sábado, 27 de julho de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Problemas

Hoje, o bonde vinha cheio, e tive de ceder o meu lugar a uma senhora. Esta, ao invés de me agradecer, parece que ficou ligeiramente arrufada com a minha gentileza.

Creio que a ética do bonde manda que, ao ceder o lugar, o passageiro não dê a isso a mais ligeira aparência de um ato de cortesia faça-o friamente, como por uma obrigação regulamentar. Deve ser isso.

Mas será? Eis aí um dos inumeráveis problemas psicológicos que o bonde depara. O bonde é um saco de víspora: é só meter a mão, remexer, pegar, lá vem o problema psicológico.

Infelizmente, esses problemas vão ficando cada vez mais obscuros, à medida que cresce o número dos psicologistas, número infinito, hoje em dia, só comparável ao dos sociólogos. Se o futuro do Brasil dependesse da psicologia da sociologia, estava garantido; e só nos restava lamentar que não pudéssemos viver mais uns cinqüenta ou cem anos, para assistir ao grande fogo de vistas dos resultados. Estupenda coisa a ciência!

Há dias, vi o Sr. João Cesário a conversar atentamente com um mocinho sisudo e altivo. Este falava em coisas difíceis: mentalidade primitiva -formação alógena -metabolismo racial camadas de aluvião -idealismo hipocondríaco -teorias de Comte e Spencer -obras de Le Play, Fouillet, Tarde, Novicow, Pareto, memórias de Schwaartzemberg e Perikowski, de Astrinaieffe e Dragobsen. De repente, despediu-se e desapareceu veloz, como uma motocicleta.

Corria, provavelmente, a endireitar algum erro perigoso de técnica social, que estivesse para desabar sobre nós. Digno bombeiro da Ciência!

Neste ínterim, perguntei assombrado ao Sr. Cesário:

-"Quem é este menino? Que sábio!"

-"Nem tanto. Muito estudioso, isso sim. Especializou-se - não sabe? É apenas sociólogo".

Senti-me absolutamente acalcanhando com ver um menino que, ainda longe dos trinta anos já havia conseguido ser um sociólogo, apenas. Senti necessidade de esquecer aquilo.

Montesquieu disse que não havia aborrecimentos que não lhe passassem com meia hora de leitura. Não sei se isto provará a virtude da leitura ou antes de Montesquieu. A mim, muitos aborrecimentos me desaparecem com a decifração de problemas ou com jogos de paciência. Armei logo uma série de dificuldades através dos miolos, e depois mergulhei em cogitações para as desmanchar uma por uma.

Foi o que fiz hoje. Não tendo mais em que me ocupar, comecei a extrair e remexer os problemas que o bonde me oferecia, abundante corno pedreira.

Por que é que os nossos conhecidos sempre nos aparecem nos bancos de trás à hora da cobrança das passagens?

Por que é que as senhoras apeiam voltadas para o lado traseiro do carro?

Por que é que os condutores, quando recebem as passagens, vêm com cara de cobradores de contas atrasadas?

Por que é que não se pode tirar um lenço ou abrir uma cigarreira sem despertar a atenção vigilante do vizinhos?

Por que é que, ao contrário, se a gente sofre e tosse com o fumo de um cigarro alheio isso não é percebido nem pelo vizinho fumante?

Por que é que, quando lemos, há sempre um passageiro a querer por força descobrir o que vamos lendo?

Por que é que os homens, quando pedem licença para passar, são mais atenciosos à entrada do que à saída?

Por que é que o lavador de pratos ou o vendedor de bananas trata os condutores como se estes fossem os trintanários de seus coches?

Por que é que o passageiro acha graça nas grosserias ou desaforos do condutor, desde que não são com ele?

Por que é que, encontrando um amigo distraído e pagando-lhe a passagem, ele imediatamente nos pergunta como vai a família?

Por que é que só assobiam no bonde indivíduos inteiramente desprovidos de memória musical?

Por que é que, se chove, há sempre, ao nosso lado ou à nossa frente, um passageiro que não tolera cortinas arriadas?

Por que é que tantas senhoras gordas, não permitindo que se lhes toque de leve com o dedo, não fazem contudo nenhuma cerimônia para se amesendar em cima de nossa perna?

Por que é que há tanta comoção no bonde, se este pega uma galinha, e não há nenhuma por causa do homem enfermo, aleijado e decrépito que vai no carro?

Por que é que os moços bonitos e os célebres ficam sentados de viés?

Por que é que temos tanta paciência para perder duas horas numa pane difícil de automóvel, e nenhuma para sofrer dois minutos de parada do bonde num desvio?

Por que é que as senhoras, ao pagar a passagem, custam tanto a encontrar o dinheiro na bolsa?

Por que é que o bonde estimula em certos indivíduos a vontade de comer amendoim torrado e tremoços?

Por que é que as pessoas mais desocupadas e mais pachorrentas se tomam de pressa e de nervos quando o bonde vai chegando ao ponto final?

Por que é que nos dói mais termos perdido o nosso bonde do que o ter um amigo perdido o trem - ou mesmo uma perna?

Fonte:
Domínio Público

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