sábado, 4 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) José Hélder de Souza

José Hélder de Souza (Massapé, 1931 – Brasília, 2004) cedo se mudou para o Rio de Janeiro e depois Brasília. Contista, poeta, romancista e crítico literário, é autor de Coisas & Bichos (1977), Rio dos Ventos (1992) e Pequenas Histórias Matutas (2000), no gênero conto. Em outros gêneros publicou A Musa e o Homem (1959), A Grandeza das Coisas (1978), Os Homens do Pedregal (1979), Sonetos de São Luiz (1981), De Mim e das Musas (1982), Cabo Plutarco, O Berro D’água (1982), Raul de Leoni, Poeta de Transição (1984), Relvas do Planalto (1990), Brilhos e Rebrilhos de Goiás (1990).

Apesar dos longos anos longe do Ceará, a sua obra literária tem profundas raízes cearenses. Pelo menos nas narrativas de Rio dos Ventos e Pequenas Histórias Matutas é muito nítida a presença do espaço geográfico cearense, sobretudo do sertão. A começar por “Rio dos Ventos”, um de seus mais longos contos, cuja trama se desenrola na vila de Nossa Senhora dos Remédios, às margens do Rio dos Ventos. A casa dos protagonistas é próxima ao mar, às dunas, aos areais “entremeados de canaviais e coqueirais”. A personagem principal, Profíqua Mendes Carneiro, estudou num colégio de freiras em Sobral. Padre Firmo formou-se no Seminário da Prainha, em Fortaleza. “Sanharão” se passa no sertão. Cazuza Meireles morava numa casa construída “num pequeno vale, quase na quebrada da serra”, no alto da Serra da Meruoca. Em “O Capagato”, José Porfírio vivia nas proximidades da cidade de Saboeiro. Em “Os três enterros de Jasão” o personagem Chico Tripa, quando jovem, frequentava “casas de mulher à toa, no Beco do Pega-e-Puxa, na praia da Fortaleza”. Em “Nicodemus, ajudador da morte”, Manoel Trajano estudou em Sobral. Frequentava esporadicamente igrejas daquela cidade, de Massapé e São José. “A porca história de Elza” se desenvolve num “sobrado centenário”, “nas proximidades de Barbalha, nos confins do mundo do Cariri”. E assim é em quase todas as narrativas.

Também a linguagem dos contos de José Hélder é essencialmente cearense. No entanto, como para fugir à tentação de elaborar histórias baseadas na oralidade sertaneja, matuta, na fala regional, no coloquial, que fizeram a grandeza e a mediocridade da ficção regionalista, o contista cearense optou pelo ponto de vista onisciente do escritor-narrador. Em poucas ocasiões dá voz aos personagens. Em “Sanharão” um deles assim se manifesta: “– Num faço malefício a feme” (...), “mas arreda, mulher, num me estorva o passo.” E outro: “– Num me azougue, dona; vamo lá, Timbaúba.” No decorrer das narrações ocorrem referências a objetos da cultura cearense, ou nordestina: penico de louça, bule de ágata, terrina para a coalhada, cristaleira, espreguiçadeira; a plantas: cajazeira, mulungu, carrapateira; animais e acidentes geográficos. E muitos vocábulos em desuso: sentina, quartau baio, bagual, brivana, bregueço, lambrecar, cotrovia, trastejar, chaboqueiro, roncolho, maxabomba, embeleco, moringa, forroia, mistela, aranhol, facanéa, batota, pelebreu, pondenga, malamanhado.

Também chama a atenção do leitor a reconstituição de crônicas – familiares e pessoais – antigas, algumas delas datadas nas narrações. Em “Rio dos Ventos” o narrador se refere aos “meados dos setecentos”, quando “vieram de Portugal para aquelas bandas algumas fidalguinhas órfãs”. Tempo do Rei Dom José I, do Marquês de Pombal. “Sanharão” se desenrola durante o governo Justiniano de Serpa, tempo dos marretas ou republicanos conservadores, do coronel Franco Rabelo e do Padre Cícero. Em “O homem que fez o trem parar” “corria o ano de 1910”, tempo dos coronéis. Em “Ao crepúsculo, num quarto”, uma das narrativas mais bem realizadas de José Hélder, o protagonista é assassinado numa “pensão reles de cidade decadente, pobre”, por um cangaceiro. Quincas das Contendas, de história do segundo livro, é bisneto do capitão Godofredo Hortêncio de Aguiar, “fidalgote alentejano da Vila Pouca de Aguiar, ribeira de Xarrama, freguesia de Alcáçovas”, ao tempo do aldeamento dos índios Tremembés, nos setecentos. Em “A mistela que comeu o padre Verdeixa” narra-se episódio em que figura o famoso padre Zé Verdeixa. Em “Calunga, o homem de um tiro só” o protagonista é nascido “nos idos de 20 para 30”. Outro personagem foi “eleito deputado estadual na primeira eleição depois da queda de Getúlio, nos quarenta e seis”. Em “Contando os cobres guardados no banco” há referência ao “golpe de 1937”.

Os dramas vividos pelos personagens de José Hélder são quase sempre envoltos em tragédia, muitas vezes em razão de vinganças. Os desfechos coincidem com as mortes dos protagonistas ou das vítimas destes. No entanto, quando o contista se volta para o anedótico ou o humorístico a trama se apresenta frouxa, resultando em histórias do tipo “causos”, de irrisório valor literário. É o caso de “O Bolota da piroca dura” e “Contando os cobres guardados no banco”. A tragédia de “Rio dos ventos”, consubstanciada no amor do padre Firmo pela jovem Profíqua, dá ao marido traído, Francisco Carneiro Pachola, ares de Otelo sertanejo. O capítulo final, intitulado “Amar não é defeito”, pega o leitor pelo colarinho e o conduz à cena final do crime, a vingança. A morte do sacerdote, alvejado em pleno altar, quando rezava missa, seguida do desespero da mulher, é cena para se ler e reler. O desenlace, porém, se dá quando a jovem, quatro dias após o crime, “começou a devorar a comida com sofreguidão e, ao morder a titela da ave assada, um pedaço de osso atravessou-lhe na garganta”.

Do drama amoroso Hélder passa ao conflito familiar e partidário. “Sanharão” é história de cangaceiros, homens valentes, violentos. O pacato e medroso Quincoló mata o valentão Sanharão, ao ser por este abordado numa rua: “– Então, seu rabelista, cuma se lhe vai?” Rabelista, partidário de Franco Rabelo, eleito governador do Ceará em 1912, inimigo dos aciolistas, do partido de Nogueira Acióli. Inicia-se a perseguição ao assassino. E a história termina com a fuga de Quincoló, “num navio a vapor”, rumo ao Espírito Santo. Outra tragédia se lê em “O Capagato”. Acostumado a castrar gatos, José Porfírio encontra sua mulher e a criada mortas em casa e sai em perseguição aos assassinos. Ao final encontra um deles (o outro é morto por este). Subjugado, o homicida é amarrado “com uma tira de couro”. A narração da castração é cena digna dos melhores naturalistas. Em “Nicodemus, ajudador da morte” nada leva o leitor a suspeitar do desfecho. Trajano está muito doente, às portas da morte. Os parentes chamam Nicodemus, “o mais famoso puxador de reza e o melhor ajudador da morte de toda a redondeza”. As rezas não acabam nunca. Nicodemus percebe a chegada da morte e aconselha os familiares do moribundo a chamarem o padre: “Se é cristão, deve receber logo os sacramentos, as bênçãos de um padre, para não morrer nas trevas, na tentação do Diabo.” Ao final, numa “alta madrugada”, o ajudador, após muitas orações, retira-se da alcova de doente: “Acabara de abreviar a agonia de Manoel Trajano, ajudando-o a dar a alma a Deus, metodicamente sufocado.” Em “Ao crepúsculo, num quarto”, publicada nos dois livros, um viajante se hospeda numa pensão, se maldiz da pobreza do ambiente, pensa em se relacionar amorosamente com a arrumadeira (esse solilóquio demora algum tempo e absorve grande parte da narrativa), vê a noite chegar, sempre à janela, quando avista “uma figura ensombrada”. Engana-se, ao supor tratar-se da moça. Ao lavar o rosto e preparar-se para o jantar, batem à porta. Pensa tratar-se da jovem. Abre a porta, “sôfrego”. Ele e o leitor deparam, então, a figura de um assassino: “Nem viu direito o rosto cangaceiro encoberto pelo chapéu de abas largas, pois foi logo o revólver vomitando morte e lhe enchendo o peito e o bucho de balas.”

(...)

Os personagens nos dois livros aqui mencionados são desenhados com traços rudes, como não poderia deixar de ser. Nem mesmo as mulheres aparentam beleza, singeleza, ao contrário do que se vê em outros narradores cearenses. Chico Pachola é “desengonçado e casmurro”. O cangaceiro Zé de França, de “Sanharão”, é “caboclo chaboqueiro de cabelo-de-espeta-caju”. Pedro Silvério, de “Amores lícitos e ilícitos do Silvério e a negridão e o sabor das guabirabas”, é, talvez, o personagem mais favorecido na descrição: “Grandalhão, bem conformado, espadaúdo e um tanto obeso” (...) “tinha cara redonda e cabeça chata, maçãs do rosto salientes e nariz afilado e curto, quase arrebitado”. Nicodemus, de “Onde Nonato encontrou seu calunga, o Bozó”, é “homem grandalhão, barbaçudo e pestanhudo, de grenha intensa, ar bonachão e prestimoso”. O caçador de “A pondenga” é “um magro serrano de cara estragada pela bexiga, boca murcha pela ausência de dentes incisivos, olhar cansado e corpo arqueado de viver e sofrer.”

A par disso, muitos dos personagens vivem situações vexatórias, seja na hora da morte, seja em plena vida. Profíqua morre engasgada com pedaço de osso. A castração do homicida de “O Capagato” é cena do mais puro naturalismo: “a lâmina fina agora a penetrar fundo no seu saco escrotal”; “ouviu-se um berro estrondoso”, “berro horrível, como os dos gatos capados...” A cena de eutanásia em “Nicodemus, ajudador da morte” é inesperada. Elza é deflorada por um porco. Quinca das Contendas morre afogado: “animal e cavaleiro sumiram nas águas barrentas”. Padre Verdeixa, famélico, só encontra “a pobre mistela dos maxixes cozidos na água e sal” para matar a fome. Um dos mais contundentes contos de Hélder é, sem dúvida, “O estouro do homem faminto”. Nem sequer nome lhe é dado. Faminto, “era um coitado que vivia só, metido debaixo de um rancho de capim, na beira de um capão seco”. Passados dias de fome, “lembrou do carcará que come sapo sem se engasgar”. Após matar e assar o bicho, “comeu uns nacos”. Dormiu e “acordou com uma sede dos diabos”. Procurou uma casa, conheceu Zefa, pediu-lhe água. Bebeu toda a água do pote e se despediu. Deu alguns passos, “quando ela ouviu um estouro”. O pobre homem “tinha espocado todo”.

José Hélder de Souza é discípulo de Gustavo Barroso, naquilo que o criador de Alma Sertaneja tinha de sedução pelas histórias contadas pelos sertanejos. Tem, no entanto, estilo próprio. Dimas Macedo, em “Um contador de causos”, apresentação de Pequenas histórias matutas, ressalta “a sua fidelidade à linguagem popular, ao lado de seu estilo e do seu jeito de dizer muito peculiar, porque é individualíssima a sua escritura literária.”

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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