional Literário aBrace, de 13 a 16 de novembro de 2013, na Cidade  de Belo Horizonte, Minas Gerais. O evento contará  com diversas atividades culturais: lançamentos  de livros, passeios, oficinas de arte,  saraus, recitais de música e poemas e visitas a centros culturais. Participarão vários países da América Latina e de outros continentes.

Para o 15º Encontro Internacional Literário aBrace convoca a Direção do Movimento Cultural aBrace, (ABRACECULTURA), com sede em Montevidéu- Uruguai,  e sua representação em Belo Horizonte, Clevane Pessoa  e Brenda Marques do Imersão Latina( IMEL). Conta ademais com a participação   de Veronica Bianchi (aBrace Representação e Serviços – Uruguai)  e o  apoio das entidades culturais: Marco Llobus (FEC/selo Catitu) , Ricardo Evangelista(Sarau Tropeiro , Lagoa do Nado) , Rogério Salgado e Virgilene Araújo (Belô Poético e Poesia na Praça Sete) ,Claudio Bento (ValeMais),  Iara Abreu (Projeto Aspectos Urbanos), Norália de Melo Castro (cidade de Brumadinho), Rodrigo Starling, e do Restaurante D. Preta.

Para coordenar sua participação e outras informações, solicitamos preencher  e enviar  a ficha de inscrição, até 30 de outubro de 2013, acompanhada do comprovante da taxa de inscrição correspondente.

Agradecendo antecipadamente a sua presença com os nossos melhores cumprimentos,
           Atenciosamente,
Nina Reis y Roberto Bianchi
Directores de aBraceCultura

Ficha de inscrição em português
 
COMO PARTICIPAR DO 15º ENCONTRO INTERNACIONAL LITERÁRIO aBrace
 
Até 31 de outubro de 2013: preencha a ficha de inscrição dentro deste prazo e envie o comprovante do depósito, por email, a abracept@abracecultura.com ou abrace@abracecultura.com  juntamente com os dados:
Nome:___________________________________Data de nascimento:___________________

Email:______________________________Endereço:____________________________

Cidade:______________________Estado:______________________País:____________________

Cep:_______________Telefones para Contato (importante, não deixar de preencher): ____________________

Profissão:____________________________Formação Acadêmica:______________

Nacionalidade:__________________(Envie fotografia)

Breve C.Vitae:(até 10 linhas
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

MARQUE A(S) ATIVIDADE(S) QUE DESEJA REALIZAR /13 a 16 novembro 2013 (Encontro Literário)
Participação em livro da aBrace editora _____________________________

    Título do livro: _______________________________   
Apresentação de livro individual ___________________________________
Título do livro:____________________________________
Mostra de livros e/ou revistas no espaço do Encontro___________________
Participação em mostra de Literatura infantil _________________________
Leitura de textos e/ou performances no Café Literário__________________ 
Palestras (como palestrante) ______________________________________
(Tema: A integração cultural multilíngüe- Diversidade e Herança cultural - influências e contribuições na formação cultural dos países ibero-americanos a)Envio de texto completo,  até 2000 palavras  - via e-mail:   até 31 de agosto de 2013. b) Cada participante terá 15 minutos para apresentação do trabalho. Pelo número limitado de palestrantes será considerado a ordem de chegada dos textos. Somente será admitida uma palestra por pessoa)
Visitas com leituras, e intercâmbios culturais__________________________ 
 (locais: centros comunitários, bibliotecas, livrarias, escolas, oficinas literárias, etc.)

AS inscrições para o Encontro podem ser feitas através da conta do Banco do Brasil, Agencia 1503-2 / conta corrente: 853931-6 em nome de Rosângela Domingos Fernandes, no valor de R$200,00.
Inscrições para participantes, no local do evento – R$ 250,00. Acompanhantes -isentos da taxa de inscrição.
 Atenção: Em caso de desistência de participação a devolução de valores pagos como inscrição obedecerá ao seguinte critério:
- Até 10 dias antes do Evento, devolução de 50%,
- Após estas datas não será possível nenhuma devolução de valores

Fonte:
Clevane Pessoa

Don Quijote de la Mancha (Evento em Curitiba, 14 de agosto)


Semana dos Escritores de Maringá, no SESC (22 a 26 de Julho)

clique sobre a imagem para ampliar

domingo, 21 de julho de 2013

Antonio Brás Constante (Meu Nariz, Sua Boca e um Cigarro entre Nós)

fonte: www.not1.com.br
SIM, eu fumo. Fumo através de outras bocas, cada vez que respiro o ar advindo de suas narinas, que exalam fumaças toscas. Fumo de forma passiva, indefesa. Fumo sem ver, sem muitas vezes saber. Fumo por ter que respirar um ar viciado, produzido por você.

Eu padeço de um suplício através de seu vício, perecendo um pouco a cada momento, por causa de suas baforadas desaforadas, desta doença disfarçada de indiferença, que atenta contra a própria vida que em ti se sustenta.

De tempos em tempos uma nova tragada, desta podre fumaça estragada, que viaja em suaves brumas para ser por mim inalada. Sinto-me um cinzeiro humano, contaminado por seus crônicos atos insensatos, que impregnam meus cabelos, minhas roupas, minha mente, com o cheiro que brota das cinzas de suas guinbas decadentes.

E você se acha uma pessoa bacana, sorvendo seu cigarro até a bagana. Soprando a morte aos ventos da própria sorte. Meu pior sortilégio é ser vítima casual de suas ações fugazes para tentar fugir do tédio.

Indivíduos movidos por uma ânsia que vai apagando o fogo de sua essência, queimando suas entranhas com todo tipo de moléstias estranhas. Alguns chegam a clamar por direitos equivocados de usufruir do funesto tabaco, por tantos outros execrado.

Quem cai nas garras desse frenesi, sabe o quanto é fácil começar e difícil parar de fumar. Onde o condenado ainda paga para poder se matar. Coloca na boca a arma e vai disparando para dentro de si mesmo atroz veneno, consumido em frascos tão pequenos. Atira uma, duas... Inúmeras vezes (e seus pulmões que se danem sofrendo a esmo).

Vão se matando aos poucos, e alguns ainda dizem que eu é que sou louco (talvez só um pouco). Mas acho que é porque quem respira tais toxinas às vezes desatina. Vai assassinando sua tênue existência todo santo dia, em troca da fútil nostalgia de soprar fumaça, imitando a chaminé de uma lareira nefasta.

Suicidas que se acham modernos. Fumam para espantar os seus demônios internos. Fumam pela rebeldia, ou para simular alegria. E eu sigo fumando com eles. Adoecemos, combalidos por essa desgraçada fuligem amaldiçoada. Agora se me derem licença vou tomar minha cachaça, pois já que é para se acabar, enfisema ou cirrose tanto faz. O importante é saber que no fim alguém vai acabar lucrando, enquanto vamos todos nos matando. Enfim, como para meio entendedor uma boa palavra basta, só posso deixar uma dica: fumar MATA.

***
A PROPÓSITO: Falando um pouco sobre a notícia de astronautas que perderam suas ferramentas no espaço, fica a pergunta: Afinal, perder coisas no espaço pode ser considerado um acontecimento sem gravidade?

Fonte:
O Autor

Humberto Veríssimo Soares Santa (Árvore de Versos)

 A ÁRVORE

O vento assobiou soprando forte.
A árvore foi bailando, sacudida,
Enfrentando as rajadas, destemida,
Pra não vergar seu tronco, ao vento norte.

Desconhecia a triste, a triste sorte,
Teimando em defender a própria vida!...
Sem força, sem poder e sem saída,
Enfraquecida, foi perdendo o porte.

Exausta, a gigante soçobrou!...
Eu vi, quando a senti perder a fé
E a última rajada a empurrou.

O colosso vergou, caiu e até
Foi num choro de folhas, que tombou!...
…Há árvores que não morrem de pé!

A CARTA

Na carta, assinaste : Coração.
Em vermelho batom, colaste um beijo.
Ouço sons de violino... são o arpejo
Do suave dedilhar da tua mão !

No ar, sobem mil bolas de sabão
Levando para o espaço o meu desejo.
Procuro ao meu redor mas se te vejo,
Essa imagem não passa de ilusão.

Distante, viajante e perdulária
De gestos, de surpresas... nostalgia !
Sonho-te Vénus da antiga estatuária

Que ao espírito, em luz, dá alegria.
Dorme hoje no meu sono, ó solitária !...
Ah !...Veste-me de ti.... ó simpatia !!!...

DÁLIA NEGRA

Ó africana semente !...
...Quem te trouxe de além-mar
Rumo a outro continente,
Para terra tão diferente
Da terra do teu lugar ?

Rainha de mil amores !
Cor de ébano, menina,
No jardim, entre outras flores,
Cor perdida entre outras cores,
Negra flor que nos fascina !

Dália negra !... Qual o fim ? !...
Linda flor !... Que é da ventura ?
Que é de ti nesse jardim,
Sonhando com o jasmim
Que te roubou a frescura ?

A NUVEM

Sei não ter energia pra ser estrela
Mas tenho o meu lugar no infinito
Qual branca nuvem no azul bonito,
Alvo espelho de luz, que o Sol revela.

Essa nuvem, no céu vós ireis vê-la
De contorno indefinido, meio esquisito,
A parte do meu ser em que acredito,
Volátil, orgulhosa, informe e bela !

A nuvem... alma minha, ilusão !
Verá que o ser humano não melhora :
Só os poetas e os loucos sonharão.

A nuvem, correrá p’lo mundo fora
E as lágrimas que em chuva cairão
Serão da alma-nuvem que em mim chora !

A SOMBRA

A Sombra deslizou pelo salão
E parou frente ao trono do Poder :
- Tudo o que podes, não te vai valer
Porque o Poder não passa de ilusão.

Levantou-se o Poder com decisão :
- O que dizes...ó sombra deprimente ?!...
Como te atreves tu, que nem és gente,
A sentir o poder da minha mão ?!

- Não há força que valha, quando passo,
Sou eu, a Sombra, quem te dita a sorte.
Não há Poder que fuja ao meu abraço

Quando eu, a Sombra, o aperto forte.
Todo o Poder, aonde vou, desfaço !
Se tu néscio, és Poder, eu sou a Morte !

A TÚNICA

Levei o meu silêncio à catedral.
Ajoelhei entre os bancos alinhados
Sentindo em mim, o peso dos pecados,
Quedei-me ali, na nave principal.

O Sol abria cor num só vitral
Com Cristo e dois ladrões dependurados.
Guardas romanos que jogavam dados
Davam a cor do sangue àquele local.

Era jogado o espólio do inocente,
A túnica do próprio Redentor.
Senti-me a testemunha ali presente

E olhei a opulência ao meu redor.
Se nada fiz, nem quis mudar tal gente,
Fui eu que te matei... ó meu Senhor !

 A ÚLTIMA CENA

No palco, o velho actor fungou e disse :
- Escutem !... Hoje a máscara caiu !
Alguém roubou a peça e fugiu
Pra que o acto final não se cumprisse.

A cena principal era : “Velhice”.
O povo arrefeceu. Nunca se viu
Tanta gente a tremer, cheia de frio,
Para assistir à última tolice.

A multidão gritou horrorizada :
- O que foi ?!... O que foi que aconteceu ?!
Qual o final da peça aqui roubada ? !

O velho mascarou-se e olhou o céu.
Só uma voz se ouviu entusiasmada :
- Viva o actor !... - e o velho actor morreu.

A VIRGEM NEGRA

Sempre que a virgem negra ajoelha em prece
Em frente do altar-mor da catedral,
A súplica em silêncio acontece,
Pedindo o grande abraço universal.

Pelo negro da pele passeia a dor,
Em anseios de amor já transformada.
A alma é branca, não devendo a cor
Tornar a linda virgem, mal-amada.

Na arte da sagrada catedral,
São brancos... anjos, santos e cupidos.
Negros!... Só Satanás e anjos do mal.

Os santos de pele negra, estão esquecidos
Mas são raios da luz celestial
Que só p’la virgem negra, são sentidos !...

ABRAÇO DA SAUDADE

Sou fantasma na casa velha e triste !...
Na sala o tempo geme, sufocado.
Meus passos soam secos no sobrado...
Tudo o que foi aqui, já não existe.

Procuro em vão por ti mas tu sumiste.
Só a saudade abraça o meu passado,
Pai, diz-me aonde estás ?!... Para que lado
Fica o mundo de luz, pró qual partiste ?

Ao abrir portas na recordação
Preciso estar por ti acompanhado :
- Chega-te a mim, vem !... dá-me a tua mão !...

Vem pisar os caminhos da lembrança.
Quero ficar a ti aconchegado
E ao teu colo... voltar a ser criança !...

ABRAÇO

Junta o teu coração ao meu e agora
Os dois seremos um na caminhada,
Alma com alma, ambos de mão dada,
Serenos pela vida... vida fora.

Sempre que um estiver triste, o outro chora.
Se um rir, o outro solta a gargalhada.
A estrada dum, será do outro a estrada,
Quando um está perto, o outro não demora.

O nosso abraço, abraça a vida agora,
Protegendo na arena o nosso espaço,
Um dia um vai partir e ao ir-se embora

Levará deste amor algum pedaço.
Se for eu o primeiro... nessa hora,
No céu, fico esperando o teu regaço !

ALMA VESTIDA

Um vulto nu e só, dança na estrada
Lavando, com seus sonhos, corpo e alma.
Perdido, foi parar na encruzilhada
Onde nem no cansaço, sente a calma.

Quem és tu, dançarino do caminho ?...
Que fazes por aqui, bailando nu ?...
Que fazes neste mundo, tão sozinho ?...
Homem (que sou eu)... diz !... - Quem serás tu ?...

Pra seres o ditador da própria sorte
Nesta difícil dança que é a vida,
Terás que demonstrar que és o mais forte

Erguendo alto, a fé nunca perdida.
Só assim vencerás a própria morte,
Nu de corpo, porém de alma vestida !

AMANTES

Dançaste, deslizando, divertida.
Depois, foi em nácar que te tornaste
Quando só, quase nua, meio vestida,
Na relva do jardim te acomodaste.

Beijada pela luz, sob a ramagem,
Estes meus olhos viram-te princesa,
Tendo eu, logo ali, virado pagem,
Guardião dessa fonte de beleza.

O sol que abria o verde, distraído,
Penetrando seus raios entre a folhagem
Era um ramo dourado, que caído,
Punha pequenos sóis na tua imagem.

Ao longe um girassol virava lento
Seguindo a cor do Sol embevecido.
Um cisne, só, nadava pachorrento,
De branco e de elegância bem vestido.

Beijei nesses teus seios a beleza,
Bebendo em delírio a tua imagem
Que via no teu trono de princesa
Comigo a teus pés, nascido pagem.

Mais tarde, quando o Sol já se deitava,
Rebolámos p’lo chão mais uns instantes
Sentindo a brisa terna, que afagava
Os nossos corpos de eternos amantes.

Fonte:
Portal CEN.

Humberto Veríssimo Soares Santa (1940)

Humberto Veríssimo Soares Santa - Nascido a 31 de Outubro de 1940, numa pequena aldeia do litoral português, Atalaia da Lourinhã, de onde saiu com dois anos.

Viveu a maior parte da sua vida na cidade de Setúbal, tendo estado ligado à Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra, onde foi responsável pelo Departamento de Coordenação de Operações, encontrando-se hoje na situação de aposentado.

É casado com Margarida Augusta Correia Pinto Soares Santa que alia à arte de desenhar uma elevada sensibilidade poética e lhe ilustra todos os poemas com magníficos desenhos a lápis ou a nanquim.

OBRA LITERÁRIA
POESIA :
MUNDO DE QUIMERA – Edição do autor 1999

COLECTÂNEAS :
POIESIS V e VI – Editorial Minerva – Lisboa – 2001
TEMPERA(MENTAL) – Editorial Minerva – Lisboa – 2002
PROSA & VERSO II – Projecto Palavras Azuis – Blumenau (BRASIL) – 2003
I ANTOLOGIA DO PORTAL CEN - Edição L.P. Baçan – P. R. – Londrina - BRASIL 2004
TERRA LUSÍADA – Edição Abrali – BRASIL – 2005

LIVROS VIRTUAIS :

REDENÇÃO
FRASCOS com gotas de poesia
SENTIMENTALMENTE
FANTASIA NO LAGO DOS SONHOS
O BERGANTIM DE CRISTAL
O OÁSIS DO AMOR
O PENSAR PROSAICO DE PEQUENOS POETAS
MUNDO DE QUIMERA I – II – III
ALMA PEREGRINA
O TEMPO E O VERBO

Participação em várias ANTOLOGIAS

Fontes:
http://www.ligia.tomarchio.nom.br/ligia_amigos_humbertosoaressanta.htm

Marcos Pasche (Assis Lima, de cântico e de corte)

Por vezes nos deparamos com uma assertiva a dizer que certos autores, ao desenvolverem sua bibliografia, estão escrevendo e reescrevendo sempre o mesmo livro. Alargando um pouco mais a ideia, muito me chama a atenção a hipótese de certos autores nordestinos formarem uma família antropoliterária, os quais traçam e trançam na mesma renda a inesgotável e árida epopeia da vida e da morte agrestes.

Vou omitir, por falta de lembrança ou de conhecimento, nomes importantes, mas penso que tal família tenha seu precursor em Augusto dos Anjos, sendo configurada por Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Ronaldo Correia de Brito e Daniel Mazza. Não se pode negligenciar as miríades de poetas cordelistas e cantadores espalhados pelas feiras e empalhados nas prateleiras do menoscabo da “alta cultura”.

Tais autores irmanam-se ao tomarem mutuamente os procedimentos formais e os temas constantes da obra de seus entes, sem que isso nos cause, admiravelmente, a sensação de previsibilidade ou mau epigonismo. Todos eles desautorizam a visão pitoresca do espaço sertanejo, encravam a caatinga em seus parágrafos e estrofes, tornando-a metáfora de espaços e tempos de todos os lugares e épocas, sejam as ágoras mitológicas da Grécia, sejam os bíblicos e empoeirados caminhos da Palestina. São eles xilos ou litogravadores da palavra, visto lançarem-se de encontro ao hiperbólico mosaico da linguagem para dele extrair ou nele imprimir, à mão de faca, a palavra certa e seca. Sublimadores da brutalidade, valem-se de mão de vaqueiro, que por um instante é capaz de domar a vida: domadores do discurso, penduram a encharcada escrita à cerca e ao sol para que se lhe retire toda a gordura, até que sobre apenas o substantivo couro. Alunos dos seixos, concebem a partir do vento quente e da areia seca, pois tanto o sopro como o barro têm uma saúde incoerente para esta gênese.

Assis Lima pertence à linhagem desses escritores, umbilicalmente ligados ao sertão e espiritualmente dados ao mundo. Nascido no Crato, interior do Ceará, Assis, médico de profissão, fixou residência na urbaníssima São Paulo. Nela desenvolveu o notável estudo Conto popular e comunidade narrativa, que a um só tempo registra e abraça a vocação do povo nordestino para a oralidade, a qual, de tão bem aprendida com os gregos, tornou-se invenção patrimonial sua. Como poeta, Assis presentificou os aspectos mais representativos de sua genealogia artística em Poemas arcanos, livro repleto de evocações locais e translocais, todas enoveladas em cantigas, “incelenças”, lendas e evangelhos.

E para perpetuar o movimento contínuo de ressurreição de sua família autoral e assinalar seu fio particular, Assis Lima dá ao primeiro texto do seu Marco misterioso o aqui infiltrado título de “Água”, com o qual diz não e sim à sua sina – “O deserto esteve fincado dentro de mim” (…) // “Que me cubra o nevoeiro!”. Essa peleja, típica do homem em apreço e repulsa pela matéria de que se constitui, tem presença cativa em diversas passagens do livro, e em textos como “Caleidoscópio” ganham a feição de arena onde duelam ser e transcender: “As pedras, uma extensão de mim. / E dentro das nuvens, a extensão de todas as pedras”.

Assis Lima é a assinatura literária de Francisco Assis de Sousa Lima (com o nome civil ele registrou sua tese acadêmica). Há nessa heteronímia o amálgama de símbolos próprios da literatura que o autor desenvolve e da casta à qual pertence. Francisco (de) Assis é nome de um dos mais expressivos personagens bíblicos, ao passo que “sousa” – registram os dicionários portugueses – é um tipo de pombo aguerrido, não por acaso tomado como imagem de brasões familiares. No Brasil, Sousa é uma cidade do sertão paraibano. Já então se vê o anelo do local e do universal, ao qual se liga a fusão da figura do santo e do bicho guerreiro, ambos imagens diletas da cultura nordestina. “Lima” é uma fruta cítrica, ácida, cortante, e mais ainda o é a lâmina com que o autor decepou sua identidade em consonância com o corte literário: os Poemas arcanos, da primeira para a segunda edição, foram reduzidos a quase metade, e este Marco misterioso já vem ao mundo com uma seção amputada, visto ser e não ser pertencente ao conjunto do que agora se publica. E não nos esqueçamos: o Rio São Francisco encrava-se gigantesco no solo e na sola do Nordeste, cercado de seco por todos os lados, cortando-o de ponta a ponta.

Mas a coisa não se fia por aqui: dentro deste volume a escrita se mostra mais muscular quanto mais se depura da carne das palavras, como se fosse (e é) possível enrijecer-se de ossos. É o que se observa no finamente geométrico engenho de “Ângelo Monteiro”, ou no obsessivamente talhado “Sem título”:

Pelo verso
e avesso
em teu colo
me teço.

Por teu vinho
e chama
minha sede
clama.

Em teu seio
redoma
me rendo
genoma.

Essa poética busca uma dicção quite em seus desacordos, e o poeta desgarra-se do parentesco a fim de tanger os próprios passos e o próprio canto. Por isso o leitor verá também um feito marcante do livro no caudaloso “Via Sacra pela morte do filho”. Trata-se de um poema de alta voltagem dramática, construído a partir do arranjo das vozes do pai consternado e do coro que se encarrega de verbalizar o roteiro fúnebre:
“Prepara-te, corpo
que chegou teu dia,
recebe esta roupa,
vai em boa companhia”.

E dentro do rio turvado de lágrimas brotam as teimosas águas de “Vida de violeiro”, poema nordestiníssimo por suas cores e sons. O ritmo cantante da redondilha heptassilábica embola na malha do texto a evocação de cantadores lendários, como Cego Aderaldo e Zé Limeira, quando toda a embolada ganha o tom de uma ciranda, viva porque cantada:
“‘Quem não canta neste mundo
no outro fica engasgado,
pois o nosso mundo é este,
que o outro, é do outro lado,
por isso cante com a alma
que a vida lhe deu de agrado
para alegrar quem não canta
e alegrar quem está calado!’”.

Foi o poeta-violeiro quem mandou. Que a sua leitura seja, portanto, a rima a unir poesia, alma, corpo e alegria.
=======================
    (Marcos Pasche nasceu no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1981. Cursa doutorado e leciona Literatura Brasileira na UFRJ. É crítico literário, autor de “De pedra e de carne: artigos sobre autores vivos e outros nem tanto”. Neste momento, pede aos acidentais leitores que não deixem de assistir ao documentário “Garapa”, de José Padilha)

Fonte:
8Oa. Leva da Revista Diversos Afins; entre caminhos e palavras, (http://diversosafins.com.br/), in Aperitivo da Palavra