segunda-feira, 1 de julho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 5

E agora, visto aos cinqüenta e tantos anos, aquele tipo correto na forma e um pouco desabrido nas maneiras, estava ainda a dizer a sua procedência mestiça. Por mais despejado que fosse todavia, cativava sempre com muita graça e muita insinuação. Ar gentil e franco, gestos largos, coração tão aberto a tudo e a todos, que até ao mal franquearia a entrada, desde que houvesse lá por dentro uma idéia de vingança.

Possuía ele um destes temperamentos desensofridos e ao mesmo tempo saturados de bom humor; tão prontos a zombar dos grandes perigos, como a inflamar-se à menor palavra que de longe lhe tocasse em pontos de honra. Temperamentos que não conhecem meio termo e que vão da pilhéria à bofetada com a rapidez de um salto.

Amava loucamente a mulher e adorava o filho. Todas as suas paixões de outrora, todos os seus gostos e hábitos sacrificados ao atual meio em que ele vivia, como que se transformaram em um sentimento único, em um amor de quintaessência, em uma dedicação sem limites por Teobaldo. Mas não sabia educa-lo e por cegueira da afeição permitia-lhe todos os caprichos. A mais extravagante fantasia do menino era uma lei em casa do Sr. Barão.

Defronte daquele pequeno Deus, ninguém seria capaz de levantar a voz.  Teobaldo vivia entre os seus parentes como um príncipe no meio da sua corte; o pai, a mãe, uma irmã desta, que agora a acompanhava, todos pareciam apostados em merecer-lhe as graças em troca de amor e submissão.

Pode-se, pois, facilmente calcular qual não seria a comoção de Emílio ao ver o filho, quando o foi buscar nas férias, depois de tantos meses de ausência.

– Teobaldo! Exclamou o barão, correndo para ele de braços abertos.

O menino saltou-lhe ao pescoço e deixou-se beijar, enquanto perguntava pelos de casa. E depois, a queixar-se:

— Ora! Prometeste que virias visitar-me, e nem uma vez!...

— Não pude abandonar a fazenda um só dia durante o ano! Aquilo por lá tem sido o diabo!...

Ia continuar, mas interrompeu-se para dizer ao filho:

— Anda daí rapaz! Mexe-te, que, ao contrário chegaremos muito tarde!. ... Vamos! Eu te ajudo preparar a mala. Onde é o teu quarto?

Teobaldo tomou de carreira a direção do dormitório e o pai acompanhou-o, a mexer com todos os pequenos que encontrava no caminho.

— Quem é o tal André, de que falas tu nas cartas com tanta insistência? perguntou ao filho, enquanto este emalava a sua roupa.

— Ah! O Coruja? É o meu amigo; mostro-to já; espera ai.

E, quando atravessavam o salão, já com a mala pronta, Teobaldo exclamou, puxando o braço do pai:

— Olha! É aquele! Aquele que está ao lado do diretor.

— E aquele padre, quem é? Aquele que conversa com o Dr. Mosquito?

— Deve ser o tutor de André.

— O tutor?

— Sim, porque André já não tem pai, nem mãe; foi o vigário quem tornou conta dele e quem o meteu no colégio.

— E agora veio buscá-lo e leva-o para casa durante as férias?...

— Talvez não. Já o ano passado, deixou-o ficar aqui sozinho com os criados.

— Mas pode ser que desta vez não aconteça o mesmo...

Emílio foi, porém, convencido logo do contrário pelo que ouviu entre o diretor e o padre, cujo diálogo ia se esquentando a ponto de lhe chegar perfeitamente ao ouvidos.

— Abuso?... Exclamava o vigário. Não vejo onde esteja o abuso!

— Pois não! Replicava o diretor. Pois não! V Revma. vem ter comigo e pede-me que tome conta de seu pupilo pela metade do que recebo pelos outros alunos; eu consenti, consenti, porque sabia que o pobre menino não tem outra proteção além da sua... Pois bem! Chegam as férias; o senhor não manda buscar, o que é sempre um inconveniente para um estabelecimento desta ordem, e...

— Não sei por quê... Interrompeu o padre.

— Sei eu, gritou o diretor. E a prova, olhe, é que tencionava fazer pelas férias um passeio à corte com minha família, e não fiz!...

— Sim, mas o senhor, naturalmente, não foi detido só por este...

— Engana-se; seu pupilo foi o único aluno que ficou no colégio durante as férias!

— Não é culpa minha!

— De acordo e não é disso que faço questão. Deixa-me continuar...

— Pode continuar.

— Como dizia: o senhor, não satisfeito com o abatimento que lhe fiz durante o ano inteiro, pediu-me ainda que lhe fizesse um novo abatimento durante as férias. Permita que lhe diga: o que V. Rev.ma pagou não deu sequer para as comedorias, porque não é com tão pouco que se alimenta aquele rapaz! Não imagina que apetite
tem ele!

André, ao ouvir esta acusação, abaixou o rosto, envergonhado como um criminoso, e pôs-se a roer as unhas, sentindo sobre si o olhar colérico do padre, que o media da cabeça aos pés.

— Pois bem! Prosseguiu o diretor; chegam de novo as férias e, quando estou resolvido a remeter-lhe o menino, vem o senhor e diz que desta vez não pode pagar tanto como das outras!... Ora! Há de V. Rev.ma convir que isto não tem jeito!

— Seria uma obra de caridade!... Objetou o padre.

— Sim, mas eu já fiz o que pude...

— Pois vá! Pagarei o mesmo que nas férias do ano passado.

— Não, senhor, não serve! V. Rev.ma leva o menino e, se quiser, pode apresentar-mo de novo em Janeiro. De outra forma não!

— Tenho então de levar o pequeno comigo? Exclamou o padre, fazendo-se vermelho.

— De certo, respondeu o diretor sem hesitar. As férias Inventaram-se para descanso e eu não posso fica tranqüilo, sabendo que há um aluno em casa. Dá-me mesmo trabalho que me dariam vinte! Não! Não.

— Mas, doutor!.

— Não, não quero! É um cuidado constante. Retiram-se todos os empregados e fica aí o menino só com o servente; de um momento para outro, uma travessura, uma tolice de criança, pode ocasionar qualquer desgraça, e serei eu por ela o único responsável! Não quero!

— E se eu pagar o mesmo que pago durante ano? Perguntou o reverendo já impaciente e cada vez mais vermelho.

— Nem assim.

— Nem assim? E quanto é preciso então que eu pague?

— Nada, porque estou resolvido a não aceitar.

— De sorte que eu tenho por força de levar o pequeno?...

— Fatalmente.

— Pois então, pílulas! Exclamou o padre, deixando transbordar de todo a cólera; pílulas!

E, voltando-se para o Coruja:

— Vá! Vá fazer a trouxa e avie-se!

O Coruja afastou-se tristemente enquanto o padre resmungava: Peste! Só me serve para me dar maçadas e fazer-me gastar o que não posso! O barão. que a certa distância ouvira tudo ao lado do filho, disse a este em voz baixa:

— Pergunta ao teu amigo se ele quer vir conosco passar as férias na fazenda.

Teobaldo, satisfeito com as palavras do pai, foi de carreira ter com o Coruja e voltou logo com uma resposta afirmativa.

— Reverendo, disse então o fidalgo aproximando-se do padre com suma cortesia. Por sua conversação com o Dr. Mosquito fiquei sabendo que o contraria não poder deixar o seu pupilo no colégio; lembrei-me, pois, se não houver nisso algum inconveniente, de levá-o com o meu filho, a passar as férias na fazenda em que resido.

O diretor deu-se pressa em apresentá-lo um ao outro, desfazendo-se em zumbaias com o barão. E o padre, cuja fisionomia se iluminara à proposta do adulado, respondeu curvando-se:

— Meu Deus! O Sr. barão pode determinar o que bem quiser!... Receio apenas que o meu pupilo não saiba talvez corresponder a tamanha gentileza; uma vez, porém, que o generoso coração de V. Exa. sente vontade de praticar esse ato de caridade...

— Não, não é caridade! Atalhou Emílio, francamente. Não é por seu pupilo que faço isto, mas só para ser agradável a meu filho... Eles são amigos.

— Se V. Exa. faz gesto nisso.

— Todo o gosto.

— Pois então pequeno está às ordens de V. Exa.

— Bem. Ficamos entendidos. Levo-o comigo e trá-lo-ei com Teobaldo, quando se abrirem de novo as aulas.

O reverendo entendeu a propósito contar ao Sr. barão, pelo miúdo, a história do "pobre órfão"; como ele o recolhera e sustentava, repetindo no fim de cada frase "Que não estava arrependido" e, terminando com a financeira e conhecida máxima: "Quem dá aos pobres, empresta a Deus!..."

CAPÍTULO VII

— É bem feiozinho, benza-o Deus! O tal teu amigo!... Disse o barão ao filho, enquanto André se afastava para ir buscar a sua trouxa.

— Sim, mas um belo rapaz, respondeu Teobaldo. Tem por mim uma cega dedicação.

— Embora! É muito antipático! Está sempre a olhar tão desconfiado para a  gente!... E parece mudo — só me respondeu com a cabeça e com os ombros às perguntas que lhe fiz.

— É assim com todos.

— Nem sei como vocês se fizeram amigos. Então tu, que, segundo me disse ainda há pouco o Mosquito, não te chegas muito para os teus colegas.

— Só me chego para o Coruja. É o único. Coitado! O reverendo, ao que parece, não morre de amores por ele; nem à mão de Deus Padre queria carregá-lo para casa.

— Um mau sujeito, o tal reverendo!

— Mas, com certeza não foi por maldade que o recolheu à sua proteção.

— Não sei. Talvez!...

Emílio olhou mais atentamente para o filho e disse sorrindo:

— Tens as vezes coisas que me surpreendem. Com quem aprendeste tu a desconfiar desse modo dos teus semelhantes?

— Contigo. Não me tens dito tantas vezes que gente deve desconfiar de todo o mundo?

— Para não sofrer decepções a cada passo... Exato!

— E que, no caso de erro, é preferível sempre nos enganarmos contra, do que a favor de quem quer que seja!…

— De certo. O homem deve sempre colocar-se superior a tudo e fazer por dominar a todos. O mundo meu filho, compõe-se apenas de duas classes — a dos fortes e a dos fracos; os fortes governam, os outros obedecem. Ama aos teus semelhantes, mas não tanto como a ti mesmo, e entre amar e ser amado, prefere sempre o último; da mesma forma que deves preferir sempre — dar, a pedir, principalmente se o obséquio for de dinheiro.

— Achas mau que eu seja amigo do Coruja?

— Ao contrário, acho excelente. Essa escolha, entre tantos colegas mais bem parecidos, confirma o bom juízo que faço do teu orgulho, e mostra que tens sabido aproveitar-te dos meus conselhos.

— Não compreendo.

— Também ainda é cedo para isso. É preciso dar tempo ao tempo.

O Coruja reapareceu sobraçando a sua pequena mala de couro cru
.
— Pronto? Perguntou-lhe Teobaldo.

O outro meneou a cabeça, afirmativamente.

— Pois então a caminho! Exclamou Emílio, descendo a escada na frente dos rapazes.

Um carro os esperava à porta do colégio; o cocheiro tomou conta das bagagens; Emílio fez subir os dois meninos e sentou-se defronte deles. André, muito esquerdo com a sua roupinha de sarja, que ia já lhe ficando curta, não olhava de frente para os companheiros e parecia aflito naquela posição; ao passo que Teobaldo, muito filho de seu pai, conversava pelos cotovelos, dizia o que vira, praticara e assistira durante o ano, criticando os colegas, ridicularizando os professores e, ao mesmo tempo, fazendo espirituosos comentários sobre tudo que lhe passava defronte dos olhos pela estrada.

Chegaram à fazenda às oito horas da noite. Vieram recebê-los ao portão a Sra. baronesa e mais a irmã, D. Geminiana, acompanhadas ambas pelo Caetano, que trazia uma lanterna.

Santa lançou-se ao encontro do filho, cobrindo-o de beijos sôfregos e a chorar e a rir ao mesmo tempo, enquanto um escravo, que acudira logo, desembarcava as malas e ajudava o cocheiro a desatrelar os animais.

Teobaldo passou dos braços da mãe para os da tia, que não menos o idolatrava, apesar de ser um tanto resingueira de gênio.

— O nosso morgado traz-lhe um hóspede! Declarou o barão, empurrando brandamente o Coruja para junto das senhoras É aquele amigo de que ele fala nas cartas. Vem fazer-lhe companhia durante as férias.

André, muito atrapalhado de sua vida, porque jamais se vira em tais situações, quando deu por si estava nos braços da mãe do seu amigo e recebia um beijo na testa.

Coitado! Que estranhas sensações não lhe produziu aquele beijo, ainda quente da ternura com que foram dados os outros no verdadeiro filho! Há quanto tempo não aspirava o pobre órfão essa flor ideal do amor, essa flor sonora — o beijo! Depois de sua mãe ninguém mais o beijara. E Santa, sem saber, acabava de abrir o coração do desgraçado um sulco luminoso, que penetrava até às suas mais fundas reminiscências da infância.

— Este menino está chorando! Considerou D. Geminiana, que até aí observara o Coruja como quem contempla um bicho raro.

— Que tens tu? Perguntou Teobaldo ao amigo.

— Nada, respondeu este, limpando as lágrimas na manga da jaqueta.

E o seu gesto era tão desgracioso, coitadinho, que todos, à exceção de Santa, puseram-se a rir.

— Não é nada, com efeito! A comoção talvez!... Exclamou Emílio, batendo levemente nas costas de André. — Há muito tempo que não se vê entre família!

Daqui a pouco nem se lembrará que chorou,... Não é verdade, amiguinho?

O Coruja disse que sim, enterrando a cabeça nos ombros.

— Mas, vamos para cima, que eu estou morrendo por comer! Protestou Teobaldo, passando os braços em volta da cinta das duas senhoras e obrigando-as a acompanhá-lo.
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continua…
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