quinta-feira, 25 de julho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 15

CAPÍTULO VII

Teobaldo viu pela primeira vez o seu nome em letra redonda, assinando uma produção original, graças a um amigo que fez publicar a balada no Diário do Rio.

Ah! Que contentamento o seu! Contentamento que triplicou, quando o rapaz recebeu da capital de sua província uma folha onde vinham as seguintes palavras:

“TEOBALDO HENRIQUE DE ALBUQUERQUE — Este jovem e talentoso mineiro, filho do Sr. Barão do Palmar e que se acha presentemente na corte cursando a Faculdade de Medicina, acaba de publicar aí a bela poesia que em seguida transcrevemos”.

“É sempre com o maior prazer que registramos fatos desta ordem, e fazemos votos para que o esperançoso poeta prossiga na carreira que tão brilhantemente encetou.”

Seguia-se a balada.

Desde então, começou Teobaldo a cultivar as letras com mais entusiasmo; não que o apaixonasse a arte de escrever, mas pelo simples gosto de ter seu nome em circulação. Fez contos, poemetos, artigos que, depois de apurados pelo Coruja, surgiam no primeiro jornal que os aceitasse.

O que lhe faltava em fôlego para as largas concepções do espírito, sobravam-lhe em habilidade para engendrar pechisbeques literários, muito ao sabor de certa ordem de leitores.

Mas um funesto acontecimento veio tarjar de preto os seus dias — a morte de Santa.
Teobaldo ficou fulminado com a notícia; subiu-lhe à cabeça, em ondas, um delírio de paixões que o teria sufocado se logo não se resolvesse em soluços. Foi a sua primeira idéia abandonar a corte e correr à casa do pai; este, porém, na mesma carta em que lhe dava a triste nova, participava-lhe que iria ao encontro dele.

Coruja, em prejuízo dos seus trabalhos, entendeu que não devia abandonar o amigo e passava ao seu lado grande parte do dia no Hotel de França.

Estavam juntos, quando chegou o barão. Teobaldo lançou-se nos braços do pai e, tanto este como o filho, abriram a chorar por longo tempo.

André, meio esquecido a um canto da sala, observava em silêncio o seu protetor, e surpreendia-se de vê-lo tão transformado. Emílio não parecia o mesmo homem; não dava idéia daquele fidalgo de bom humor, que a todos se impunha, quer pela energia do caráter, quer pela insinuação das suas maneiras à Pedro I. Agora estava sombrio, horrivelmente pálido, a fronte coberta de rugas, em cujas dobras se percebia todo o mistério dos seus últimos padecimentos.

Já não era a sombra do que fora; já não era aquela figura desempenada e ruidosa, mas um vulto sinistro, todo vergado para a terra, e em cujo olhar dorido e pertinaz se via transparecer o surdo desalento de uma dor sem tréguas. E aquele espectro lutuoso, descarnado e alto, inspirava compaixão e simpatia.

— Meu filho, disse ele, quando a comoção lhe permitiu falar, a perda de tua mãe é para nós muito mais grave do que podes supor. Com ela fugiu-me a coragem e tudo que me restava de esperanças... Só tu ficaste e só por tua causa viverei mais algum tempo.

Calou-se, depois chamou o Coruja com um gesto, apertou-o nos braços sem lhe dar uma palavra e acrescentou, dirigindo-se de novo ao filho:

— Preciso ter contigo uma larga conferencia, mas quero primeiro repousar um pouco, porque ao contrário não poderei ligar duas idéias…

Teobaldo chamou um criado, mandou servir um quarto ao pai e voltou para junto do Coruja, que à janela abafava os seus soluços com as duas mãos espalmadas sobre o rosto.

Horas depois, Emílio de Albuquerque mandava chamar o filho e, tendo-o feito assentar-se perto dele, começou a pintar-lhe francamente a triste posição em que se achava.

A sua primeira comunicação foi a respeito da hipoteca da fazenda, o que, em completa ignorância de Teobaldo, se realizara havia mais de dois anos. Levara-o a dar semelhante passo a esperança de poder à custa de certas especulações recuperar os bens perdidos e desembaraçar-se das dificuldades em que se via; mas, por desgraça, tudo falhou, e o que ele supunha uma tábua de Salvamento não foi mais do que a mortalha das suas ilusões. E desde então a roda da fortuna, como se recebera um grande impulso, começou a desandar freneticamente; quanto mais enérgicos eram os esforços e tentativas que ele fazia para suster a sua queda, tanto mais vertiginosa ela se tornava; a sorte, afinal, já não tendo do que lançar mão para lhe quebrar a coragem, arrebatou-lhe a última força que lhe restava, a esposa; e tão certeiro fora este último golpe, que o desgraçado sucumbiu de todo, para nunca mais se erguer.

— Dentro em pouco tempo, disse ele, tenho de entregar tudo aos credores; só nos restarão alguns contos de réis que se acham espalhados por aí nas mãos de vários amigos; fica-me, porém, a consolação de que em toda esta desgraça não cometi uma única baixeza; podia ter enganado os meus credores e assegurar-te, a ti, um futuro mais auspicioso; não quis todavia e não me arrependo disso! Creio que farias o mesmo no meu lugar...

— Honro-me de poder afiançar que sim! Respondeu Teobaldo com tal firmeza, que o pai lhe estendeu a mão exclamando:

— Obrigado, meu filho!

Emílio demorou-se na corte apenas dois dias mais; Teobaldo acompanhou-o até ao Porto da Estrela e voltou para o hotel muito impressionado e tolhido de estranhos pressentimentos.

Coruja vinha ao seu lado, caminhando de cabeça baixa, o ar concentrado e mudo de quem procura a solução de um problema.

O amigo acabava de lhe confiar tudo o que ouvira do pai.

— Que achas tu que eu devo fazer?... perguntava-lhe.

André respondeu depois de um silêncio:

— Em primeiro lugar deves sair daquele hotel; é muito dispendioso e, uma vez que estás pobre, precisas fazer economias...

— Tens razão, replicou o outro, mas para onde irei morar? Bem sabes que nunca me vi nestes apuros...

— Eu me encarrego de arranjar a casa. Queres tu morar outra vez comigo?

— Não poderia desejar melhor... Mas, e o colégio!...

— Dá-se-lhe um jeito. O colégio não precisa de mim à noite; é bastante que eu me apresente lá às seis horas da manhã.

— Quanto és meu amigo...

— Pudera!...

E os dois separaram-se daí há pouco concordes na mudança.

Teobaldo correu então à casa do seu correspondente.

— Espere! Disse-lhe o Sampaio com mau humor; .aquele mesmo Sampaio que dantes se mostrava tão atencioso com ele.

Teobaldo estranhou a grosseria do tratamento, mas teve ainda a generosidade de não acreditar que ela fosse já uma conseqüência de ruína de seu pai.

— Venho saber se... ia ele a dizer, quando o outro repetiu ainda mais forte:

— Espere!

O filho do barão mordeu os beiços e não retrucou, até que, meia hora depois, o negociante se dignou enfim de prestar-lhe atenção.

— Disse meu pai que eu tenho aqui algum dinheiro a receber. Quero saber quanto é.

— São quinhentos mil réis, e é o resto. Depois disso nada mais tenho a lhe dar; terminaram os negócios de pai com esta casa.

— Já sei.

— O senhor pode receber a quantia de uma só vez ou por partes, como quiser...

— Quero-a toda.

— Lembra-se de que é o resto... Despache-me.

— Mas por que não deixa alguma coisa de reserva? Porque não quero de novo aturar as suas grosserias.

— Obrigado. Vai ser servido.

— Mas ande com isso!

— Espere, se quiser.

À noite, Teobaldo depositava em poder do Coruja os últimos quinhentos mil réis.

— É o que resta, disse ele; guarda-os tu, que sempre tens mais juízo do que eu.

André obedeceu, e a mudança efetuou-se no dia seguinte.

Foram ocupar duas salas de uma casa de cômodos.

O Coruja escolheu logo a pior para si, dizendo ao entregar a outra ao amigo:

— Agora é preciso começar vida nova... Tens belos recursos e ainda estás muito em tempo de fazeres de ti o que lhes quiseres...

— Ah! Decerto! Respondeu Teobaldo, sempre com a mesma confiança na sua pessoa. É impossível que eu não encontre meios de ganhar a vida!

— Sim, mas convém não te descuidares.

— Não descansarei.

— E os teus estudos?

— Sei cá! Julgo que o melhor é deixar-me disso! Não tenho fé com as academias!

— Não sei se farás bem...

— Mas não vejo em ti mesmo um exemplo palpitante?...

— O meu caso é muito diverso; sou de poucas aspirações, não desejo ser mais do que um simples professor; tu, porém, tens direito a muito, e aqui em nossa terra a carta de doutor é a chave de todas as portas das boas posições sociais.

— Havemos de ver. Não posso agora pensar nisso, tenho a cabeça fora do lugar...

Pouco tempo depois, quando eles ainda estavam inteiramente possuídos pelo golpe que acabavam de sofrer com a morte de Santa, apareceu-lhes em casa, banhado de lágrimas, o velho Caetano, o fiel criado do Barão do Palmar.

Teobaldo estremecera com um pressentimento horrível e levou as mãos à cabeça, como para não ouvir o que seu coração já adivinhava. E depois, voltando-se rapidamente:

— Fala!

— Ele morreu, é exato!

E o velho servo começou a chorar, sem mais poder dizer uma palavra. Teobaldo arrancou-lhe das mãos uma carta que ele havia tirado da algibeira, e leu o seguinte:

Meu filho — Evoca toda a tua coragem e todos os conselhos que te dei durante a minha vida para poderes ler com resignação o que se segue. Escrevo estas linhas resolvido a meter uma bala nos miolos, quando as houver subscritado para ti. Será isso talvez unia fraqueza de minha parte, será talvez um crime, por que tens apenas vinte e um anos; eu, porém, no estado em que me acho, não posso continuar a viver sem aquela Santa a quem devemos: tu, a vida, e eu, a única felicidade que já não tenho.

Morro ainda mais pobre do que supunha, mas não deixo dívidas; perdoa-me e procura dirigir a tua existência melhor do que eu. O nosso velho procurador fica encarregado de remeter-te o que pagarem porventura os meus devedores, e Caetano entregar-te-á pessoalmente um cofre com as jóias que tua mãe possuía antes do casamento; as outros, as que eu lhe dei, foram já reduzidas a dinheiro.

E adeus, até à eternidade, se não me enganaram na religião que aprendi no berço.

Teu pai — Emílio.
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continua…

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