segunda-feira, 15 de julho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 8

No dia seguinte o Coruja passeava sozinho por uma alameda sua favorita, quando o Caetano lhe foi dizer que o Sr. Teobaldo o mandava chamar e ficava à espera dele no quarto. André correu ao encontro do amigo.

— Chegaram as nossas roupas! Exclamou este ao vê-lo.

E sua fisionomia rejubilava com essas palavras.

— Ah! Fez o outro, quase com indiferença.

— Experimentemos.

— Há tempo.

O alfaiate observou que não podia demorar-se muito.

— Deve estar direito... Respondeu André. Pode deixar.

— É bom sempre ver... Insistiu o alfaiate.

— É indispensável! Acrescentou Teobaldo.

André não teve remédio senão experimentar a roupa. Era um fato preto, fato de luto, que mal deixava perceber o colarinho da camisa. E ele, pequeno, grosso, cabeçudo, e queixo saliente, os olhos fundos, com as suas bossas superciliais principiando a desenvolver-se pelo hábito da meditação; ele, enfardelado naquela roupa muito séria, toda abotoada, só precisava de uns óculos para ser uma infantil caricatura do velho Thiers.

Contudo, e apesar dos conselhos que lhe dava o amigo para mandar diminuir três dedos no comprimento do paletó e tirar um pouco de pano das costas, achou que estava magnífica.

— Ao menos, disse Teobaldo, que acabava de se vestir, manda encurtar essas calças, rapaz! E soltar a bainha dessas mangas!

— Então boas... Teimou o Coruja, esforçando-se por fazer chegar as mangas até às mãos.

— Parece que te meteste nas calças de teu avô.

E voltando-se para o alfaiate:
— Também não sei como o senhor tem ânimo de apresentar unia obra desta ordem... Está uma porcaria!

— Perdão! Respondeu o alfaiate, dispondo-se logo a modificar a roupa de André. Vossemecê poderia dizer isso se a sua roupa não saísse boa, e essa está que é uma luva, mas, quanto à deste moço, nem só é a primeira vez que trabalho para ele, como não podia acreditar que houvesse alguém com as pernas tão curtas e os braços tão compridos. Parece um macaco!

— Bem, bem, veja lá o que é preciso fazer na roupa, e deixe-se de comparações! Observou Teobaldo, defronte do espelho, a endireitar-se, muito satisfeito com a sua pessoa.

Para esse dia estava reservado ao André uma surpresa muito agradável: D. Geminiana, tendo com o casamento de separar-se. do sobrinho, queria deixar a este uma lembrança qualquer e mandou buscar da corte um bom relógio de ouro e a respectiva corrente. A encomenda chegou essa noite, Teobaldo recebeu o seu presente da tia e, ato contínuo, tomou do antigo relógio e da cadeia que até aqui usara, e deu tudo ao Coruja.

Seja dito que um dos sonhos dourados de André era possuir um relógio; desejava-o, não como objeto de luxo, mas como objeto de utilidade imediata.

— Poder contar o tempo pelas horas, pelos minutos e pelos segundos!... Isto para aquele espírito metódico e regrado era nada menos do que uma felicidade.

CAPÍTULO X

Durante o tempo que precedeu ao casamento, a fazenda do Sr. Barão do Palmar descaiu um tanto da sua patriarcal serenidade e tomou um quente aspecto de festas, porque com muita antecedência começaram a chegar os convidados. Emílio quis reunir os seus vizinhos de uma légua em derredor e não se poupou a esforços para que nada lhes viesse a faltar. Havia de ser uma festa verdadeiramente gamaquiana.

Ao lado das delicadas distrações das salas, o jogo, a Á dança, a música e a palestra, queria ele a grande fartura da mesa e da copa; queria o grosso prazer pantagruélico: — Carne para mil! — Vinho para outros tantos!

À faca as grandes reses que pastavam sossegadamente no campo; à faca os trepegos, os chibarros, os carneiros e os perus! Que não ficassem por ali, naquelas cinco léguas mais próximas, estômagos nem corações com laivos de tristeza! O casamento devia efetuar-se na própria capela da fazenda, e meio mês antes da festa já ninguém descansava em casa de Emílio. Vieram cozinheiros de longe; cada convidado trazia dois e três serventes e, apesar disso, havia trabalho para todos.

O Coruja ia pela primeira vez em sua vida assistir a um baile, e essa idéia, longe de o alegrar, trazia-lhe uni fundo ressaibo &3 amargura, como se o desgraçado estivesse à espera de uma terrível provação.

O fato de perturbarem a calma existência da fazenda, só por si já não lhe era de forma alguma agradável; quanto mais a idéia de ter de acotovelar-se com pessoas inteiramente estranhas, a quem sem dúvida não iria ele produzir bom efeito com a sua triste figura desengraçada.

Oh! Se fosse possível ao Coruja presenciar toda aquela festa, sem aliás ser descoberto por ninguém!... Se ele pudesse, por um meio maravilhoso, tornar-se em puro espírito e estar ali a ver, a observar, a ouvir o que dissessem todos, sem que ninguém desse pela presença dele — Oh! Então conseguiria desfrutar, e muito!

Chegou entretanto a véspera do grande dia, e de todos os pontos começavam a surgir, desde pela manhã, convidados a pé, a cavalo e de carro. Um enorme telheiro, que se havia engendrado de improviso nos fundos da casa, ficou cheio de cavalgaduras, troles, carroções e seges das que se usavam no tempo.

A fazenda apresentava um aspecto magnífico. Emílio, como homem de gosto que era, procurou afestoá-la quanto possível. Por toda a parte viam-se florões de murta engranzados com as parasitas mais caprichosas; jogos d’água formando esplendidos matizes à refração das luzes multicores das lanternas chinesas. Defronte da casa o fogo de artifício, que seria queimado pelo correr da noite. Às seis horas da tarde uma salva de vinte tiros de peça anunciou que estava terminada a cerimonia religiosa do casamento e que principiava o banquete. Os noivos foram tomar a cabeceira da mesa acompanhados por mais de quinhentas pessoas.

Como nenhum dos aposentos da casa podia comportar tanta gente, o barão fez levantar no vasto terreiro da fazenda uma enorme tenda de lona, sustentada por valentes carnaubeiras, engrinaldadas de verdura. Nessa festa foi que o Coruja teve ocasião de apreciar mais largamente as brilhantes qualidades do amigo. Viu-o e admirou-o ao lado das damas, cortes e cavalheiro como um homem; viu-o igualmente ao lado dos amigos do pai e notou que Teobaldo nem uma só vez caía em qualquer infantilidade, e mais, que todos, todos, até os velhos, prestavam-lhe a maior atenção, sem dúvida fascinados pelo talento e pelas graças do rapaz; viu-o na biblioteca, tomando parte nos jogos carteados, que André nem sequer conhecia de nome, e reparou que ele puxava por dinheiro e ganhava ou perdia com uma distinção sedutoramente fidalga; viu-o nas salas da dança, conduzindo uma senhora ao passo da mazurca, teso, correto, elegante mais do que nunca, e como possuído de orgulho pelo gentil tesouro que levava nos braços; viu-o à mesa erguer-se de taça em punho e fazer um brinde à noiva, levantando aplausos de toda a gente, e o Coruja, de cujas mãos saíra aliás essa festejada peça literária, chegou a desconhecer a sua obra, tal era o realce que lhe emprestavam os dotes oratórios do amigo; viu-o depois ao ar livre, debaixo das árvores, a beber ponches e a mexer com a filha do João da Cinta, a qual olhava para ele, escrava e submissa, como defronte de um Deus.

Mas tudo isso não o fez ficar tão fortemente impressionado, como quando o contemplou ao lado de Santa, ao lado daquela adorável mãe que parecia resplandecer de orgulho e satisfação a rever-se no filho idolatrado. Foi com a alma banhada pelos eflúvios da felicidade de Teobaldo que o pobre Coruja ouviu palpitar entre essas duas criaturas as seguintes palavras, mais ternas e harmoniosas que um diálogo de beijos:

— Amas-me muito, meu filho?

— Eu te adoro, minha Santa.

— E nunca te esquecerás de mim?

— Juro-te que nunca.

— Nem mesmo depois de eu ter morrido?

— Nem mesmo depois de teres ido para o céu.

— E sabes tu, meu filho, o muito que te quero?

— Queres-me tanto quanto eu a ti.

— E sabes quanto sofreria tua mãe se por instantes te esquecesses dela?

— Não, porque não sei como possa a gente se esquecer de ti.

— E, quando fores completar os teus estudos na corte, juras que...

Não pode ir adiante. A idéia da separação que já se avizinhava a passos largos, tolheu-lhe a fala com uma explosão de soluços.

— Então, Santa, então, que é isso? Murmurou Teobaldo, erguendo-se e chamando para sobre o seu peito a cabeça da baronesa — Não chores! Não te mortifiques!...

Emílio acudiu logo, afastou o filho com um gesto e, tomando o lugar deste, segredou ao ouvido da esposa:

— Vamos, minha amiga, nada de loucuras!...

— Não posso conformar-me com a idéia de que Teobaldo torna a separar-se de mim...

— Bem sabes que é indispensável...

— Perdoa-me. Ninguém melhor do que eu aprecia os teus atos e as tuas intenções. Sei que ele precisa fazer um futuro condigno do seu talento; sei que não podemos acompanhá-lo de perto, não podemos morar na corte, porque as nossas condições de fortuna já não...

— Santa! Olha que te podem ouvir!...

— Não me conformo com esta separação! É talvez um pressentimento infundado; é talvez loucura, como dizes, mas não está em minhas mãos; sou mãe, e ele é tão digno de ser amado.

— Mas, valha-me Deus! Não é uma separação eterna...

— Não sei! É que uma terrível idéia me preocupa. Afigura-se-me que nunca mais o tornarei a ver!... Oh! Nem quero pensar nisto!

E os soluços transbordaram-lhe de novo, ainda com mais ímpeto que da primeira vez. O barão, sem perder uma linha do seu donaire, passou o braço na cintura da esposa e, deixando que ela se lhe apoiasse de todo no ombro, arrastou-a vagarosamente até à sua alcova.

Coruja, ignorado a um canto da sala, viu e ouviu tudo isso, e ao ver aquelas lágrimas de mãe e ao ouvir aquelas palavras de tanto amor e aqueles beijos mais doces do que as bênçãos do céu, que estranhas amarguras sua alma não carpiu em silêncio!...

Amargura, sim, que, por menos egoísta, por menos homem que fosse ele, do fundo do seu coração havia de sair um grito de revolta contra aquela injustiça da sorte, que para uns dava tudo e para outros nada! Aquele espetáculo de tamanha felicidade havia fatalmente de amargurá-lo.

Ainda se Teobaldo, possuindo muitos dotes fosse ao menos feito como ele, o Coruja; ainda se fosse miserável ou estúpido, — Vá! Mas não! Teobaldo era lindo, era rico, era talentoso e, além de tudo — Amado! Amado por tantas criaturas e, principalmente, por aquela adorável mãe, cujos beijos e cujas lágrimas eram o bastante para lhe adoçar todos os espinhos da vida.

E André, assim considerando, via-se perfeitamente, tinha-se defronte dos olhos, como se estivesse em frente a um espelho. Lá estava ele — Com a sua disforme cabeça engolida pelos ombros, com o seu torvo olhar de fera mal domesticada, com os sobrolhos carregados, a boca fechada a qualquer alegria, as mãos ásperas e curtas, os pés grandes, o todo reles, miserável, nulo!

O desgraçado, porém, em vez de dar ouvidos a estes raciocínios, voltou-se todo para uma voz íntima, uma voz que também lhe vinha do coração, mas toda brandura e humildade. E essa voz lhe dizia:

— Pois bem, miserável! Ingrato! Tu, que és órfão; tu que não tens onde cair morto; tu, que és feio, que és o Coruja; tu, que não tens nenhum dote brilhante, que não és distinto, nem espirituoso, nem possuis mérito de espécie alguma; tu, mal agradecido! — És amado por Teobaldo, que dispõe de tudo isso à larga e que te faz penetrar sua sombra no santuário de corações onde nunca penetrarias sem ele.

E o Coruja, saindo da sala para respirar lá fora mais à vontade, pôs-se a caminhar, a caminhar à toa entre as sombras das árvores, sentindo-se arrebatado por um inefável desejo de ser bom, um desejo de ser eternamente grato a quem, possuindo todas as riquezas, o escolhia para seu íntimo, para seu irmão — A ele, que nada possuía sobre a terra.

Ser "bom"!

Mas seria isso humildade ou seria ambição e orgulho?

Quem poderá afirmar que aquele enjeitado da natureza não se queria vingar da própria mãe fazendo de si um monstro de bondade? Sim. Vingar-se, fugindo da esfera mesquinha dos homens, fugindo às paixões, às pequenas misérias mundanas e procurando refugiar-se no próprio coração, ainda receoso de que o céu, cúmplice da terra, lhe negasse também a graça de um abrigo.

Ou quem sabe então se o ambicioso, vendo-se completamente deserdado de todos os dotes simpáticos a que tem direito a sua espécie, não queria supri-los por uma virtude única e extraordinária — A bondade?

A bondade, esse pouco!

Visionário! Não se lembrava de que a bondade, á força de ser esquecida e desprezada, converteu-se em uma hipótese ou só aparece no mercado social em pequenas partículas distribuídas por milhares de criaturas; como se dessa heróica virtude houvesse apenas uma certa e determinada porção desde o começo do mundo e que, de então para cá, à medida que se multiplicaram as raças. ela se fora dividindo e subdividindo até reduzir-se a pó.
––––-
FIM DA PRIMEIRA PARTE
––––––––––
continua…

Nenhum comentário: