sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 7)

 Este é um país fascinante,
produto de muitas mãos.
– Aqui, nativo e imigrante
parceiros somos, e irmãos!
A. A. DE ASSIS – PR

Arquivei na minha mente
lendas que trazem saudades,
e eu as vivo, simplesmente,
como se fossem verdades.
ADEMAR MACEDO – RN

Paquerador, mas casado,
da aliança faz segredo.
Sai por aí, o safado,
com um “bandeide” no dedo.
ADILSON DE PAULA – PR
 

Eu canto no triste encanto
saudades do teu amor,
porém se ouvires meu canto,
eu peço graça ao Senhor.
AGOSTINHO RODRIGUES - RJ

Morre o sonho, e as nossas vidas,
antes, caminhos iguais,
são duas trilhas perdidas
que não se cruzam jamais.
ALBA CHRISTINA C. NETTO – SP

Nestas ondas espumantes,
onde pesquei meu sonhar,
eu sou pescador de instantes,
nos encantos que encontrar.
ALZIRA DALL’ AGNOL – SC
 

Relógio, fique parado!
Não deixe o tempo passar...
Eu quero ser enganado
quando a velhice chegar!
AMÁLIA MAX – PR

Se amamos todos a vida
(ninguém deseja ser morto...),
que estupidez essa lida,
dos que defendem o aborto!
AMILTON MACIEL MONTEIRO – SP

Mulher é sopro de vida,
é brisa terna e envolvente,
aragem leve, sentida,
roçando o corpo da gente.
ANTÔNIO MANOEL ABREU SARDENBERG

Das rosas do meu jardim,
Maria sempre a mais bela…
Perfuma mais que o jasmim,
Que floresce em torno dela!
APOLLO TABORDA FRANÇA – PR

A criança é flor mimosa,
desabrochando pra vida,
e traz o encanto da rosa
já orvalhada e florida.
ARLENE LIMA – PR

Ceará terra da Luz,
de homem forte, bem valente,
o seu coração reluz,
planta do amor, a semente.
CÁRITAS  SOUZZA - CE

Dios nos dio sabiduría
para poder ben vivir...
siempre con paz e alegría
para dar e compartir...
CARMEN PATIÑO FERNÁNDEZ-ESPAÑA

Ainda bem que tenho os meios
de não ficar tão sozinha:
desenho e bordo, abro e-mails,
faço versos na cozinha...
CLEVANE PESSOA –  MG

Ó velhice, eu que temia
que chegasses de repente,
vivo em tua companhia,
sem notar que estás presente!
DELCY CANALLES – RS

Não pule do trem do tempo
em desembarque apressado.
Viaje sem contratempo
e não pare adiantado.
DINAIR LEITE – PR

Trago um sonho pequenino
Guardado dentro do peito
Que é morar sempre um menino
Neste corpo de homem feito...
DOMINGOS CARDOSO – PORTUGAL

Os teus sonhos reluzentes
de ternura e emoção,
são como enredos fluentes,
pescam nosso coração!
EFIGÊNIA COUTINHO – SC
 

Pescador mais esportivo
deixa seu peixe escapar,
melhor solto que cativo,
para assim o preservar.
ELIANA RUIZ JIMENEZ – SC

Confirmando as suas lendas,
por capricho, o velho mar,
cobre as areias de rendas,
quando a praia, vem beijar...
FABIANO WANDERLEY – RN

No teu regaço dormi...
Como em cama de jasmim
Foi no teu sonho que eu vi,
O quanto gostas de mim!
FERDINANDO FERNANDES – PORTUGAL

Na ausência que não nos poupa,
saudade é formiga arisca
que fica dentro da roupa
e volta e meia belisca.
FLÁVIO ROBERTO STEFANI – RS
 

Eu vou trilhando esta senda
tão difícil da poesia,
e nela quero ser lenda,
eis meu "sonho  fantasia"!
FRANCISCO NEVES MACEDO – RN

Nos lençóis brancos, macios,
de nossa cama deserta,
o tempo desmancha os fios
da minha pobre coberta.
GISLAINE CANALES – RS


Cristo, o maior pescador,
pescou peixes, pescou almas,
resgatou do mundo a dor,
em manhãs belas e calmas!
GLEDIS TISSOT – SC

O bilro, velho instrumento,
que entrelaçou tantas rendas,
tece, agora, num momento,
as rimas de minhas lendas.
IEDA LIMA – RN

Nem sempre a felicidade
vem da vitória ou da fama;
pode estar numa saudade
ou nos olhos de quem ama!
JEANETTE DE CNOP – PR

Mesmo vencendo a contenda,
e os medos da tenra idade,
o lobisomem é a lenda
que vive em minha saudade!
JOAMIR MEDEIROS – RN

Poeta, és  velho coreto
onde, na noite estrelada,
teus sonhos fazem dueto
com a voz da  madrugada...
JOÃO PAULO OUVERNEY – SP

Mais do que fadas e mitos,
num cenário encantador,
tenho sonhos tão bonitos,
que viram lendas de amor!
JOSÉ LUCAS DE BARROS – RN

Vinho e uva de montão
morro abaixo, morro acima
não estranhe, amigo, não
é a festa da vindima
JUSSARA C. GODINHO – RS

La noche se hace plateada,
mientras la samba yo danzo,
y a la luna apasionada,
un dulce mirar yo lanzo.
LAURA ROJAS – CHILE

¡Que bueno es ser tu amigo!
¡Ser tu amigo , que te adora!
Por eso tus pasos sigo
¡linda y bella Trovadora!
LEONARDO HUERTA – MÉXICO

Num tropel de evoluções,
a lua, no céu, galopa,
entrelaçando bilhões
de áureas estrelas em tropa!
LISETE JOHNSON – RS
 

Lá vai o bom pescador
por esses mares desertos,
lá vai ele, o sonhador,
pescando em  portos incertos!
LUCAS BARBOZA – SC

Era sonho, se desfez,
se desfez minha ilusão;
restou-me a insensatez,
cinzas quentes da paixão.
MANOEL DANTAS – RN


Tempo que reparte a vida,
 faz o meu destino assim:
 Vida é lenda dividida...
 Parte é começo, outra é fim!
MARA MELLINI DE ARAÚJO GARCIA – RN

La amistad me dio la vida
las ansias de libertad
a compartir nos convida
y a los sueños despertad.
MARIA CRISTINA FERVIER – ARGENTINA

Para a alma aliviar
na dor, conflito, paixão,
a lágrima acalma o olhar;
um poema, o coração!
MARIA ELIANA PALMA – PR

Papai Noel, eu queria
Que sempre em cada Natal
Trouxesses mais alegria
ao Brasil e a Portugal.
MARIA JOSÉ FRAQUEZA - PORTUGAL

Pelas ruas, no passado,
nos realejos risonhos,
o periquito amestrado
passava vendendo sonhos.
MARINA DE SOUZA VALENTE – SP

Se o mar da vida, tristonho,
faz meu sonho naufragar,
iço as velas de outro sonho
e outra vez volto p'ro mar!
MARISA VIEIRA OLIVAES – RS
 

Todo cão é prestativo
um amigo verdadeiro,
com o seu dono, é festivo,
efusivo companheiro.
MIFORI -SP
 

A primavera, suponho,
que tendo sonhos de amor,
faz, sim,com que cada sonho
nasça em forma de uma flor.
MIGUEL RUSSOWSKY – SC

Sonhar é o jeito mais certo
de dar um passo gigante:
o sonho traz para perto
o que parece distante.
MILTON SEBASTIÃO SOUZA – RS

Chamou-me de bela flor,
mexeu na rede emoção,
transformou-se em pescador
e pescou meu coração!
MIRIAM WEBER –SC
 

Luiz Otavio, no infinito,
em sua estrada já traçada,
nos ensina quão bonito
é uma trova declamada!
NEI GARCEZ – PR
 

Meu coração é um gigante,
que guarda muita emoção,
e nele tem habitante,
guardado com devoção.
NEIVA DE SOUZA FERNANDES – RJ
 

Há na mente da criança
um ideal tão fecundo,
que toda desesperança
torna-se lenda no mundo.
PAULO ROBERTO DA SILVA – RN

Primavera é foto linda,
de uma infância toda em flor;
parece que nunca finda
a primavera do amor!
PROF. GARCIA - RN
 

Aquele que firme avança,
sem receio de fracassos,
mantém consigo a esperança
levando o sonho nos braços.
REGINA CÉLIA DE ANDRADE – RJ
 

Não há nada que retalhe
os poemas que componho,
pois cada verso é um detalhe
do tamanho do meu sonho!
RENATA PACCOLA – SP

O sonho mais belo e ardente
da minha infância querida
virou cinzas, de repente,
nas fogueiras desta vida!
RENATO ALVES – RJ
 

A Natureza hoje chora
a cruel devastação
que faz o verde ir embora
e veste de cinza o chão !…
SONIA MARIA DITZEL MARTELO – PR
 

A vitória que se alcança
tem lição para ensinar.
– Não fique na praia mansa,
saiba as ondas enfrentar!
VANDA FAGUNDES QUEIROZ – PR
 

Navegam os trovadores
em e-mails de ilusões,
computando riso e dores,
conectando as emoções!!!
VÂNIA ENNES – PR

Paolo Ricci (Juliana)

Foi num destes fim de semana deste Ano Santo, a aproveitar o sossego de Salinas sem veranistas, buzinas e cantar de pneus pelas madrugadas, que ela apareceu enxerindo-se em nossas vidas.

Uma cadela preta, pobre vira-lata sem donos, sem dengos nem vacinas, mas bela no seu porte esbelto, de pelo bonito mas sem trato, a atestar a irônica verdade de que até para nascer cachorro é preciso ter sorte.

Fez-nos festas como se nos reconhecesse por donos e aboletou-se casa a dentro, confraternizando com o pequinês de "pedigre", a mendigar agrado e um prato de comida, entre a oposição da mulher que não queria cão vadio e sabe lá raivoso dentro de casa, e a afetividade dos meninos que logo lhe deram nome: "Juliana".

Que é isso, meninos? Então, colocar nome de gente em cachorro, e logo nome bonito, de rainha, até? Mas, o nome ficou e calhou-lhe bem que, "Juliana" vira-lata, sem tratos e enteada da sorte, tem porte de imperatriz.

E, suprema ironia, num mundo de ódios, agressividade e violência, onde homens quase latem, rosnam, mordem e atacam, "Juliana" fez-se mensagem de mansidão, de amor e afetividade, a pedir e dar atenção, com suas patas como que amestradas para isso, que se estendiam dóceis e elegantes a nos roçar o corpo, a fazer correr outros cães vadios que se aproximavam de casa, a latir de noite, diligente e vigilante, a nos acompanhar à praia, sob protestos da mulher, aos quais a pobre cadela, de pelo belo mas sem trato, fazia ouvidos moucos.

À partida, "Juliana" deixou em nossas retinas e nossas mentes uma vaga lembrança de tristeza e nos corações dos meninos um preciso sentimento de saudade.

E, em todos os fins de semana, deste Ano Santo, "Juliana". A cadela sem tratos e sem donos parecia adivinhar nossa chegada. Momentos após invadia a casa a pular, pesada, em nossos peitos, a distribuir agrados e afeto.

No último fim de semana ali passado, "Juliana", cadela sem tratos e sem donos, sem dengos nem vacinas, foi trazida pelos meninos ante a "Xereta", para o registro colorido de um momento de sossego e tranquilidade.

Dentro da nossa atual cultura, onde o escopo do homem é a competição agressiva, a ânsia de prestígio, classe, *'status", poder e riqueza, certas coisas não fazem sentido, como dar atenção e tecer loas a vira-latas sem donos, sem vacinas nem "pedigree".

Mas, para os que nao perderam o sentido de beleza e de poesia, ver "Juliana" dentro da natureza ampla e luminosa, a correr livre e solta pela praia, espadanando águas e varando o vento, a chamar nossa atenção e divertir-nos, ela deixa de ser a cadela vira-lata, sem tratos e sem dengos, sem classe e sem vacinas, para transformar-se aos nossos olhos em uma lembrança de paz é imorredoura magia e encanto.

Fonte:
Antologia da Academia Paraense de Letras. Poesia & Prosa. Belém/PA: Cultural CEJUP, 1987.

Paolo Ricci (1925 – 2011)

Paolo Ricci nasceu em Lucca, na Itália, em 08 de setembro de 1925 e faleceu em 08 de maio de 2011 em Belém do Pará.

Foi cronista, poeta, romancista e artista plástico de expressão internacional.

Integrou a Academia Paraense de Letras (APL) desde 21 de outubro de 1980, ocupando a cadeira de número 19.

Seus pais vieram da Itália morar em Rio Canaticu, na Ilha do Marajó, ainda na época áurea da borracha.

Graduou-se em Direito, estudando em Belém do Pará, colaborando com jornais paraenses da época como “Folha do Norte” e “A Província do Pará”.

Tendo demonstrado desde a infância forte tendência para o desenho   e desejando, ainda menino, aprender pintura, era desestimulado pelos pais que consideravam as artes como "coisas mortas", sem utilidade prática. Em novembro de 1950 recebeu sua primeira aula de pintura realizando um "d'aprés" no salão onde expunha, em Belém, o artista    holandês Wín Wan Dijck. Incentivado a continuar, prosseguiu auto didaticamente quando, em 1951. pintando a nave da Catedral de Belém, foi visto pelo grande interiorista Leonidas Monte, cearense radicado e ativo em Belém, daí em diante tornando-se amigo e discípulo desse artista. A partir desse ano também passou a contar com a orientação critica de Frederico Barata, com quem viria a trabalhar em "A Província do Pará", reinstalada pelos "Diários  Associados".

Em 1966, a convite do Governo dos E.E.U.U. de setembro a novembro visitou artistas. Academias. Museus, Universidades e Galerias de Arte em Washington. Filadélfia, Nova Iorque, Chicago, Búfalo, Oakland, São Francisco e Los Angeles, polemizando e discutindo problemas da arte contemporânea, confirmando o que escrevera Mário Cravo Jr. a seu respeito: "polêmico, preocupado basicamente com sua arte".

Integrou vários júris, inclusive o da Pré-Bienal de 1974, de São Paulo: foi membro de banca examinadora na Universidade Federal do Pará. proferiu inúmeras palestras sobre composição e outros temas, destacando-se a realizada em 1978, no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro (uma sinopse sobre a História da  Pintura no Pará), por ocasião da coletiva "Artistas do Pará e Minas Gerais", na Galeria Rodrigo M.F. de Andrade, da FUNARTE,  da qual participou.

Pesquisador incansável das artes plásticas no Pará, organizou a exposição “Artistas Plásticos Paraenses do Século XIX” e o livro “As Artes Plásticas No Pará”. É citado pelo “Dicionário de Artes Plásticas” do Ministério da Educação como um dos mais importantes artistas plásticos do Brasil.

Publicações
Poesia – Riso dos Insanos, 2001;
Entre o espaço e o tempo, 2003;
Revoada de anseios, 2004;
25 Madrigais de Amor e Dor, 2004.

Fontes:
Projeto Memória da Literatura do Pará
– Antologia da Academia Paraense de Letras. Poesia & Prosa. Belém/PA: Cultural CEJUP, 1987.

Clevane Pessoa (Poema de Natal)

Dizem que altos anjos
Da Divina hierarquia,
Na verdade, casulos de luz
- Pura energia criadora
Desceram de outras dimensões
Para apreciar um nascimento
Muitíssimo essencial...

Dizem que flocos de neve
Caíram das alturas
Cada um mais especial
Com formas que jamais se repetiram...

Dizem que o ar ficou de tal maneira
Perfumado de rosas e jasmin
e embriagou os passarinhos
-Que mais docemente cantaram
E girandolando voejaram
Saindo a anunciar
O evento anunciado
Que acabara de acontecer...

Dizem que uma alegria intensa
Se apossou dos pastorinhos,
-Pensaram então fazer parte
Da corte de um certo rei
E se sentiram comovidos,
Não de ouro e prata vestidos
Mas vestidos de Alegria
E canções de ninar entoaram
Louvando a chegada do Menino...

E é por isso que até agora
Quando chega o Natal
Também vestimos a alma
De cores especiais
E a nossa voz se eleva
Para acima de qualquer treva
E desejamos a todos
Votos de tantas coisas
Boas de acontecer...

Quem disse? Quem contou
Essa história às pessoas aqui da Terra?
Ora, os bardos, com a Poesia
Dos que precisam de Luz
Dos que necessitam de esperança
E querem levar alegrias
Pelo menos uma vez ao Ano
Para que os homens não desistam
De renovar seus sonhos
E de aproximar os que sonham...

 ...E agora, plenificada
de Amor, quem vos reconta,
sou eu: no colar dos contadores
mais uma conta que conta

mais uma ponta que canta...

Fontes:
A Autora
Imagem = http://jardins-encantados.blogspot.com

Humberto de Campos (Vitória-Régia)

A canoa, puxada a quatro remos, descia o pequeno afluente do Amazonas, desviando-se, ligeira, das grandes manchas de plantas aquáticas que a correnteza preguiçosamente arrastava, quando o velho índio Tibúrcio, sustando a remada, começou a contar-me a mais formosa lenda daquelas ribeiras.

- Antigamente, meu senhor, este rio era limpo de toda sorte de aguapé, e de corrente tão clara que se podia ver, de dia, as traíras, os piaus e os mandís, rabeando, no fundo, no grande leito da areia dourada. Nesse tempo, morava na cabeceira do rio, onde as águas são mais puras, um velho índio, o famoso Tauí, cuja filha, Jaciara, assim chamada por ser a senhora da lua, era, com os seus olhos mais negros do que o acapú, a mais formosa moça das redondezas.

O caboclo enfiou, de novo, o úmido remo no grande leito do rio, fê-lo roncar, soturno, nas profundezas dágua silenciosa, e levantando-o, gotejante, continuou a narrativa:

- Um dia, voltando da caça, adivinhou Tauí, de longe, a presença de um estranho na palhoça que lhe servia de casa. Arrastando-se, como uma cobra, sobre as folhas do chão, estava o pobre pai a poucos passos da porta de esteira, quando de lá pulou um homem, que desapareceu, de um salto, no seio da mataria.

Duas remadas ressoaram, de novo, profundas, no leito do rio, impelindo a canoa, e Tibúrcio reatou a história:

- Furioso com a traição da filha, o índio, feroz, atirou-se contra ela, esganou-a, e abriu-lhe, de lado a lado, com a ponta da flecha, a caixa do peito moreno. Feito isso, enfiou no seu corpo as grandes unhas de tamanduá, e arrancou-lhe, sangrento, o coração ainda palpitante, que atirou, da porta da palhoça, à clara correnteza do rio.

Impeliu, mais uma vez, a canoa ligeira, fazendo roncar no seio da água o seu pesado remo de massaranduba, e rematou:

- Desde esse tempo, meu senhor, começaram a aparecer no rio estas verdes plantas errantes, cuja flor, alva como a lua, dorme no fundo das águas, e rebenta, à noite, com grande estampido, espalhando por tudo, em redor, a doçura do seu perfume.

E apontando-me uma "vitória-régia" que descia, alva e enorme, nos braços cariciosos das águas, acrescentou, compungido:

- Olhe, lá vai uma. É o coração de Jaciara...

E impeliu a canoa, com força.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de bronze.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 10 – 10 de janeiro de 1887

Depois de férias tão longas;
Tão docemente cumpridas,
Ó musa, minhas candongas,
Voltemos às nossas lidas.

Assim faz a Pátria, às vezes,
E é certo que não estoura;
Descansa um mês ou dois meses
O nosso C. B. de Moura.

E a Pátria, meia enfadada
Daquelas extensas férias,
Volta mais fortificada
Aos combates e às pilhérias.

Eia, pois, minha gorducha,
Vê que recomeça a aurora,
Puxa daqui, puxa, puxa,
Vamos trabalhar lá fora.

E antes de tudo, inclinando
O gesto a todos os lados,
Vai a todos desejando
Plácidos dias folgados.

Desejarás uma boa
Vereança aos cariocas,
Que se não esgote à toa,
Em longas brigas e mocas;

Que eleja pacatamente,
Sem atos tumultuários,
O seu vice-presidente
E os restantes comissários.

Pouco calor, pouca chuva,
Nenhuma peste que assole,
Algum vinho feito de uva,
E menos gente que amole.

Grandes bailes mascarados
E passeatas nas ruas,
Câmaras de deputados
Sem as discussões tão cruas.

Boatos, sobre boatos,
De modo que quem passeie
Por esses bonds ingratos
Tenha cousa que recreie.

E mais que tudo, meu anjo;
Anjo meu do meu sacrário,
Desejo um bonito arranjo
Ao nosso estafado erário.

Não sei se leste a mensagem
De Cleveland, um documento
De americana homenagem
Lá, para o seu parlamento.

Pois conta-se aí (por esta
Luz do céu minh'alma jura
Que não é peta funesta,
Mas pura verdade, pura);

Conta-se que a renda é tanta
Que urge cortar-lhe os babados,
Que é demasiada a manta
Para tão vastos Estados.

Que, se vão nessa carreira,
Pagam aqueles senhores
Em breve a dívida inteira,
E ficarão sem credores.

Depois vem maior excesso
De renda, e será tamanho
Que não haverá processo
De o dar a melhor amanho,

Porque ou fica no tesouro,
Inútil, mudo e parado,
Ou saem carradas de ouro
Para os delírios do Estado.

Ora bem, estes fenômenos
Dados como desastrosos,
Terríveis paralipômenos
De grandes livros lustrosos,

Hás de pedi-los, amiga,
Mas pedi-los de maneira
Que uma segunda barriga
Coma sem dor da primeira.

Es decir, que aquela caixa
Que ronca de tanta altura,
Se quiser ficar mais baixa
Tem receita mais segura:

Pegue em si, tire metade
E verá como lhe pego,
Pego-lhe com ansiedade,
Com ansiedade de cego.

E digo ao Tesouro nosso
— Amigo, aqui tens dinheiro;
Precisas deles, aqui posso
Dá-lo às tuas mãos inteiro.

Vê tu que singular obra
A deste mundo peralta,
Geme um — pelo que lhe sobra,
E outro — pelo que lhe falta.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

João Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) 1

Certa hora de pleno dezembro, por véspera do Natal, estava eu desassossegadamente abanando os mosquitos, quando, por mão de alto e grave sujeito, chegou-me um pacote, atado em cruz por cadarço listado; farta placa de lacre fechava a laçada do atilho, nem endereço nem sinete.

— Mandam-lhe!

Assim disse e logo saiu o imperturbado bípede.

Fiz - há! - solentemente e estendi a mão, tomando o volume, trégua foi para os mosquitos, que apertaram as evoluções e o zumbir.

Mas logo, mirado o pacote e o seu anonimato, despontou a dúvida, o receio, a inconveniência de um engano, uma troca...

Verificar, lógico, o verificar impunha-se.

— Oh! senhor?!... clamei.

O senhor sumira-se; nem sombra dele nem rastro; dobrara a esquina..., sumira-se, era o certo. Pois...

Se fora a desfiar ponderações sobre a interrogante - e muda - expectativa, não bastaria a hora, aquela, de pleno dezembro, por véspera do Natal, etc. etc.

Fui-me ao laçarote: o lacre o impediu de correr, quebrei o lacre e ainda o laçarote não correu... Cortei-o!

Sublime lance! Recordei o de Alexandre, o magno, perante o nó górdio...

Enquanto isso, os mosquitos revigoraram o ataque. Olhei-os com furor, à nuvem oscilante com ódio! E abanei, abanei-os em acelerado, com o próprio sobredito pacote. Súbito, passei de irado para pacífico; estaquei, e, num sorriso arguto, soprei ao ignoto:

— E - isto - se é uma broma?...

E sopesei o... problema: leve.

Apalpei-o: brando.

Olfatei-o: inodoro. Inodoro, bem, não. algo de lacre e de cadarço novo...

Apus-lhe o ouvido: mudo. Figura geométrica: ladrilho. Comentário de estética: papel de embrulho, amarelo, pingentes de cadarço; escamas de cera com breu e ocre. Lamentável!

Âmbito de conjetura: tudo.

Ímpeto de curiosidade: abre!

Conselho de prudência: vê lá!

O livre arbítrio: ora!...

E sem mais tardança esventrei o calhamaço. Era um robusto caderno salpintado de muito porém legibilíssimo bastardinho da mão inteligente de um Padre vigário, arquivista alegre nas horas vagas, e que na primeira página, com sutil e perita malícia, tracejara o título:

CASOS DO ROMUALDO

Subsídios para as suas esperadas memórias póstumas, caso nestas esqueça aqueles.

Ora, aqui tem o leitor o primeiro da série dos que vão, talvez fazê-lo dizer:

— Apre!...

Eu, de mim, ignoro quem foi Romualdo. Contados os seus casos na prosa chata que se vai ler, muito perdem do sabor e graça originais; guarde porém o leitor a essência da historieta e repita-a, - por sua vez: recorte-a, enfeite-a com o brilho do gesto e da dicção, acrescente um ponto a cada conto.., e terá presente, imaginoso, criador, inesgotável.., serás tu próprio, leitor, o Romualdo, redivivo...

Verifique o mais incrédulo: em roda de palestra há dois temas que fornecem - sempre - matéria para assunto; histórias de cobras e de jóias perdidas. Quando a conversação amodorrar, quando nela forem caindo retalhos de silêncio, pausas longas, frases dispersas... experimente, amigo: fale de cobras e de jóias perdidas; e, daqui por diante... nos casos do Romualdo!

CASOS DO ROMUALDO

Sou eu, o homem!

É no geral sestroso e dado a pôr em dúvida o que com outrem se passa o indivíduo mal-andado por este mundo de Deus.

Que pode saber do que vai - além - o homem que nunca - daqui — moveu-se, mesmo a passo de cágado?

Por isso sou mirado, eu, Romualdo, por esses tais, com um olhar parado, dentro do qual as dúvidas galopam...

É admissível, afinal, e eu perdôo-lhes: pois se eles - nunca — viram nada! Cada um viveu como um toco plantado no terreiro... como soleira de porta... como parafuso de dobradiça!

Bastará já que tivesse vivido como galo de torre de igreja, como coleira de cachorro ou como sanguessuga de barbeiro... e já muito mais cousas teria visto, cem novidades saberia, mil sucessos poderia referir. E, melhor ainda, se vivera como realejo de minhas aventuras?... Nada, pois que nada -nunca! - viram.

Entre os segundos o negócio muda um tanto de figura: falo, mas pouco, e pouco porque ainda não seria bem compreendido. Agora, quando sou centro dos terceiros, ah! então, sim, ouvidos haja, porque língua tenho e acontecimentos sobram!

Abro o saco e conto o muitíssimo que tenho visto, as aventuras em que fui parte. Dos meus verdadeiros - casos, posso citar inúmeras testemunhas... infelizmente quase todas mortas e as restantes morando longe; há mesmo algumas cujos nomes esqueci, mas cujas fisionomias guardo nos escaninhos da memória.

Como neste assunto não sou obrigado a reger-me pelo Código do Comércio, que exige os lançamentos por ordem de datas, irei consignando os meus depoimentos, conforme se me forem eles apresentados. E se, apesar das minhas afirmativas, pretender alguém pôr em dúvida os meus casos, peço a esse alguém que suspenda o seu juízo. Suspenda-o e consulte-me.

De corporal, sou baixinho e gordo, ruivo e imberbe; de moral, sou calado e tagarela, violento e calmo; em tudo, homem para as ocasiões.
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CONTINUA…

Folclore Grego (Gykia, a heroína de Chersonesos)

Lamachos era um rico morador da cidade de Chersonesos. Era tão rico que seu gado tinha uma porta exclusiva para entrar na cidade. Ele tinha uma filha única, de nome Gykia, ela era a mais linda e inteligente da cidade, tendo o seu pai se esmerado em educá-la com os mais sábios professores.Gykia era uma boa moça e queria de alguma forma ser útil pra a sua cidade.

Entretanto, na província de Bósporo reinava Asandros, que louco de ganância queria a cidade de Chersonesos para si. Ele tinha tentando tomar à força uma vez, só que falhou. Então armou o plano de casar seu filho com Gykia, assim quando Lamacho morresse o filho dele governaria e depois seu neto.

Tudo aconteceu de acordo com a o plano, Gykia casou com o filho de Asandros. Mas havia uma cláusula que dizia que se o marido saísse da cidade para encontrar o pai, seria executado. Gykia amava o marido sinceramente. Ele parecia ser uma boa pessoa, um fiel cidadão e era cheio de boas ações. Só que Lamachos morreu dois anos mais tarde e o Conselho da cidade decidiu entregar o governo não para o seu marido, mas para Zethos, um cidadão de destaque da cidade. O marido não desistiu, e ficou esperando uma oportunidade para tomar o poder.

No aniversário da morte de seu pai, Gykia organizou uma comemoração, regada a muita comida e bebida. O marido dela resolveu usar um dos aniversários de morte do sogro para tomar a cidade. Ele enviou um escravo dedicado a Panticapaion (a capital do reino do Bósforo) com uma mensagem que ele tinha encontrado uma maneira de tomar o controle sobre Chersonesos.

O pai enviou navios a seu filho com guerreiros dentro, como se eles estivessem trazendo presentes para a festa. Os barcos bósforo chegaram na Baía de Símbolos, e o filho de Asandros enviou cavalos para eles. Eles foram a cidade, entregaram os presentes, e alguns ficaram escondidos na casa de Gykia, enquanto os remadores partiam dando a impressão de que eles tinham partido.

Os escravos que o filho de Asandros trouxe de Bósporos o ajudaram, dizendo para todos que eles tinha deixado a cidade e dando comida e água para eles. Tudo foi feito secretamente. Gykia não suspeitava o que estava acontecendo em sua própria casa.

O prazo para o cumprimento do plano era o terceiro aniversário da morte Lamachos. Por dois anos ele reuniu em segredo cerca de duzentos guerreiros de Bósporos. O filho de Asandros supôs que no dia da comemoração todos iriam divertir-se até tarde da noite e ficar totalmente bêbados, e quando dormissem, ele levaria seus guerreiros para realizar seu ato traiçoeiro. Nessa altura, a frota de seu pai estaria pronta para o ataque contra Chersonesos.

A trama foi descoberta por acidente, isso porque uma das servas de Gykia estava de castigo em um aposento, e sem querer deixou cair um grampo, quando foi pegá-lo no chão, ele viu os soldados escondidos no andar de baixo. Imediatamente ele pediu para alguém trazer sua patroa e falou a ela o que estava acontecendo. Gykia não teve dúvidas, o amor pela cidade era maior que qualquer coisa, e decidiu matar a todos, inclusive seu próprio marido, que acabou por ser um traidor.

Ela pediu a seus parentes para reunir os mais valentes cidadãos. Ela fez eles jurarem que se tudo fosse verdade, depois da morte dela, ela deveria ser enterrada dentro d perímetro da cidade. Eles juraram cumprir seu desejo, Gykia satisfeita revelou a traição do marido. Quando eles ouviram a estória, congelaram de medo.

Ela combinou que as comemorações deveriam ocorrer de maneira normal. Todos beberiam, dançariam, cantariam, mas de maneira comedida e sem esquecer o perigo. Deveriam também juntar mato em suas casas. Assim, quando a festa terminasse, os portões seriam fechados e todos iram para suas casas, pegariam os galhos e folhas e iriam a casa dela, colocariam tudo lá e ateariam fogo, assim que ela saísse, é claro. Cuidando para que ninguém mais saísse vivo de lá.

Como havia sido combinado, no dia do memorial de Lamachos , os habitantes da cidade se divertiram durante todo o dia nas ruas. Gykia generosamente distribuiu vinho na festa em sua casa, entreteve seu marido, mas ela mesma não bebeu e ordenou o mesmo de sua servas. Gykia bebia água de uma tigela púrpura que parecia vinho.

Quando a noite chegou, e os cidadãos retornaram a suas casas e Gykia convidou seu marido para dormir. Ele concordou prontamente. Ela ordenou que os portões e entradas fossem fechadas, como de costume, e imediatamente enviou servas de confiança para levar roupas, ouro e decorações diversas para fora da casa.

Tudo ficou silencia na casa e o marido bêbado adormeceu, então Gykia saiu do quarto, fechou a porta atrás de si, e chamando de servas, deixou a casa. Na rua, ela disse que ateassem fogo em cada lado da sua casa. Logo a casa estava envolta em chamas. Os guerreiros bósforos tentaram fugir, mas foram imediatamente mortos. Em um instante todos os conspiradores foram executados.

Desta forma Gykia manteve Chersonesos fora do perigo, os cidadãos ergueram duas estátuas em sua homenagem.

Quando, mais tarde, Gykia lembrou o conselho da cidade sobre a sua promessa de enterrá-la dentro do perímetro da cidade , mas alguns ficaram contra dizendo que a necrópole de Chersonesos estava longe das muralhas da cidade, e eles nunca enterravam os mortos em bairros residenciais. Em vez disso, eles propuseram reconstruir a casa dela, em troca.

Ela não desistiu. Alguns anos mais tarde a sábio Gykia decidiu testar se seus concidadãos se eles iriam manter sua palavra na prática. Ela disse a seus escravos para espalhar a notícia de que ela tinha morrido. Todos ficaram tristes. As pessoas lotaram a praça da casa de Gykia. Seus escravos e parentes prepararam o corpo para o rito fúnebre.

Após uma longa reunião da anciãos eles decidiram não infringir o rito antigo dos gregos, e sim quebrar o juramento, e ordenaram levar o corpo dela para fora da cidade e para enterrá-la na necrópole.

Quando o cortejo parou diante do túmulo aberto, Gykia levantou-se do sarcófago, e começou a acusar os cidadãos amargamente. Os anciãos ficaram envergonhados e juraram pela terceira vez realizar o seu desejo. Ela foi autorizada a encontrar um local de sepultamento dentro da cidade, que foi marcado com um busto em cobre dourado da heroína.

E aqueles que quisessem admirar a beleza dela, poderiam escova o pó do busto de cobre e ler na placa a estória de seu feito corajoso.

Fonte e Imagem:
http://www.chersonesos.org/?p=history_tls1&l=eng. Tradução do grego por N. Khrapunov

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) V

RIMBAUD

Após oito anos luz
Pelos caminhos do inferno
Entro num cabaré
Faminto de olhos tetas e bocados
Regados a sossego.
No chope gelado
Uma réstia de sol ilumina
Ainda que tardiamente
Meu pensamento.

CÂNDIDO

Pintura milagre da luz
Transformada em nuanças coloridas
pela mente mãos cálidas
De um pintor completamente genial
Desses iluminados
Na loucura refinados
Saborosos como o sal da vida
Parida na cor dolorida do amor.

SEGUINDO A LINHA

Deixei meu passado entulhado
Num canto qualquer da memória
Não vim de ontem sou de hoje
Não tenho história.
Experiência?
É o ar que respiro na brisa do agora.
É reaprender cada minuto que morre
Sem envelhecer
No tempo que corre.

DOR ESQUECIDA

No torpor vermelho vinho
As canções são mais sentidas
Estranhamente coloridas
Feito quadros de Dali.
Uma lágrima traiçoeira
Desgarrada incontida
Revela uma ferida
De não cicatrizar.

RIMBAUD II

Escarros vermelhos ecoam no infinito azul
Batalhões tombam aos pés do rei
Que os xinga...
Enquanto pequenos deuses
Do alto de seus altares
E suas taças de ouro
Embalados por preces e cantos adormecem.
Só despertam
Quando mãos estendidas calejadas
Sofridas subjugadas
Entregam-lhes tudo o que têm:
O último vintém.

FERNANDA
(UMA ROSA AZUL)


Eu vim e vou caminhar
A estranha estrada de terra
Vermelho é o sol que se põe
No azul de uma rosa que nasce
Aos olhos infantis que adormecem.

MECKINHO

A imobilidade
Do grande mestre
Contrasta
Com a fúria de seu raciocínio.
Na aparência
Um monge tibetano,
Na determinação mental
Um moderno
Gladiador.

MIRACLE

Rimo a rima que rimar
Escrevo a fala do cantar
Sonho pensamento futuro
Sinto o que sinto sei lá.

Estranho é estranhar minha palavra
Pois ela não cura ou agrava
Um estado de coisas suaviza
Sendo assim só faz melhorar

Esse espaço esse ar essa lida
Colorida poesia bonita
Que inútil seria explicar
O milagre singular dessa vida.

CANDELÁRIA

A polícia reza missa
Com a voz da metralha
Mata um
Mata dois
Mata oito
Na candelária.
Tenta cortar
O mal pela raiz
Podando apenas
As folhas da violência,
Que demência!

VOLPI

Enfim
Cansado de colorir
Suas bandeirinhas
O garoto escolheu
A mais bela estrela
E cobrindo-se de azul
Adormeceu.

GUERREIROS

Soldados valentes
Crédulos e cansados
De carregarem
Sobre os ombros doentes
A cabeça de um rei
Eternamente embriagado.

QUINTANA

Tenho nas mãos uma jóia
Lapidada por um menino
Franzino de 87 anos
Que solitário segura o céu
Como uma bela e imponente
Coluna grega.

2001

Virei com o século
Venci o pesadelo
E neste segundo sono
Escolherei meu sonho
Com maior desvelo.

ÓCIO

Uma garrafa vazia
Um copo pela metade
Pablo Neruda na mão
Na mente uma canção
De liberdade.

SEM PALAVRAS

O poeta necessita
De palavras em seu poema
Mas a poesia
Dispensa
Palavras e poetas.

CALEIDOSCÓPIOS
 

Olhe-me veja
Remexa já não sou
Vire
Lá estará outro eu
Outro lugar
Somos assim
Caleidoscópios a girar
Se transmutar
Explicar isso não dá
Mas ainda podemos cantar
Aquela canção do sorrir e caminhar...
Caminhar por este chão
Comum camaleão.

LOUCOS ALEIJADOS

Quantas vezes
Usamos as muletas
Da religião da moral da sanidade
Por não confiarmos
Em nossas convicções
Sentimentos idéias e ideais...
Por não confiarmos
Em nossa própria loucura.

CONSELHO

Sabe de uma coisa colega
A vida está difícil demais
Mas um poeta não se entrega
E não desanima meu rapaz.

Ser poeta, meu amigo.
É ser criança forte e frágil
Humano, fera, rocha e abrigo.
É trazer na alma a chama indecifrável...

Não deixar morrer em seu olhar
Aquele espanto primordial
De menino puro ao amar

Nem deixar viver em seu ser
Aquele medo primordial
De homem imaturo pra morrer.

CIRANDA

Acordo de manhã
E aí está o mundo
Barulhento, traquinas
Saudável criança.
Fazer o quê?
Senão entrar nesta ciranda
E brincar de crescer.

HIPOCRISIA

Procuramos ter
Pensamentos puros e elevados
Enquanto emporcalhamos
Nossos rios mais sagrados.

NO HORIZONTE UM SOL SEMPRE

No horizonte
Vermelho
Brilhante
Morre
Naturalmente
Um sol
No ocidente

No mesmo instante
No oriente
Um sol
Naturalmente
Nasce
Brilhante
Vermelho
No horizonte.

ESTAÇÃO LIBERDADE

Sobram bancos e mármores
Nessa estação de metrô
O trem é rápido
As pessoas apressadas
Devagar vomito
Numa lixeira próxima
Impecavelmente
Limpa.

MEDO

Minha sensibilidade
Escondeu-se atrás do medo
Minha inteligência
Atrás do muro
O coração não vê presente
A cabeça não vê futuro
Silencioso tateio meu caminho
Zigue - zagueando poesia.

IDADES

Meu corpo
Tem a idade de um homem
Minha mente
A de um ancião
A idade de uma criança
Tem meu coração.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Nilto Maciel (Punhalzinho Cravado de Ódio)

Caminha Ana pelo beco esburacado, perninhas de embuá, doida para alcançar a esquina. Saltita, feito catita, de ilha em ilha, com medo de se afogar nas poças de lama. Cachorros sonolentos abrem os olhos para sua figura miúda e se espreguiçam e expõem as indecências encarnadas de entre as pernas. Voltam a sonhar, sérios, acanhados, magros.

– Cambada de vagabundos!

O sol assa a areia, os pesinhos gordos da anã, racha a taipa dos casebres, os lábios da mulher, reluz nos cacos de vidro expostos no meio da rua, nos olhos da caminhante.

– Arre égua!

Abertas as portas da bodega de Bodinho, anunciada por placas de Coca-Cola. Dentro, moscas fartas, catinga de cachaça, salpicada de escarros, sortida de mil mantimentos para gentes e bichos.

Venta para todas las bandas e tudo se mexe, remexe, rebola, remoinha. Os vira-latas acordam raivosos, voa poeira entre as casas, papéis de embrulho viram arraias bicós e o bodegueiro pragueja.

E vão embora gritos, pules de jogo do bicho, esperanças, tudo em fuga pelos becos. Do lado de dentro do balcão, Bodinho arruma jornais de ontem e inventa pragas contra o diabo da ventania. Sunga as calças e a pança balança, fofa, mole, cheia. Zunem moscas alvoroçadas. Pousam nos braços curtos da freguesa, pegajosas. Fazem cócegas na pele grossa de Ana.

– Desgruda, desgraçada!

Pela porta atrás da anã entra Pêu, arreganha os dentes podres. Estica as pernas, pula para um caixão de sabão, quase a roçar nos cabelos de Ana. Atrás do balcão, Bodinho assobia e ri.

Solta na buraqueira desde os tempos de chupeta, Anazinha meteu-se cedo nos becos da molecagem. Anãzinha praqui, Aninha pracá, conheceu um a um os moleques do Pirambu. Com Pêu experimentou as primeiras dores.

– Casar? Nunquinha.

Também nunca pegou barriga de nenhum cabra safado, muito menos de Pêu.

– Ainda bem.

E não teve a sorte de conhecer um de seu tamanho, de feitio anão, do jeito de seu agrado.

Mãosinhas postas sobre o cocô das moscas, pede a anã o milho de suas galinhas. Depressa, enquanto o cão esfregasse o olho.

Todo santo dia, quer chovesse, quer fizesse sol, ia Ana comprar a janta de suas criações. Bodinho nem precisava perguntar o que queria ela. Precisasse de querosene para as lamparinas, voltava noutra hora ou dormia no escuro. Carecesse de alimento para si, passava fome ou dava outra viagem, embora os cachorros da rua vivessem a espiá-la do rés do chão.

– Cambada de vagabundos!

Como não se vissem frente a frente desde os tempos das sacanagens, Pêu coçou o queixo, lambeu os bigodes sujos, futricou os ovos e não pediu cachaça: se Aninha comia milho.

Toda a raça do Pirambu sabia de sua predileção por galinhas. Na bodega de Bodinho só ela comprava milho. Todo dia, tarde cedo. Criava as bichinhas com fartura e amor, sem sovinice de nada. Muitas. E só não possuía o maior galinheiro do mundo porque precisava vender sempre uma para dar de comer às outras. A preço de banana, mais baratas do que bolo em fim de festa. Não, nunca comeu sequer o pé de uma.

– Deus me livre!

Ri Pêu da sabedoria da anã e pede uma talagada. Desapeia do caixão e encosta-se à antiga companheira de sacanagens detrás dos morros de areia. O bodegueiro demora-se a ver os olhos reluzentes de Ana, aquele fogo a queimar seus jornais velhos, aquela pua a furar o outro freguês.

Já ida pela casa dos trinta, a anã não rompia as fronteiras do metro, mas a cada dia se alargava, feito um saco de algodão. Sua boca armazenava todos os ódios do Pirambu e, quando não suportava mais contê-los, não escolhia as caras e cuspia insultos até contra os vira-latas.

– Perdeu alguém parecido comigo, baitola?

Entrega Bodinho o embrulho de milho, apanha a garrafa, sem despregar da anã os olhos, derrama veneno no copo e levanta a taça de vencedor.

Nenhuma palavra sobe do porão de Ana, que agarra sua ração, agacha-se e a deposita ao pé do balcão. Pêu despeja goela a dentro toda sua vida e solta um grito de terror.

Em sua virilha, um punhalzinho enferrujado e cheio de ódio acabava de se cravar.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Nilto Maciel

Nilto Fernando Maciel (Baturité, 1945) ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará em 70. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 77. Regressou a Fortaleza em 2002. Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais: “Brasília de Literatura”, 90, com A Última Noite de Helena; “Graciliano Ramos”, 92/93, com Os Luzeiros do Mundo; “Cruz e Sousa”, 96, com A Rosa Gótica, todos na categoria romance nacional, além de prêmios no gênero conto. Participa de diversas coletâneas, entre elas Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, org. por Rinaldo de Fernandes, 2006, e 15 Cuentos Brasileros/15 Contos Brasileiros, edición bilíngue español-portugués, org. por Nelson de Oliveira e tradução de Federico Lavezzo. Córdoba, Argentina, Editorial Comunicarte, 2007. Publicou novelas, romances, poesias, ensaios literários, além dos livros de contos Itinerário (1974), Tempos de Mula Preta (1981), Punhalzinho Cravado de Ódio (1986), As Insolentes Patas do Cão (1991), Babel (1997), Vasto Abismo (1998), Pescoço de Girafa na Poeira (1999) e A Leste da Morte (2006).

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

José Inácio Vieira de Melo (Poesias Escolhidas)

CARAMUJOS

Os caramujos da Ribeira do Traipu
mugem em um tempo que se foi.

Os caramujos eram os bois da minha boiada.
Quando os invocava era prontamente atendido,
mas eles tinham lá seus nomes e seus matizes
(e ali já estava o poeta batizando as coisas):

e vinham Manjerona, Paixão, Diamantina,
Fachada, Chuvisco, Carnaval, Meia-Noite,
e vinha toda a vacaria de caramujos
encantar aqueles dias com seu leite de sonhos.

De repente, dava um redemoinho
na minha cabeça de vento
e já era outra história:

Ivaldo, numa atitude inaugural,
– possível apenas para quem goza
da sabedoria dos cinco anos –
bradava para que fossemos
ouvir o mar nos caramujos.

[A terceira romaria – livro inédito]

DESERTO

Nem o deserto do Saara mais todo o Sertão
são desertos quanto o eu deserto.

E segue o peregrino na aridez dessa demência:
deserto dia – noite deserta: a mesma intensidade.

E de repente vejo o que não vejo,
o voo que sempre levanto e nunca voei,
e assomam os meus fantasmas:
anjos e demônios e poetas e vampiros,
putas e bruxas e santas e fadas,
deus e deuses e musas e a mulher,
vaqueiro e cavalo e gado e cachorro,
música toada, música embolada, música zoada.
E Moisés Vieira de Melo – meu avô –
tangendo esses bichos todos
dentro do deserto do romeiro de mim.

E os desertos cantam na imensidão do nada,
e canto este canto meu (porque de dentro):
eu não sabia do caos do eu,
eu não sabia da miragem que tudo é,
eu não sabia da angústia,
eu não sabia do gozo.
Eu, sabiá...

O deserto de mim diante de todos os olhos.

E assim segue o peregrino
– nessa romaria que o sufoca e o deleita –
em busca de oásis,
abrigo de mim.

O peregrino – deserto a buscar.

[Decifração de Abismos]

ESPELHO

Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles

Que ninguém se engane:
os caminhos são tortos

E no sertão do ser
– deserto e mar
nossos de cada dia –
o outro nome do nome:
HOMEM

E no oráculo antolhar:
a imagem é a dor escarlate
de um labirinto
onde vago vago

E indaga o oráculo:
– Qual a tua graça?

Como o quem? Saber como?
Tal Torquato com fé ficciono
e confecciono a palavra

Poeta há de ser a graça
E indaga o oráculo:
– O que fazes de teus passos?

O que dizer dos rastros
conquanto já não são meus?
Como aquele Minotauro cego
sigo pela noite
guiado pela menina poesia

E o oráculo:
– Não haverá mais tempo
apenas a poesia:
Mãe e Manhã

[Códigos do Silêncio]

MATURI
para Cássia

A primeira vez não tinha paredes,
havia um voyeur: a Lua.

Um cajueiro frondoso
abençoava aquela descoberta
farfalhando suas folhas,
e das folhas secas
que buscavam a terra: o colchão.

E tudo conspirava para o êxtase:
os olores dos cajus,
o agridoce gosto da deusa morena:
musa canora que entoava gemidos
– cantigas sopradas pelos deuses.

Na primeira vez,
senti, pela primeira vez,
o mistério das estrelas.

E as vacas pastavam
na mansidão dos campos,
na imensidão da noite.

[A terceira romaria – livro inédito]

EPITÁFIO PARA GUINEVERE

Cavalos já foram pombos
de asas de nuvem.
Domingos Carvalho da Silva


Meus cavalos choram por ti, égua de olhos azuis.
Não mais invadirei o vento montado no teu galope.

Que fique inscrito na tua lápide
o verso de lágrimas dos meus cavalos.

Para tu, que trazias os céus dentro dos olhos,
o relinchar da paixão pagã
dos cavalos que trago dentro de mim.

[Decifração de Abismos]
MÃE FILHA

Ela não oferecia pão a um carnívoro,
ela era a carne e a caridade,
era a ovelha dos desgarrados.

A cruz recebia entre as pernas,
o seu sino era no meio das pernas,
ela era a sua própria igreja.

Ela tinha a ferida e a cura,
e todos os homens salivaram ali,
e todos ganiram o lamento do sino.

Era a vida d'A Casa das Primas,
ninguém jamais saiu daquele templo
seco em seus apetites.

Para uma sede, outra sede maior;
para a solidão, os sentidos de Mãe Filha
e de todas as suas discípulas – as primas.

[A terceira romaria – livro inédito]

Fonte:
Goulart Gomes (organizador). Antologia do Pórtico.

Nelly Novaes Coelho (Conto de Fadas & Conto Maravilhoso)

Tela de Salvador Dali
Desse imenso caudal narrativo (hoje transformado ou simplificado em literatura folclórica ou literatura infantil), duas formas destacam-se, não só pela divulgação que alcançaram através dos séculos, mas principalmente pela identificação feita entre uma e outra, como se ambas tivessem a mesma natureza. O que não é verdade.

Trata-se do Conto de Fadas e do Conto Maravilhoso, formas de narrativa maravilhosa surgidas de fontes bem distintas, dando expressão a problemáticas bem diferentes, mas que, pelo fato de pertencer ao mundo maravilhoso, acabaram identificadas entre si como formas iguais.

Nosso propósito, aqui, será portanto deslindar os possíveis fios que se emaranharam em torno delas e tonar visíveis as duas atitudes humanas por elas expressas, atitudes que se vêm sucedendo na vida e na Literatura, desde o princípio dos tempos em nossos dias. Referimo-nos à luta do eu, empenhado em sua realização interior profunda, ao nível do existencial, ou em sua realização exterior, ao nível do social.

Embora uma não anule a outra (muito pelo contrário, ambas devem completar-se em uma realização integral), não podemos esquecer que, por temperamento ou personalidade, cada indivíduo, consciente ou inconscientemente, privilegia uma delas, e é essa escolha que orienta sua luta pela vida. Daí a atualidade visível no conto de fadas e no conto maravilhoso e a importância de os redescobrirmos desde as raízes.

Entretanto, por um simples confronto entre a Bela Adormecida, a Bela e a Fera ou Rapunzel, de um lado, e O Gato de Botas, o Pescador e o Gênio o Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, de outro, nota-se que há uma diferença essencial. Diferença quase inexistente ao nível da forma (pois todos pertencem ao universo do maravilhoso), mas que pode ser facilmente percebida ao nível da problemática matriz de cada conto. Indo direto a essas «diferenças«, temos:

As narrativas do primeiro grupo são contos de fadas. Com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o maravilhoso), seus argumentos desenvolvem-se dentro da magia feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida, etc.) e têm como eixo gerador uma problemática existencial...

...No segundo grupo, temos os contos maravilhosos. São narrativas que, sem a presença de fadas, via de regra se desenvolvem no cotidiano mágico (animais falantes, tempo e espaço reconhecíveis ou familiares, objetos mágicos, gênios, duendes, etc.) e têm como eixo gerador uma problemática social (ou ligada à vida prática, concreta). Ou melhor, trata-se sempre do desejo de autorealização do herói (ou anti-herói) no âmbito socioeconômico, através de conquista de bens, riqueza, poder material, etc.

Enfim, os contos de fadas e os contos maravilhosos expressam atitudes humanas bem diferentes diante da vida. Optar por uma ou outra é questão do quê? Destino? Personalidade? Circunstâncias de vida? Meio social? Influências culturais? Quem o pode responder com exatidão? A verdade é que através dos milênios as duas atitudes vêm tendo expressão na Literatura, porque vêm sendo vividas na vida.

Fonte:
COELHO, Nelly Novaes. O Conto de Fadas. SP, Ática, 1991.

Adelmo Oliveira (Cântico para o Deus dos Ventos e das Águas) III

ESTRELA DE NATAL
-
Quero ficar em silêncio
Na correnteza da tarde
Vendo a lágrima do tempo
Vertendo na minha face

– É um rio escuro e miúdo
Que em mim profundo deságua
Só meu lábio seco e mudo
Ouve o gemido que passa

Passa. E cada gota líquida
Em cristal se petrifica
Transparente como a vida
Que na morte se eterniza

Mas, dentro do lago, o poço
Dentro do céu, a medida
Espalha tições de fogo
Em teias de fantasia

Veste seu manto de chamas
– De penas bem coloridas
Faz de seu brilho esperança
De um pouco de cada dia

Põe labaredas nos olhos
Sai pelo mundo e caminha
E longe, já sol posto
Desaparece sozinha

MEU NATAL DE SEMPRE
-
Ficou na sombra a casa onde morei
As árvores do quintal, a ventania
E eu, pequeno ainda, me recordo
Quanto chorei, quando cantar devia.

Ficou no céu o tempo que sonhei:
Sapato de verniz dependurado
Num saco bem vazio de esperanças
Qual pacote amarrado pelo vento.

Não finjo o sonho em que me sustentei
No portal da janela de meu quarto:
As bolas de borracha coloridas
(Revólver de brincar de detetive).

Meus irmãos já tiveram as mesmas coisas,
Meus amigos, também, o que não tive.
A vida dá presente todo dia:
A dor que sinto agora, não sentia.

Ficou no rosto o traço que não tinha:
A solidão que sopra lá de fora.
Multiplico os minutos pelas horas
E tenho as mesmas horas repartidas.

Ganho, então, meu presente de lembranças:
Uma flor na lapela e meu cansaço.
Costuro mágoas e as transformo em ânsias
E corto a fantasia em mil pedaços.

O MENINO E OS PÁSSAROS
Para Tude Celestino
-
Certo que eu fosse menino
Vinha no sopro do vento
Pegar esses passarinhos
Nos quintais desse convento

Pulava o muro do canto
Pé descalço de mansinho
– Atrás do tamarindeiro
Vinha de corpo escondido

Pisava na grama verde
E olhava os galhos e os ninhos
– O coração sacudia
No céu que a tarde continha

Nunca vi tanto assanhaço
Bem-te-vi papo amarelo
Rolinhas gordas de pena
E os canarinhos da terra

(Minha capanga de balas
Meu bodogue de borracha
Meus olhos cheios de sonho
Minha alma cheia de nada)

Certo que eu fosse menino
Certo a saudade matava
Numa cova tão profunda
Pra não me banhar de lágrimas

POEMA ANTIGO
-
A lua no meu quarto invade
Branca, molhada de sereno
Entra na memória um caminho
Que termina onde fui pequeno

Vaga, de luz opala verde
Entra devagar pela rua
Do menino de calça curta
– Que idade eternamente nua

A vida, a vida passa mesmo
Nem sei quando isto aconteceu
Só sei que a lua vem bonita
Dizer que a infância já morreu

SEGUNDA CANÇÃO DA BEIRA D’ÁGUA
-
Cada poema tem seu dia
Na claridade da manhã
Na face lírica das águas
Na casca loura da maçã

Cada poema tem seu dia
No prisma, no sinal da cruz
Na estrela do mistério vago
Na vida das cores azuis

FRAGMENTOS DE UM SONHO
-
Sou itinerante
Não vou de encontro às distâncias
Minha alma é um vestir-se de quatro paredes

Se mudo de roupa todo dia
Ela se renova
Todas às vezes que miro o espelho

Sou um rio caminhando dentro de mim
Varado de peixe e moluscos
Líquido: olho-me de cima para baixo
Parado: beijo as flores do lago
Corrente: pinto as cores da manhã

TRAVESSIA
-
A tarde cai sobre as águas do Paraguaçu
– Meu amor descansa sobre os ombros
– A montanha descansa sobre os vales
A própria natureza se imagina
Uma visita na véspera da primavera

O campo aberto não esconde as amapolas
E ninguém espia o vigia na estrada
– O rio manso é uma longa espada de sol

(Não compro ilusões
Nem vendo alegrias
Não piso em flores
Nem espalho fantasias
Geradas pela máquina do tempo)

A tarde cai sobre as águas do Paraguaçu
– A noite chega na arquitetura das serras
E desenha potros de asa e cavalos de sombra

Dentro da noite
A madrugada espera
Dentro da madrugada
Os frisos vermelhos da aurora

CONFISSÃO
-
Tua palavra é um código
Que sai
de tua boca
E queima os meus ouvidos

Teu gesto é um crucifixo de sinais
Que me converte
A uma seita antiga
Para o culto de deuses invisíveis

Não me toques
Te peço
Não me toques

Meu violino está surdo
E nada do que há em suas cordas
Poderá ser para sempre revelado

Vês? (Não te espantes)
Meus olhos estão secos
De tanto navegar
Por lugares desconhecidos

Minhas mãos estão crespas
e apalpam
Os muros de silêncio
Que me perseguem
Com inscrições hierográficas

E eu te digo
O raio
que tanto fere
me ilumina

Até a flor
que não tem espinho
me crucifixa

Mas teu corpo é uma ânfora dourada
Que não se parte
E brilha nos arabescos
De ritmos orientais

Aproxima-te
Mas não me toques
Deixa que eu me vingue de olhar para o infinito

VARIAÇÕES DO DIA
-
Antes de dormir, eu sonho
Antes de acordar, eu rio
Antes de dançar, eu tombo
Antes de fingir, eu crio

Antes de esperar, avanço
Antes de correr, tropeço
Antes de morrer, descanso
Antes de passar, trafego

Antes de partir, não fico
Antes de chorar, não quero
Antes de pensar, não minto
Mas, depois de amar, desperto

AMARALINA
-
Venho cortando o vento da avenida
A estrela assim não veio e a ventania
Sacode as ondas contra o rosto e a fria
Madrugada se esconde indefinida

Neste mar não existe maresia
Neste mar não há mito nem segredo
Não era a aurora a luz que pressentia
Entre as dobras da espuma no rochedo

Era a face que via contra o espelho
Era o perfil azul dos teus cabelos
Gravados na memória da retina

Venho cortando o vento da avenida
No silêncio dos passos e da vida
– A flor que fui buscar na Amaralina

A FLOR, A FLAUTA E O BANDOLIM
Para Raimundo Barros e Pedro Figueroa, Filhos de Orfeu-
Saio com uma flor pela varanda
E digo num sorriso de criança
– Se finjo num suspiro de alma pura
Que sou feito de corpo e de esperança

Se eu sinto, digo ao sol e digo à lua
E digo ao mar que azula este verão
Mas logo a melodia se desata
E solta ao vento as letras da canção

A flor, ora crisântemo, ora lírio
É flauta. É margarida do delírio
Ou ciúme das cordas da paixão

Esta czarda é louca e enluarada
Pinta com um bandolim a madrugada
– O amor de mais eterna perfeição

Fonte:
Adelmo Oliveira. Cântico para o Deus dos Ventos e das Águas. 1987. http://br.geocities.com/rsuttana/adelmo_cantico.pdf

Lucia Helena L.Santos Silva e Sueli Rocha (Contar histórias para promover leitura)

Era uma vez um menino que adorava ouvir histórias antes de dormir. A cada noite, um criado enchia sua imaginação de fadas, bruxas, dragões etc. O pequeno dormia feliz, exausto por vivenciar tantas aventuras, nas quais com certeza era sempre ele o herói, o vencedor. O menino era egoísta e, por mais que os amigos pedissem, não recontava a eles as histórias ouvidas. O tempo passou,o criado envelheceu, o menino cresceu e não quis mais saber de histórias. Eram outros os seus interesses, então. Já rapaz, apaixonou-se e quis casar. Um dia antes do casamento, o velho empregado foi ao quarto do noivo, ajudá-lo nos preparativos. Com surpresa, ouviu ruídos estranhos que vinham de um saco há muito esquecido atrás da porta. Veio-lhe à memória que aquele era o saco onde ficavam guardados os espíritos de todas as histórias que ele contava ao garoto, agora rapaz. Prestou atenção e ouviu que os espíritos das personagens que eram más planejavam uma vingança mortal àquele que, por egoísmo, manteve-os presos por tanto tempo. Os espíritos das personagens boas, por medo, mantinham-se calados. Usando de toda a sua experiência e sabedoria, o velho destruiu cada uma das armadilhas preparadas para o rapaz, matando até uma cobra escondida no quarto do jovem casal. A cobra foi o último recurso usado pelos espíritos maus em sua vingança contra o egoísta que os prendera durante tanto tempo. O criado contou então a todos sobre a vingança dos espíritos das histórias, esquecidos presos na velha sacola. Agradecido por ter sido salvo, o rapaz prontamente acreditou no que ouvira e, arrependido, prometeu que, de ora em diante, contaria muitas histórias. A cada história contada, os espíritos presos eram libertados para, felizes, povoarem a imaginação de outras pessoas.

Essa história (resumo do conto coreano "A sacola de couro", recontado por Zette Bonaventure, no livro "O que conta o conto?", publicado pelas Editoras Paulinas) nos faz refletir sobre quantos contos já não se perderam por falta de alguém que os contasse. Quem ainda se lembra de Pele de Asno, de A Moura Torta e das façanhas de Mata Sete? Esses e tantos outros estão à espera de serem servidos como um banquete a crianças ávidas de aventuras e emoções.

Esse conto nos remete também a uma outra reflexão: mudaram os tempos, mudam os costumes. À hora de dormir, o sono infantil era embalado por alguém de voz carinhosa que contava, contava e recontava mil e uma aventuras, abrindo as portas para o mundo da ficção. É evidente que poucos tinham criados contadores de histórias. Mas sempre havia uma avó, um pai, mãe ou tia a fazer, através da oralidade, o primeiro contato da criança com o mundo da fantasia. E era essa fantasia que possibilitava à criança, sem sair do lugar, descobrir outros lugares e outros tempos, vivenciar as mais diferentes emoções (o riso, o choro,a raiva, a tranquilidade), descobrir soluções para os próprios conflitos, viver outros papéis, identificar-se com personagens, enfim abrir os olhos para a vida e ver a vida com outros olhos.

Mudaram os tempos, mudam os costumes. Hoje, poucas famílias conservam o antigo hábito de contar histórias para as crianças à hora de dormir. Para quem ficou a função de provocar a imaginação infantil? Não queremos entrar na polêmica sobre o papel da televisão, nesse aspecto. A nossa preocupação é que a escola, que também deveria suscitar o imaginário infantil, dedica a essa tarefa um tempo insuficiente para obter algum resultado minimamente satisfatório.

Acreditamos que o professor, enquanto verdadeiro agente da ação educativa, deve tomar para si a função de estimular a imaginação dos alunos contando histórias de maneira natural, e sempre, não apenas na restrita "hora do conto". Vários são os momentos propícios para isso: um fato é melhor entendido se acompanhado de sua história: a história das grandes descobertas e invenções, as lendas, a história dos vencidos, a história da matemática, da mitologia greco-romana, por exemplo, podem servir como elementos instigadores da imaginação do aluno, levando-os a questionar, a formular hipóteses, a inventar outras histórias.

Ao contar histórias, o professor estabelece com o aluno um clima de cumplicidade que os remete à época dos antigos contadores que, em volta do fogo, contavam a uma platéia atenta as histórias de seu povo, as origens das coisas, os costumes, os valores etc. Para que não precisemos inventar a roda a cada dia, é necessário que o patrimônio cultural que a humanidade acumulou durante séculos seja conhecido pelas novas gerações. E nada melhor do que contar histórias, para fazer reviver o que existe na memória coletiva. A esse respeito o escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu em A paixão de dizer/2:

"Esse homem, ou mulher, está grávido de muita gente. Gente que sai por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo México: o narrador, o que conta a memória, coletiva, está todo brotado de pessoinhas" (O livro dos abraços, L&PM).

É que, ao narrar um conto da memória coletiva, o professor/contador reativa uma cadeia de contadores de histórias que vem do início das civilizações até os nossos dias. É difícil imaginar, por exemplo, por quantas bocas passou o conto "Festa no Céu" (cujos registros em cerâmica e tapeçaria datam do século IV A.C., como relata Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque, em Kayuá - o dom da palavra, monografia não editada, 1998) para chegar aos nossos dias, contando uma história tão atual como a das artimanhas de alguém que quer entrar numa festa como "penetra", por não ter sido convidado. A voz do contador de história perpetuou esse e outros contos da tradição oral. Nas sociedades primitivas africanas, ainda não abrangidas pela escrita sistematizada, os contadores de histórias (os "griots"), considerados verdadeiras bibliotecas vivas, são poupados até das guerras "paraque continuem narrando as proezas dos povos africanos" (Barbosa, R. A., Bichos da África 2, editora Melhoramentos). A importância desses contadores de histórias é tal que, segundo Alex Haley, em Negras Raízes (editora do Círculo do Livro), "quando um griot morre é como se toda uma biblioteca tivesse sido arrasada pelo fogo".

Mudaram os tempos, mudam os costumes. A platéia não se reúne mais em volta do fogo, mas numa escola: as histórias saídas da boca do velho contador foram parar dentro dos livros. Os contadores de histórias, no entanto, continuam sendo cada vez mais necessários. Por quê? É preciso lembrar que os livros só são úteis se existissem leitores. A escola, preocupada com a ação de ensinar a ler, relegou a um último plano a formação de leitores, assunto complexo, mas que certamente passa pelo estímulo à leitura pelo simples prazer de ler. Ler pelo gosto de ler, sem cobrança maior que a de deixar a imaginação correr solta para criar outros mundos. Então os contadores de histórias, os professores contadores de histórias são necessários, sim. São eles o elo entre a criança e o livro. Enquanto ouve uma história, o aluno transforma-se em produtor de texto, em co-autor da história que lhe é contada, pois com as pistas que a voz do contador lhe oferece, desenha na cabeça épocas, lugares, personagens. E a voz do contador, atenta à reação da platéia, alteia-se, sussurra, faz pausas, treme, transforma a leitura do conto num mágico momento de cumplicidade. Terminada a história, o ouvinte quer prolongar seu prazer de ouvir. É a hora em que o professor contador deve promover o encontro entre o aluno e o livro onde está a história contada; é a hora de ler o registro escrito e a ilustração, é a hora de confirmar/negar as hipóteses levantadas enquanto a história era ouvida. É também a hora em que o ouvinte/leitor percebe que pode reler os trechos de que mais gostou, pular páginas, ler uma frase aqui, outra ali, enfim, pode escolher o rumo de sua leitura e ir em busca de outras histórias do mesmo autor ou de outras histórias do mesmo gênero, trilhando os caminhos para a sua formação de leitor crítico, constatando, cotejando, transformando, como diz o Prof. Dr. Ezequiel T. Silva, em O ato de ler (editora Cortez: Autores Associados).

O que temos comprovado na prática é que, depois de ouvir uma história bem contada, a reação imediata do aluno é pedir o livro para ler. O professor que se preocupa com a promoção da leitura deve disponibilizar para os alunos livros dos mais variados gêneros e autores, gibis, jornais e revistas, de forma a possibilitar-lhes a ampliação do repertório enquanto leitores.

O ser humano é, por natureza, contador de histórias. Algumas técnicas e vivências podem ajudar o professor a utilizar bem essa característica que lhe é própria. Dessa forma, a atividade de contar histórias pode se transformar num importantíssimo recurso de formação do leitor para toda a vida e não apenas para a escola.

Fontes:
Leia Brasil
Imagem = http://aycorrea.blogspot.com

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Edmar Japiassú Maia (Barafundas Natalinas)

A minha casa é uma baderna só,
por conta do Natal que se aproxima.
Um penico – de estilo rococó –
“ornando” a sala, atesta o intenso clima...

Exalando um aroma de dar dó,
a íntima peça, lá da mesa em cima,
por sua higiene e o porte do “fiofó”,
a dona denuncia: a gorda prima!

Junto às travessas para as rabanadas,
as tigelas dos gatos são lavadas,
escorridas e envoltas num filó...

Já pinguço, entre frascos e risoles,
vovô nota o sumiço, em meio aos goles,
de um material pra exame...de vovó!
- - - - - - - - - - - - -

É um desejo que me abrasa
no Natal que se avizinha:
de que a festa em sua casa
não seja a cópia da minha!

Feliz Natal!   
-
Fonte:
O Autor

Francisco Pessoa (Caderno de Trovas)

-
A cobiça sendo um vício
e a renúncia salutar,
nosso menor sacrifício
é saber renunciar.

Aconteça o que aconteça
eu nunca vou desistir…
por trás da nuvem espessa,
tem sempre um sol a sorrir!

À minha mulher confesso:
- Na atual encarnação,
para apressar teu progresso
sou a tua expiação!.

Aquele pé de carvalho
plantado em minha lembrança,
cintila gotas de orvalho
quando me vejo criança.

À tardinha, todo dia,
assisto o chegar do trem,
esperando por Maria
só que Maria não vem.

A poça d’água na rua
de repente se prateia…
espelho tosco da lua
em noite de lua cheia.

As estrelas não fenecem
perante à luz que encandeia,
mas docemente adormecem
se a noite é de lua cheia.

Com mais acerto que erro
sem querer ser um vestal,
só mesmo em convite-enterro
sou notícia de jornal!

De forma vil, ilusória,
o falaz aos ventos, berra,
cantando sua vitória
sem ter terminado a guerra!

Eis o grande desafio
para quem se diz cristão:
ter que dizer, renuncio,
em favor de um outro irmão!

É quando a noite se enluta
envolta num intenso véu,
que a estrelinha diminuta
empresta luz para o céu.

Esplendor tens, de tal monta,
quando passeias na praça,
que a lua se esconde, tonta,
atrás da nuvem que passa.

Esta vidinha da gente
tal a serra é mesmo assim…
ora subida ou vertente
num sobe e desce sem fim.

Faça-se a luz! E ao fazê-la
com muito amor e carinho,
Deus colocou uma estrela
a clarear meu caminho.

Feliz da vida se logra
o Zeca exibe o caneco,
que ele trocou pela sogra
na feira de cacareco.

Homem com muitos trejeitos,
mulher com muita feiúra
para mim são dois defeitos
que nem com reza tem cura!

Já que não posso mantê-las
ao alcance do meu braço,
eu canto minhas estrelas
em cada verso que faço.

Mãe é palavra seleta
por si só uma obra prima,
pois mesmo o maior poeta
procura e não acha rima!

Mesmo que lhe desagrade,
dentre os sabores prefira
o amargo de uma verdade
ao doce de uma mentira.

Minha mãe, quanta lembrança,
quem me dera tal jaez…
eu voltar a ser criança
começar tudo outra vez.

Minhas lágrimas vertidas
por entre dobras de rugas,
são saudades incontidas
do meu passado... são fugas!

Na avenida do fracasso
onde a humanidade avança,
em cada esquina que passo
eu planto um pé de esperança.

Não há placa de chegada
na minha estrada da vida…
faço de cada parada
novo ponto de partida.

Na solidão com frequência
escutamos uma voz…
deve ser nossa consciência
querendo falar por nós!

Nas veredas tortuosas
dessa vida em desalinhos,
nas retas eu colho as rosas
nas curvas tiro os espinhos.

Noel Rosa, quem diria,
sem cigarro e sem chapéu,
chegou só, sem parceria,
pra fazer samba no céu.

Noitinha volto da roça
e Rosa com seu pudor,
apaga a luz da palhoça
pra gente fazer amor.

Nos quatro dias de momo
ante tanta bebedeira,
eu estarei, não sei como,
quando chegar quarta-feira!

Nossas faces, pergaminho,
rastro do tempo que, algoz,
não apagou o carinho
que ainda existe entre nós!

Nossa vida não tem prazo
e tal o dia, é assim:
um surgimento, um ocaso,
que por acaso é sem fim!

Nos trigais do sentimento
que contra o vento eu transponho,
cozi o pão sem fermento
no forno quente de um sonho.

O amor seria fecundo
como tal se espalharia,
se toda mãe que há no mundo
tivesse um nome…Maria!

O intenso amor que nos une
e nos completa, querida,
faz a nossa vida imune
às incertezas da vida.

O inverno se me avizinha
e, no espelho, a contragosto,
vejo que o tempo caminha
deixando o rastro em meu rosto.

O meu amor quis safar-se
de mim, então me escondi;
de rosa era seu disfarce…
fui, sorrateiro, e a colhi!

O nosso amor passageiro
tal orvalho evaporou…
nasceu e morreu ligeiro,
que nem saudade deixou.

O pó que emana do giz
e o salário sem valor,
tornam bem mais infeliz
a vida do professor!

O sentimento de culpa
se esconde na consciencia
de quem fere e se desculpa
a suplicar inocência.

Os gritos de liberdade
abafados por censuras,
viram ecos de piedade
nos porões das ditaduras.

O sol, gigante centelha,
torna-se mais colossal,
quando nascendo se espelha
nas águas do pantanal.

Por mais que em ti não pensasse
uma lágrima escorria,
irrigando a minha face,
onde eu plantei nostalgia.

Por sofrer tantos açoites
nos meus momentos tristonhos,
pus redoma em minhas noites
para prender-te em meus sonhos

Quando o sol arquiva o dia
e o expediente se encerra,
ecoa a Ave-Maria
nos escritórios da serra!

Quantos banquetes regados
a vinho, trufa e salmão…
quantos irmãos relegados
sem água, sem luz, sem pão!

Quem diz ter brilho e alardeia
desdenhando o semelhante,
esquece que a lua cheia
tem seus dias de minguante!

Quem faz da vida um disfarce
e finge viver a esmo,
de tudo pode safar-se
mas não engana a si mesmo!

Quem não quer vencer a estrada
como faz o peregrino,
dobra sempre a esquina errada
na contramão do destino.

Saudade é o tempo guardado
dentro do peito da gente...
Nó que se dá, no passado,
e se desfaz no presente.

Sem usar pincel ou tinta
apenas com seu clarão,
a lua cheia repinta
as veredas do sertão.

Soluça vazia, a rede,
o armador emudeceu,
marcas de pé, na parede,
choram tanto quanto eu!…

Subo às nuvens… fantasia…
e para o amor espalhar,
solto minha poesia
com rimas soltas ao ar.

Todo indivíduo que é tolo
mas que de sábio se arvora,
é tal um pão sem miolo…
só tem a casca por fora!

Vai estudante, buscar
conhecimento fecundo
pois, és a pedra angular
na construção do teu mundo!

Ferdinando Fernandes (Caderno de Trovas)

-
A boa fada da sorte
Te pôs um dia a meu lado;
Dizendo que só a morte,
Faz este amor acabado.

A chorar vivi cantando
Cantando vivo a chorar,
Se eu a cantar vou chorando
A chorar quero cantar…

Alma de corpo franzino
Anjo ridente dos céus,
Sofres já de pequenino
Como sofrera teu Deus.

Andorinha que partiste
Pra terras de mais calor;
Leva minha alma triste,
Que anda à procura de amor.

Ao ver-te bailar contente
Com um filho no braçado,
Eu recordo docemente
Loucuras de ano passado…

Arranjei-te sem saber
Pensando a sorte encontrar;
Hoje mesmo sem te ver,
Fico cheio de te olhar.

A saudade é lenço branco
Que nos chama sem parar,
O sentimento mais franco
Que muito diz sem falar.

A sonhar juntos, Maria
Fizemos o arraial,
E nos folguedos do dia
Fizemos fogueira igual.

Caminhemos mão em mão
Fulcro de amor e alegria;
Só assim no coração,
Há Natal em cada dia!!

Cobrir crianças despidas
Tornar o mundo igual,
Cativar almas perdidas
Seria o meu ideal…

Conta lá os teus segredos
Loucuras… horas a fio;
A água sai dos rochedos,
E vai cantando até ao rio.

Cravos vermelhos à porta
Mangericos na sacada,
Mas se a fogueira está morta
Que vale a cinza apagada.

Criança, anjo sagrado
Sem rua sem lar nem pais,
Serve pro homem malvado
Em seus fins materiais.

De pequeno desconheço
Maldades que a vida tem;
Agora que a conheço,
Vivo nela com desdém.

Deves ouvir meu conselho
Quando te julgas um santo;
Olha-te bem ao espelho,
E depois despe o teu manto.

Dizes ser rico e nobre…
Esquece lá a fantasia,
Pois a fogueira do pobre
Dá mais calor e alegria.

Dizes te julgas perdida
Pra mim tens tanto valor,
Pois quem aquece outra vida
Tem que ter muito calor!

Em cada dia que passa
Mais vergonha tenho eu,
De ser fruto desta massa
Que em mim encarneceu.

É melhor comer o pão
Embora duro que seja,
Que ser na vida ladrão
E deitar fora o que sobeja.

Em quatro linhas ficou
Tantos sonhos e magias;
Que no teu peito moldou,
Aquilo que não sabias…

Esse beijo ainda gritante
Em quatro lábios ficado;
Ainda lembra constante,
As loucuras do passado…

Esta dor que atormenta
Este meu peito em saudade.
É choro que se lamenta
Dos tempos da mocidade…

Eu nascera só pra ti
Na vida que me foi dada!
Fogueira que eu revivi,
Com cinza quase apagada.

Eu vivi triste na vida
Destino que Deus me deu,
Foi de uma alma sentida
Que a alegria nasceu!

Foi nas urzes do caminho
Que eu vira o trevo feliz,
Não o quis, fiquei sozinho
A sorte só eu a fiz…

Fui à fonte para te ver
E quando lá te encontrei,
Depois de tanto beber
Com outra sede fiquei…

Fui primavera ridente
E hoje que não sou nada;
Sou pobre que ri contente,
Na vida que me foi dada.

Hoje estás abandonada
Só por loucuras de amor.
Mas a rosa por cheirada,
Nunca perde o seu valor!

Já basta o que tem por sina
A vida do pobrezinho…
O homem ainda lhe ensina
A ser trapo do caminho!

Lágrima caída no rosto
Dos teus olhos cor do mar;
Lembra a vida em sol posto,
Saudade sempre a chamar…

Mentiras que o outro diz
Não acredites amor;
Pois planta sem raíz,
Não alimenta a flor.

Meu amor de mim tem dó
Sou coração enjeitado…
Por fraca que seja a mó
Dá sempre o milho ralado.

Meu amor olha pra mim
Preciso do teu sorrir,
Como a rosa no jardim
Do sol para florir.

Morena que vais pra fonte
De cantarinha na mão;
Choras tristezas pelo monte,
Das saudades que lá vão.

Nada há que determine
Os traços que a vida tem;
Nem há sol que ilumine,
O negrume do desdém.

Na farsa da ilusão
Tudo anseias com fervor;
Podes comprar a razão
Mas não compras o amor.

Não dês esmola por vaidade
Inda que seja um vintém,
Podes ferir sem maldade
Aquele que nada tem…

Não escrevo para entreter
Mas escrevendo a dor acalma.
Nunca se pode esconder,
Tristezas que vem da alma.

Não me olhes descontente
Pelos meus loucos folguedos;
O rio corre contente,
Sem dar contas aos rochedos.

Não penses que não te amo
Porque te não presenteio,
Pois o amor é um ramo
Que vive no nosso meio.

Não posso gostar de alguém
Só porque gosta de mim.
A primavera não vem
Só porque existe um jardim.

Não procures viver só
Faz do pobre companheiro,
Pois que seria da mó
Se não tivesse o moleiro…

Não te julgues desgraçada
Se a má sorte te persegue;
Existe pior calçada,
Que aquela que agente segue.

Não venhas flores um dia
À minha campa depôr,
Pois tudo foi fantasia
Que me falava de Amor.

Nessa noite de ilusão
A dançar te conheci,
E ao sentir teu coração
Logo fogueira acendi.

Nesta dor feita alegria
Algo de estranho acontece,
Ante meus olhos é dia
Dentro em meu peito anoitece.

No altar desse teu peito
É minha prisão de amor,
É capelinha que enfeito
Com somente uma flor.

No choro do meu olhar
Há risos em gargalhadas;
É a saudade a mostrar,
As saudosas madrugadas.

No mundo vivi sonhando
E a sonhar envelheci,
E a sonhar vou ficando
Pequeno como nasci.

No parlamento da vida
É só mísera ilusão…
Depois da lista escolhida,
Ainda é maior o ladrão!

No parlamento da vida
Todos querem mandar mais…
Pois a seara perdida,
Faz tentar mais os pardais.

No teu regaço dormi…
Como em cama de jasmim
Foi no teu sonho que eu vi,
O quanto gostas de mim!

Nunca odeies meu amigo
Mesmo que tenhas razão;
Pois não é só o mendigo,
Que necessita de pão.

Nunca sonhei ilusões
Riquezas…luxos sem fim;
Pois os mais belos brasões,
São os teus olhos pra mim.

Nunca te esqueço meu bem
Como mais terna donzela.
Primavera vai e vem,
E a rosa espera por ela!

Nunca te julgues vencida
És um anjo aos olhos meus.
Mesmo uma filha perdida,
É sempre filha de Deus.

Ó belo trevo da sorte
Quem foi que te semeou?…
Talvez alma de má porte
E nunca mais te encontrou.

O choro que existe em mim
Nem sempre é feito de dor,
Nem sempre a vida tem fim
Quando acaba um grande amor.

O homem tanto promete
E nunca cumpre o que diz,
E dos erros que comete
Não quer ser ele o juiz.

Olhei pra ti com desejo
E com desejo fiquei;
Pois nesse rosto que vejo,
Está o sonho que sonhei.

Olhei-te de olhos fechados
De olhos abertos fiquei;
Nesses teus lábios rosados,
Ficou o que desejei.

Olho na vida o passante
Meu irmão de cada hora,
Meu companheiro errante
Ferido com a mesma espora.

O manjerico velhinho
Outra vez reverdeceu,
Mas está morto o teu carinho
Esse pra sempre morreu.

Ó meu amor, teu dançar
Tem graça tem alegria,
Pode a roda cheia estar
Mas sem ti está vazia.

O pobre que nada tem
Que na vida não tem norte,
Não dá contas a ninguém
Quando lhe chegar a morte.

O poeta é mensageiro
Na luta pela igualdade…
Luta sempre companheiro
Em abraço de amizade.

Ó rio de água serena
Que vais chorando pro mar;
Ao chorares a tua pena,
Chora também meu penar.

O trevo nasce no prado
Sem ninguém o semear,
A sorte não é mercado
Que se consiga comprar.

Porque nasci afinal…
Neste monturo sem vida,
Só vi choros, só vi mal
Só vi peitos sem guarida.

Por ti chorei, e afinal
Meu pranto nada valeu,
Que importa um amor leal
Se outro amor nunca nasceu.

Possuir a felicidade
É um sonho tão profundo…
Que até penso com saudade
Que não existe no mundo.

Primavera é sempre igual
Todos anos traz flores,
Mas a vida tem final
Leva consigo os amores.

Proibir a mendicidade…
Faz o homem sem pensar,
Mas não proíbe a caridade
Nem a vontade de dar.

Prometes-te e não cumpris-te
Sofre alguém esse teu porte;
O coração que feris-te,
Te pede contas na morte.

Quando eu um dia me for…
Não me chores, minha querida;
Pois quem morre por amor
Fica sempre nesta vida!

Quem me dera ser a lua
Num vaivém sempre a rodar,
Iluminar tua rua…
E no teu quarto espreitar.

Quero levar a saudade
Quando desta vida for…
É sonho da mocidade
Que sempre falou de amor.

Repara bem ao dançares
Que não te calquem os pés,
E se de par tu trocares
Podem te dar pontapés.

Risonhos dias vivi
Na vida que me foi dada,
Mas hoje já tudo esqueci
Desse sonho que foi nada.

Rosa branca que venero
Neste jardim de saudade;
És o amor mais sincero,
Que ficou da mocidade.

Se a desgraça fosse pão
Que a todos fome mata-se,
Eu não teria um irmão
Que na vida mendigasse.

Se a fogueira se apagou
Não te importes meu amor,
Outro fogo começou
Que dá muito mais calor.

Se a lei tudo castiga
Eu não sei porque razão…
Ou tudo é canto ou cantiga
Pra todos comer o pão.

Se algo sofri não sei quanto
E não sei quando nasci…
Pois tudo hoje é só pranto
Da mentira em que vivi.

Se a saudade é letra morta
Não o posso afirmar…
Só sei que me bate à porta
Mesmo sem eu a chamar!

Se a sorte nasce no prado
Sem ninguém a semear;
Triste sina este meu fado
Não consigo encontrar.

Se na vida não fui nada
Nada me deram pra ser,
Nasci de uma vida errada
Culpa teve o meu nascer.

Se o Sol tudo aquece
Só o comparo então;
Ao amor que se merece,
E aquece o coração.

Ser bem pobre e não ter nada
É dom que Deus nos legou;
Quando a vida terminada,
Vai cantar o que chorou.

Sonhando pela vida afora
Saudades feitas por mim…
Mas só me apercebo agora
Que este sonho está no fim.

Sonhei contigo, e a sonhar
Corri distâncias sem fim…
Pois só sei que ao acordar,
Estavas pertinho de mim.

Sou filho que por desgraça
Nada tenho pra comer,
Se ás vezes riu por graça
Sou hipócrita sem querer.

Tempo que passa é saudade
De algo que fica chorando.
São sonhos da mocidade
Que ficam por nós chamando.

Tudo lembro com saudade
Dos tempos que já lá vão,
Mas só vejo a bondade
Distante do coração.

Tu me deste a luz da alma
De um sonho quase acabado;
Hoje te oferto a vida calma,
Que abraçamos lado a lado.

Um português a cantar
Faz de uma trova canção,
Depois do verde provar
Canta por uma Nação.