ESTRELA DE NATAL
-
Quero ficar em silêncio
Na correnteza da tarde
Vendo a lágrima do tempo
Vertendo na minha face
– É um rio escuro e miúdo
Que em mim profundo deságua
Só meu lábio seco e mudo
Ouve o gemido que passa
Passa. E cada gota líquida
Em cristal se petrifica
Transparente como a vida
Que na morte se eterniza
Mas, dentro do lago, o poço
Dentro do céu, a medida
Espalha tições de fogo
Em teias de fantasia
Veste seu manto de chamas
– De penas bem coloridas
Faz de seu brilho esperança
De um pouco de cada dia
Põe labaredas nos olhos
Sai pelo mundo e caminha
E longe, já sol posto
Desaparece sozinha
MEU NATAL DE SEMPRE
-
Ficou na sombra a casa onde morei
As árvores do quintal, a ventania
E eu, pequeno ainda, me recordo
Quanto chorei, quando cantar devia.
Ficou no céu o tempo que sonhei:
Sapato de verniz dependurado
Num saco bem vazio de esperanças
Qual pacote amarrado pelo vento.
Não finjo o sonho em que me sustentei
No portal da janela de meu quarto:
As bolas de borracha coloridas
(Revólver de brincar de detetive).
Meus irmãos já tiveram as mesmas coisas,
Meus amigos, também, o que não tive.
A vida dá presente todo dia:
A dor que sinto agora, não sentia.
Ficou no rosto o traço que não tinha:
A solidão que sopra lá de fora.
Multiplico os minutos pelas horas
E tenho as mesmas horas repartidas.
Ganho, então, meu presente de lembranças:
Uma flor na lapela e meu cansaço.
Costuro mágoas e as transformo em ânsias
E corto a fantasia em mil pedaços.
O MENINO E OS PÁSSAROS
Para Tude Celestino
-
Certo que eu fosse menino
Vinha no sopro do vento
Pegar esses passarinhos
Nos quintais desse convento
Pulava o muro do canto
Pé descalço de mansinho
– Atrás do tamarindeiro
Vinha de corpo escondido
Pisava na grama verde
E olhava os galhos e os ninhos
– O coração sacudia
No céu que a tarde continha
Nunca vi tanto assanhaço
Bem-te-vi papo amarelo
Rolinhas gordas de pena
E os canarinhos da terra
(Minha capanga de balas
Meu bodogue de borracha
Meus olhos cheios de sonho
Minha alma cheia de nada)
Certo que eu fosse menino
Certo a saudade matava
Numa cova tão profunda
Pra não me banhar de lágrimas
POEMA ANTIGO
-
A lua no meu quarto invade
Branca, molhada de sereno
Entra na memória um caminho
Que termina onde fui pequeno
Vaga, de luz opala verde
Entra devagar pela rua
Do menino de calça curta
– Que idade eternamente nua
A vida, a vida passa mesmo
Nem sei quando isto aconteceu
Só sei que a lua vem bonita
Dizer que a infância já morreu
SEGUNDA CANÇÃO DA BEIRA D’ÁGUA
-
Cada poema tem seu dia
Na claridade da manhã
Na face lírica das águas
Na casca loura da maçã
Cada poema tem seu dia
No prisma, no sinal da cruz
Na estrela do mistério vago
Na vida das cores azuis
FRAGMENTOS DE UM SONHO
-
Sou itinerante
Não vou de encontro às distâncias
Minha alma é um vestir-se de quatro paredes
Se mudo de roupa todo dia
Ela se renova
Todas às vezes que miro o espelho
Sou um rio caminhando dentro de mim
Varado de peixe e moluscos
Líquido: olho-me de cima para baixo
Parado: beijo as flores do lago
Corrente: pinto as cores da manhã
TRAVESSIA
-
A tarde cai sobre as águas do Paraguaçu
– Meu amor descansa sobre os ombros
– A montanha descansa sobre os vales
A própria natureza se imagina
Uma visita na véspera da primavera
O campo aberto não esconde as amapolas
E ninguém espia o vigia na estrada
– O rio manso é uma longa espada de sol
(Não compro ilusões
Nem vendo alegrias
Não piso em flores
Nem espalho fantasias
Geradas pela máquina do tempo)
A tarde cai sobre as águas do Paraguaçu
– A noite chega na arquitetura das serras
E desenha potros de asa e cavalos de sombra
Dentro da noite
A madrugada espera
Dentro da madrugada
Os frisos vermelhos da aurora
CONFISSÃO
-
Tua palavra é um código
Que sai
de tua boca
E queima os meus ouvidos
Teu gesto é um crucifixo de sinais
Que me converte
A uma seita antiga
Para o culto de deuses invisíveis
Não me toques
Te peço
Não me toques
Meu violino está surdo
E nada do que há em suas cordas
Poderá ser para sempre revelado
Vês? (Não te espantes)
Meus olhos estão secos
De tanto navegar
Por lugares desconhecidos
Minhas mãos estão crespas
e apalpam
Os muros de silêncio
Que me perseguem
Com inscrições hierográficas
E eu te digo
O raio
que tanto fere
me ilumina
Até a flor
que não tem espinho
me crucifixa
Mas teu corpo é uma ânfora dourada
Que não se parte
E brilha nos arabescos
De ritmos orientais
Aproxima-te
Mas não me toques
Deixa que eu me vingue de olhar para o infinito
VARIAÇÕES DO DIA
-
Antes de dormir, eu sonho
Antes de acordar, eu rio
Antes de dançar, eu tombo
Antes de fingir, eu crio
Antes de esperar, avanço
Antes de correr, tropeço
Antes de morrer, descanso
Antes de passar, trafego
Antes de partir, não fico
Antes de chorar, não quero
Antes de pensar, não minto
Mas, depois de amar, desperto
AMARALINA
-
Venho cortando o vento da avenida
A estrela assim não veio e a ventania
Sacode as ondas contra o rosto e a fria
Madrugada se esconde indefinida
Neste mar não existe maresia
Neste mar não há mito nem segredo
Não era a aurora a luz que pressentia
Entre as dobras da espuma no rochedo
Era a face que via contra o espelho
Era o perfil azul dos teus cabelos
Gravados na memória da retina
Venho cortando o vento da avenida
No silêncio dos passos e da vida
– A flor que fui buscar na Amaralina
A FLOR, A FLAUTA E O BANDOLIM
Para Raimundo Barros e Pedro Figueroa, Filhos de Orfeu-
Saio com uma flor pela varanda
E digo num sorriso de criança
– Se finjo num suspiro de alma pura
Que sou feito de corpo e de esperança
Se eu sinto, digo ao sol e digo à lua
E digo ao mar que azula este verão
Mas logo a melodia se desata
E solta ao vento as letras da canção
A flor, ora crisântemo, ora lírio
É flauta. É margarida do delírio
Ou ciúme das cordas da paixão
Esta czarda é louca e enluarada
Pinta com um bandolim a madrugada
– O amor de mais eterna perfeição
Fonte:
Adelmo Oliveira. Cântico para o Deus dos Ventos e das Águas. 1987. http://br.geocities.com/rsuttana/adelmo_cantico.pdf
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Quero ficar em silêncio
Na correnteza da tarde
Vendo a lágrima do tempo
Vertendo na minha face
– É um rio escuro e miúdo
Que em mim profundo deságua
Só meu lábio seco e mudo
Ouve o gemido que passa
Passa. E cada gota líquida
Em cristal se petrifica
Transparente como a vida
Que na morte se eterniza
Mas, dentro do lago, o poço
Dentro do céu, a medida
Espalha tições de fogo
Em teias de fantasia
Veste seu manto de chamas
– De penas bem coloridas
Faz de seu brilho esperança
De um pouco de cada dia
Põe labaredas nos olhos
Sai pelo mundo e caminha
E longe, já sol posto
Desaparece sozinha
MEU NATAL DE SEMPRE
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Ficou na sombra a casa onde morei
As árvores do quintal, a ventania
E eu, pequeno ainda, me recordo
Quanto chorei, quando cantar devia.
Ficou no céu o tempo que sonhei:
Sapato de verniz dependurado
Num saco bem vazio de esperanças
Qual pacote amarrado pelo vento.
Não finjo o sonho em que me sustentei
No portal da janela de meu quarto:
As bolas de borracha coloridas
(Revólver de brincar de detetive).
Meus irmãos já tiveram as mesmas coisas,
Meus amigos, também, o que não tive.
A vida dá presente todo dia:
A dor que sinto agora, não sentia.
Ficou no rosto o traço que não tinha:
A solidão que sopra lá de fora.
Multiplico os minutos pelas horas
E tenho as mesmas horas repartidas.
Ganho, então, meu presente de lembranças:
Uma flor na lapela e meu cansaço.
Costuro mágoas e as transformo em ânsias
E corto a fantasia em mil pedaços.
O MENINO E OS PÁSSAROS
Para Tude Celestino
-
Certo que eu fosse menino
Vinha no sopro do vento
Pegar esses passarinhos
Nos quintais desse convento
Pulava o muro do canto
Pé descalço de mansinho
– Atrás do tamarindeiro
Vinha de corpo escondido
Pisava na grama verde
E olhava os galhos e os ninhos
– O coração sacudia
No céu que a tarde continha
Nunca vi tanto assanhaço
Bem-te-vi papo amarelo
Rolinhas gordas de pena
E os canarinhos da terra
(Minha capanga de balas
Meu bodogue de borracha
Meus olhos cheios de sonho
Minha alma cheia de nada)
Certo que eu fosse menino
Certo a saudade matava
Numa cova tão profunda
Pra não me banhar de lágrimas
POEMA ANTIGO
-
A lua no meu quarto invade
Branca, molhada de sereno
Entra na memória um caminho
Que termina onde fui pequeno
Vaga, de luz opala verde
Entra devagar pela rua
Do menino de calça curta
– Que idade eternamente nua
A vida, a vida passa mesmo
Nem sei quando isto aconteceu
Só sei que a lua vem bonita
Dizer que a infância já morreu
SEGUNDA CANÇÃO DA BEIRA D’ÁGUA
-
Cada poema tem seu dia
Na claridade da manhã
Na face lírica das águas
Na casca loura da maçã
Cada poema tem seu dia
No prisma, no sinal da cruz
Na estrela do mistério vago
Na vida das cores azuis
FRAGMENTOS DE UM SONHO
-
Sou itinerante
Não vou de encontro às distâncias
Minha alma é um vestir-se de quatro paredes
Se mudo de roupa todo dia
Ela se renova
Todas às vezes que miro o espelho
Sou um rio caminhando dentro de mim
Varado de peixe e moluscos
Líquido: olho-me de cima para baixo
Parado: beijo as flores do lago
Corrente: pinto as cores da manhã
TRAVESSIA
-
A tarde cai sobre as águas do Paraguaçu
– Meu amor descansa sobre os ombros
– A montanha descansa sobre os vales
A própria natureza se imagina
Uma visita na véspera da primavera
O campo aberto não esconde as amapolas
E ninguém espia o vigia na estrada
– O rio manso é uma longa espada de sol
(Não compro ilusões
Nem vendo alegrias
Não piso em flores
Nem espalho fantasias
Geradas pela máquina do tempo)
A tarde cai sobre as águas do Paraguaçu
– A noite chega na arquitetura das serras
E desenha potros de asa e cavalos de sombra
Dentro da noite
A madrugada espera
Dentro da madrugada
Os frisos vermelhos da aurora
CONFISSÃO
-
Tua palavra é um código
Que sai
de tua boca
E queima os meus ouvidos
Teu gesto é um crucifixo de sinais
Que me converte
A uma seita antiga
Para o culto de deuses invisíveis
Não me toques
Te peço
Não me toques
Meu violino está surdo
E nada do que há em suas cordas
Poderá ser para sempre revelado
Vês? (Não te espantes)
Meus olhos estão secos
De tanto navegar
Por lugares desconhecidos
Minhas mãos estão crespas
e apalpam
Os muros de silêncio
Que me perseguem
Com inscrições hierográficas
E eu te digo
O raio
que tanto fere
me ilumina
Até a flor
que não tem espinho
me crucifixa
Mas teu corpo é uma ânfora dourada
Que não se parte
E brilha nos arabescos
De ritmos orientais
Aproxima-te
Mas não me toques
Deixa que eu me vingue de olhar para o infinito
VARIAÇÕES DO DIA
-
Antes de dormir, eu sonho
Antes de acordar, eu rio
Antes de dançar, eu tombo
Antes de fingir, eu crio
Antes de esperar, avanço
Antes de correr, tropeço
Antes de morrer, descanso
Antes de passar, trafego
Antes de partir, não fico
Antes de chorar, não quero
Antes de pensar, não minto
Mas, depois de amar, desperto
AMARALINA
-
Venho cortando o vento da avenida
A estrela assim não veio e a ventania
Sacode as ondas contra o rosto e a fria
Madrugada se esconde indefinida
Neste mar não existe maresia
Neste mar não há mito nem segredo
Não era a aurora a luz que pressentia
Entre as dobras da espuma no rochedo
Era a face que via contra o espelho
Era o perfil azul dos teus cabelos
Gravados na memória da retina
Venho cortando o vento da avenida
No silêncio dos passos e da vida
– A flor que fui buscar na Amaralina
A FLOR, A FLAUTA E O BANDOLIM
Para Raimundo Barros e Pedro Figueroa, Filhos de Orfeu-
Saio com uma flor pela varanda
E digo num sorriso de criança
– Se finjo num suspiro de alma pura
Que sou feito de corpo e de esperança
Se eu sinto, digo ao sol e digo à lua
E digo ao mar que azula este verão
Mas logo a melodia se desata
E solta ao vento as letras da canção
A flor, ora crisântemo, ora lírio
É flauta. É margarida do delírio
Ou ciúme das cordas da paixão
Esta czarda é louca e enluarada
Pinta com um bandolim a madrugada
– O amor de mais eterna perfeição
Fonte:
Adelmo Oliveira. Cântico para o Deus dos Ventos e das Águas. 1987. http://br.geocities.com/rsuttana/adelmo_cantico.pdf
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