Yehudi Bezerra (1946 - ?) faleceu jovem, tendo deixado impresso apenas um livro de contos, Tocaia (1977). Ficaram inéditos Momentos (poemas de 1964 a 1970), Barriga de Bombo ou As Desventuras de Pedroca Mundo, 1º. lugar no Concurso Universitário de Peças Teatrais, promovido pelo Serviço Nacional de Teatro e, em preparo, A Revolução das Bonecas e o romance Tonante.
As nove histórias de Tocaia se desenvolvem em pequenas cidades do Ceará e os personagens são quase sempre homens e mulheres simples. Mas há também coronéis-fazendeiros (os antigos chefes políticos, herdeiros dos coronéis da Guarda Nacional), padres, autoridades constituídas, em permanentes embates com seus rivais. Cada narrativa é um drama de violência e morte, com desfecho de tragédia. O título do volume expressa bem essa constatação.
Yehudi Bezerra faz uso da narração em primeira pessoa e também em terceira, com raríssimos diálogos e quase nenhuma descrição. Cada personagem-narrador tem características próprias. Na primeira obra, “Tocaia”, Venâncio Lustosa espera, pacientemente, atrás de uma moita, a passagem de Joca Viana, para matá-lo e vingar a morte do coronel Zezinho do Vale, em cujas terras, a fazenda Água-Bela, o matador trabalhava “no cabo da enxada ou da foice”. Venâncio parece falar para si mesmo (monólogo interior), até que na metade da narrativa diz ter conhecido Joca há muitos anos, desde “quando ele andava lá pras bandas de Penedo, nossa terra”. Somente então o leitor percebe que o matador fala para outra pessoa. Pouco mais adiante aparece detalhe do interlocutor: “Você era menino, nesse tempo”. Algumas linhas depois a informação se enriquece: O outro é irmão de Venâncio (“Rosalinda, nossa mãe”). E se reafirma com estas palavras: “você é meu irmão”. Ao final, o leitor compreenderá por que no início da narrativa o narrador parece monologar: “Pena você ser mudo, senão eu ia ouvir o que você tinha pra dizer”. Ou seja, o monólogo se transformaria em diálogo.
Em “Mané Piauí, Colo e o Vigário”, não fosse a única vez em que o “eu” aparece, embora em elipse, o leitor não veria no narrador um personagem: (...) “nunca vi tão leve no carregar uma dama” (...). Isto é, o ponto de vista seria do escritor/narrador onisciente. Trata-se de história do tipo oral, narrada nos pretéritos mais-que-perfeito, perfeito e no imperfeito.
Luiz, engenheiro recém-formado, de “Durante a viagem”, narra no tempo presente (monólogo interior) uma viagem de trem, de Fortaleza para Iguatu. Vez por outra, relembra fatos e faz uso do pretérito: “Um dia, no cabaré, eu estava numa das mesas” (...). Todos os pequenos fatos e incidentes e até um crime de morte vistos pelo protagonista são narrados detalhadamente.
Em “O Prefeito e sua gente”, o contista se vale do discurso indireto livre: o narrador onisciente dá voz ao personagem, sem uso de travessão ou aspas, isto é, na fusão da terceira e da primeira pessoa. Como quando se refere ao negro Mundurí: (...) “o diabo do negro não morreu” (...) “eu tenho corpo fechado” (...) Na verdade, são falas e diálogos no interior da narração.
Por último, o protagonista de “A Vida na Ponta da Língua”. Preso por homicídio, monologa em volteios, ora no passado, ora no presente: “sou um negro que conheço o meu lugar”; “perguntou onde era que eu tinha roubado aqueles couros”.
Nas composições com ponto de vista onisciente, os personagens interagem, logicamente, e os conflitos se desenrolam aos olhos do leitor. Alzira, João e a filha Vilani, de “Oi, Gostosa!”, vivem típica história de costumes do sertão nordestino. O tempo se dilata a cada segmento da narrativa, passado e presente se confundem. Em “Larí Cabeção” o protagonista sobressai. Alarico se torna apenas Larí. Filho espúrio, menino humilhado pelos outros, larápio de quinquilharias, Larí é um zé-ninguém. O tempo se arrasta e as ações se sucedem, para alcançar deslinde nada trágico: Larí chega à capital, volta a ser Alarico e se torna bandido de respeito. Típico conto de personagem. Em “Uma questão de honra” a trama gira em torno do tradicional triângulo amoroso, com todos os ingredientes de tragédia: Dorinha, Valdomiro e João. Aqui também os seres fictícios se sobrepõem ao drama, porque de desfecho anunciado, como é de praxe nesse tipo de história. Em “O Prefeito e sua gente”, vê-se mais um conto de personagens, como o próprio título indica. São tipos sertanejos clássicos em ação: um coronel, seus opositores políticos, sua mulher bonita, um padre mulherengo, um guarda-costas fidelíssimo. Em “O Pessoal da Rua 7” alguns seres fictícios se envolvem em diversos episódios entrelaçados.
Os narradores dos contos em primeira pessoa são tipos diferentes entre si e a manipulação da linguagem varia de narração para narração. Venâncio é narrador lento, quase silencioso, porque fala para seu irmão mudo, atrás de uma moita, em tocaia. A linguagem, apesar de coloquial, é correta na construção frasal. Uma ou outra palavra é grafada como no linguajar sertanejo: “peduvido” (pé-do-ouvido); “gavando” (gabando); “mindim” (mindinho). O protagonista de “Durante a viagem” é engenheiro e, portanto, tem um maior domínio da linguagem do que um simples matuto. Sua dicção não chega a ser erudita, mas as frases têm estrutura da língua culta. No entanto, faz uso de termos e expressões populares ou da gíria. O terceiro personagem-narrador está preso, após matar um homem. Como Venâncio, é um pobre serviçal de coronel. Sua fala é de fácil compreensão de leitores ou ouvintes de todos os matizes. Uma ou outra palavra pode parecer estranha a alguns, como “destamainho”.
Já o ponto de vista onisciente nas demais obras apresenta diversas variantes. Assim, em “Oi, Gostosa” as frases são curtas e os diálogos breves se intercalam às narrações. A trama se inicia com alguns retrospectos e tem no desenlace a gravidação de Vilani e sua expulsão de casa, pelo padrasto. Em “Mané Piauí, Coló e o Vigário”, o contista utiliza, aqui e ali, o diálogo indireto no interior da narração, quase toda no pretérito imperfeito. Em “Larí Cabeção” presente e pretérito perfeito se misturam ao longo da narração sem diálogos. “Uma questão de honra” também não apresenta falas. Em “O prefeito e sua gente” o leitor pode perder o fôlego desde o início, com longos períodos apenas virgulados. O primeiro ponto aparece na quarta página. As frases seguintes são um pouco mais curtas, de uma página. Em “O pessoal da rua 7” ocorre um entrelaçamento de histórias. No primeiro momento o protagonista é Chico, depois Chico Beira D’água. A seguir, Vila ou Vilani, “a mais valente rapariga daquelas bandas”. O terceiro personagem aparece logo: Rocildo ou Cidinho. O quarto é Zé Põe no Mato e o quinto, Maria. Algumas falas aparecem entre aspas.
Os dramas de Tocaia têm como raízes o modo de vida, a cultura da violência, os costumes sertanejos. Os enredos de Yehudi Bezerra, de tão fechados, costurados, dão ao leitor a impressão de que os desenlaces não poderão ser outros senão o fim trágico do protagonista ou do seu oponente. E isto não se dá sempre. Pois o contista prega uma peça no leitor a cada obra. Como a dizer, o realismo pode ser muito mais do que óbvio, sem precisar ser fantástico ou mágico.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
As nove histórias de Tocaia se desenvolvem em pequenas cidades do Ceará e os personagens são quase sempre homens e mulheres simples. Mas há também coronéis-fazendeiros (os antigos chefes políticos, herdeiros dos coronéis da Guarda Nacional), padres, autoridades constituídas, em permanentes embates com seus rivais. Cada narrativa é um drama de violência e morte, com desfecho de tragédia. O título do volume expressa bem essa constatação.
Yehudi Bezerra faz uso da narração em primeira pessoa e também em terceira, com raríssimos diálogos e quase nenhuma descrição. Cada personagem-narrador tem características próprias. Na primeira obra, “Tocaia”, Venâncio Lustosa espera, pacientemente, atrás de uma moita, a passagem de Joca Viana, para matá-lo e vingar a morte do coronel Zezinho do Vale, em cujas terras, a fazenda Água-Bela, o matador trabalhava “no cabo da enxada ou da foice”. Venâncio parece falar para si mesmo (monólogo interior), até que na metade da narrativa diz ter conhecido Joca há muitos anos, desde “quando ele andava lá pras bandas de Penedo, nossa terra”. Somente então o leitor percebe que o matador fala para outra pessoa. Pouco mais adiante aparece detalhe do interlocutor: “Você era menino, nesse tempo”. Algumas linhas depois a informação se enriquece: O outro é irmão de Venâncio (“Rosalinda, nossa mãe”). E se reafirma com estas palavras: “você é meu irmão”. Ao final, o leitor compreenderá por que no início da narrativa o narrador parece monologar: “Pena você ser mudo, senão eu ia ouvir o que você tinha pra dizer”. Ou seja, o monólogo se transformaria em diálogo.
Em “Mané Piauí, Colo e o Vigário”, não fosse a única vez em que o “eu” aparece, embora em elipse, o leitor não veria no narrador um personagem: (...) “nunca vi tão leve no carregar uma dama” (...). Isto é, o ponto de vista seria do escritor/narrador onisciente. Trata-se de história do tipo oral, narrada nos pretéritos mais-que-perfeito, perfeito e no imperfeito.
Luiz, engenheiro recém-formado, de “Durante a viagem”, narra no tempo presente (monólogo interior) uma viagem de trem, de Fortaleza para Iguatu. Vez por outra, relembra fatos e faz uso do pretérito: “Um dia, no cabaré, eu estava numa das mesas” (...). Todos os pequenos fatos e incidentes e até um crime de morte vistos pelo protagonista são narrados detalhadamente.
Em “O Prefeito e sua gente”, o contista se vale do discurso indireto livre: o narrador onisciente dá voz ao personagem, sem uso de travessão ou aspas, isto é, na fusão da terceira e da primeira pessoa. Como quando se refere ao negro Mundurí: (...) “o diabo do negro não morreu” (...) “eu tenho corpo fechado” (...) Na verdade, são falas e diálogos no interior da narração.
Por último, o protagonista de “A Vida na Ponta da Língua”. Preso por homicídio, monologa em volteios, ora no passado, ora no presente: “sou um negro que conheço o meu lugar”; “perguntou onde era que eu tinha roubado aqueles couros”.
Nas composições com ponto de vista onisciente, os personagens interagem, logicamente, e os conflitos se desenrolam aos olhos do leitor. Alzira, João e a filha Vilani, de “Oi, Gostosa!”, vivem típica história de costumes do sertão nordestino. O tempo se dilata a cada segmento da narrativa, passado e presente se confundem. Em “Larí Cabeção” o protagonista sobressai. Alarico se torna apenas Larí. Filho espúrio, menino humilhado pelos outros, larápio de quinquilharias, Larí é um zé-ninguém. O tempo se arrasta e as ações se sucedem, para alcançar deslinde nada trágico: Larí chega à capital, volta a ser Alarico e se torna bandido de respeito. Típico conto de personagem. Em “Uma questão de honra” a trama gira em torno do tradicional triângulo amoroso, com todos os ingredientes de tragédia: Dorinha, Valdomiro e João. Aqui também os seres fictícios se sobrepõem ao drama, porque de desfecho anunciado, como é de praxe nesse tipo de história. Em “O Prefeito e sua gente”, vê-se mais um conto de personagens, como o próprio título indica. São tipos sertanejos clássicos em ação: um coronel, seus opositores políticos, sua mulher bonita, um padre mulherengo, um guarda-costas fidelíssimo. Em “O Pessoal da Rua 7” alguns seres fictícios se envolvem em diversos episódios entrelaçados.
Os narradores dos contos em primeira pessoa são tipos diferentes entre si e a manipulação da linguagem varia de narração para narração. Venâncio é narrador lento, quase silencioso, porque fala para seu irmão mudo, atrás de uma moita, em tocaia. A linguagem, apesar de coloquial, é correta na construção frasal. Uma ou outra palavra é grafada como no linguajar sertanejo: “peduvido” (pé-do-ouvido); “gavando” (gabando); “mindim” (mindinho). O protagonista de “Durante a viagem” é engenheiro e, portanto, tem um maior domínio da linguagem do que um simples matuto. Sua dicção não chega a ser erudita, mas as frases têm estrutura da língua culta. No entanto, faz uso de termos e expressões populares ou da gíria. O terceiro personagem-narrador está preso, após matar um homem. Como Venâncio, é um pobre serviçal de coronel. Sua fala é de fácil compreensão de leitores ou ouvintes de todos os matizes. Uma ou outra palavra pode parecer estranha a alguns, como “destamainho”.
Já o ponto de vista onisciente nas demais obras apresenta diversas variantes. Assim, em “Oi, Gostosa” as frases são curtas e os diálogos breves se intercalam às narrações. A trama se inicia com alguns retrospectos e tem no desenlace a gravidação de Vilani e sua expulsão de casa, pelo padrasto. Em “Mané Piauí, Coló e o Vigário”, o contista utiliza, aqui e ali, o diálogo indireto no interior da narração, quase toda no pretérito imperfeito. Em “Larí Cabeção” presente e pretérito perfeito se misturam ao longo da narração sem diálogos. “Uma questão de honra” também não apresenta falas. Em “O prefeito e sua gente” o leitor pode perder o fôlego desde o início, com longos períodos apenas virgulados. O primeiro ponto aparece na quarta página. As frases seguintes são um pouco mais curtas, de uma página. Em “O pessoal da rua 7” ocorre um entrelaçamento de histórias. No primeiro momento o protagonista é Chico, depois Chico Beira D’água. A seguir, Vila ou Vilani, “a mais valente rapariga daquelas bandas”. O terceiro personagem aparece logo: Rocildo ou Cidinho. O quarto é Zé Põe no Mato e o quinto, Maria. Algumas falas aparecem entre aspas.
Os dramas de Tocaia têm como raízes o modo de vida, a cultura da violência, os costumes sertanejos. Os enredos de Yehudi Bezerra, de tão fechados, costurados, dão ao leitor a impressão de que os desenlaces não poderão ser outros senão o fim trágico do protagonista ou do seu oponente. E isto não se dá sempre. Pois o contista prega uma peça no leitor a cada obra. Como a dizer, o realismo pode ser muito mais do que óbvio, sem precisar ser fantástico ou mágico.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
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