segunda-feira, 15 de julho de 2013

Olegário Mariano (Cristais Poéticos)

O ENAMORADO DAS ROSAS

Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,
Ouvindo a água da fonte que murmura,
Rego as minhas roseiras com ternura,
Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.

Cada um tem um suave movimento
Quando a chamar minha atenção procura
E mal desabrochada na espessura,
Manda-me um gesto de agradecimento.

Se cultivei amores às mancheias,
Culpa não cabe às minhas mãos piedosas
Que eles passassem para mãos alheias.

Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,
Alimento a ilusão de que essas rosas,
Ao menos essas rosas, sejam minhas.

      A VELHA MANGUEIRA

No pátio da senzala que a corrida
Do tempo mau de assombrações povoa,
Uma velha mangueira, comovida,
Deita no chão maldito a sombra boa.

Tinir de ferros, música dorida,
Vago maracatu no espaço ecoa...
Ela, presa às raízes, toda a vida,
Seu cativeiro, em flores, abençoa...

Rondam na noite espectros infelizes
Que lhe atiram, dos galhos às raízes,
Em blasfêmias de dor, golpes violentos.

E, quando os ventos rugem nos espaços,
Os seus galhos se torcem como braços
De escravos vergastados pelos ventos.

ARCO-ÍRIS

Choveu tanto esta tarde
Que as árvores estão pingando de contentes.
As crianças pobres, em grande alarde,
Molham os pés nas poças reluzentes.

A alegria da luz ainda não veio toda.
Mas há raios de sol brincando nos rosais.
As crianças cantam fazendo roda,
Fazendo roda como os tangarás:

"Chuva com sol!
Casa a raposa com o rouxinol."
De repente, no céu desfraldado em bandeira,

Quase ao alcance da nossa mão,
O Arco-da-Velha abre na tarde brasileira
A cauda em sete cores, de pavão.

CASTELOS NA AREIA

— Que iluminura é aquela, fugidia,
Que o poente à beira-mar beija e incendeia?
— É apenas a criação da fantasia: —
São castelos na areia.

Andam, tontas de sol, brincando as crianças
Como abelhas que voaram da colmeia.
Erguem torreões fictícios de esperanças...
São castelos na areia.

Ao canto de um jardim adormecido:
"Por que não crês no afeto que me enleia?
E as palavras que eu disse ao teu ouvido?"
— São castelos na areia.

E o tempo vai tecendo, da desgraça,
Na roca do destino, a eterna teia.
— "E os beijos que trocamos?" — Tudo passa,
São castelos na areia.

Coração! Por que bates com ansiedade?
Que dor é a grande dor que te golpeia?
Ouve as palavras da Fatalidade:
Ventura, Amor, Sonho, Felicidade,
São castelos na areia.

CIGARRA

Figurinha de outono!
Teu vulto é leve, é sensitivo,
Um misto de andorinha e bogari.
Num triste acento de abandono,
A tua voz lembra o motivo
De uma canção que um dia ouvi.

 Quando te expões ao sol, o sol te impele
Para o rumor, para o bulício e tu, sorrindo,
Vibras como uma corda de guitarra...
É que o sol, quando queima a tua pele,
Dá-te o grande desejo boêmio e lindo
De ser flor, de ser pássaro ou cigarra

Cigarra cor de mel. Extraordinária!
Cigarra! Quem me dera
Que eu fosse um velho cedro adusto e bronco,
E tu, nessa alegria tumultuária,
Viesses pousar sobre o meu tronco
Ainda tonta do sol da primavera.

 Terias glórias vegetais sendo vivente.
Mas um dia de lívidos palores,
Tu, cigarra, que vieste não sei donde,

Morrerias de fome lentamente
No teu leito de liquens e de flores
No aconchego sutil da minha fronde.

 E eu, na dor de perder-te, no abandono,
Sem ter roubado dessa mocidade,
Do teu corpo de flor um perfume sequer,
Morreria de tédio e de saudade...
Figurinha de Outono!
Cigarra que o destino fez mulher!

DE PAPO PRO Á

I

Não quero outra vida
Pescando no rio
De jereré
Tenho peixe bom...
Tem siri-patola
De dá com o pé

Quando no terreiro
Faz noite de luá
E vem a saudade
Me atormentá
Eu me vingo dela
Tocando viola
De papo pro á

II

Se compro na feira
Feijão rapadura
Pra que trabaiá
Eu gosto do rancho
O home não deve
Se amofiná
Estribilho

DO MEU TEMPO...

Quando eu era menino e tinha cheia
A alma de sonhos bons e, fugidio,
Como a abelha que voa da colmeia,
Andava a errar do canavial bravio;

Quando em noites de junho o luar macio
Punha um lençol de rendas sobre a areia,
Tiritava de medo ouvindo o pio
Da coruja mais lúgubre da aldeia.

Feliz! Bendita essa primeira idade!
Andava como quem anda sonhando
De olhos abertos, com a felicidade.

Dormia tarde e enquanto eu não dormia,
Mamãe rezava o padre-nosso e quando
Me mandava rezar, eu não sabia.

O MEU RETRATO

Sou magro, sou comprido, sou bizarro,
Tendo muito de orgulho e de altivez.
Trago a pender dos lábios um cigarro,
Misto de fumo turco e fumo inglês.

Tenho a cara raspada e cor de barro.
Sou talvez meio excêntrico, talvez.
De quando em quando da memória varro
A saudade de alguém que assim me fez.

Amo os cães, amo os pássaros e as flores.
Cultivo a tradição da minha raça
Golpeada de aventuras e de amores.

E assim vivo, desatinado e a esmo.
As poucas sensações da vida escassa
São sensações que nascem de mim mesmo.

 O FLIRT

Retirei um breve instante
Das minhas cogitações,
Para falar-vos do Flirt,
A epidemia elegante
Dos salões.

 Nasce de um sorriso mudo,
De um quase nada que, enfim
Vale tudo
Para elas e para mim.

 O Flirt. Haverá no mundo
Quem não sinta essa embriaguez
De um momento, de um segundo,
De quinze dias, de um mês?

Ele é efêmero e fortuito,
Vale pouco ou vale muito,
Conforme o Diabo o compôs.
É um simples curto-circuito
Entre dois.

Uma carícia inflamável
Doidinha por incendiar,
Um micróbio insuportável
Que vai de olhar para olhar.

 Ou antes: um precipício
Que a gente olha sem pavor.
O divino instante, o início
Do êxtase imenso do amor.

 Um galanteio, uma frase
Intencional
Que sendo frívola, é quase
Um madrigal.

 A mão que outra mão afaga,
O pé que pisa outro pé.
Carícia lânguida e vaga...
Só quem ama e quem divaga
Pode saber o que isto é.

 A orquestra soluça um tango:
Dois. Ela folle, ele fou.
Flor de Tango. — A flor de Tango,
Diz ele baixinho, és tu.

 E assim vai num tal crescendo,
Que ela se debate em vão.
Parece que está morrendo
Nos braços do cidadão.

 Quando passa o áureo momento,
Vem a tragédia em três atos.
Três atos
Com um epílogo. Depois,
Um noivado, um casamento,
Um bruto arrependimento
E ao fim divórcio entre os dois.

Fonte:
Jornal de Poesia
Academia Brasileira de Letras

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