quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Jorge Pieiro (Meu Tio e Eu)

O tio era magrinho. Contava nos dedos a idade, brincadeira. Tantos dedos eram poucos para tanta. Tinha a pele muito pálida e um gênio danado. Era dele de quem eu gostava. Muito mais que dos outros treze. Eu sabia que ele tinha visões. Talvez por isso julgavam que ele fosse doido. Quando chovia, ele corria comigo  pela rua, na lama. Gritava e ninguém aguentava os gritos.

– Com essa lama eu viro Deus!

E rolava no chão. Eu o seguia. A gente rolava feito dois porcos e sentia o chão quentinho. Parecia uma fogueira, o chão. Era um fogo sagrado. De vez em quando, o tio gritava. Um grito fiiiino... Bem diferente da voz. Pra mim, o grito era um cordão azul que ia saindo da garganta dele. Os treze tios, acho, sentiam era um gosto de arame farpado na garganta. Aí o cordão ia se anovelando e ele engolia o novelo e sorria pra mim. Eu corria pra ele. A gente se abraçava. Ele batia na minha cabeça com a mão.

– Com essa lama eu fui Deus!

Depois que a chuva passava, a gente se escondia, pra deixar a lama secar. O tio ficava irritado, eu ficava calado. Como ali era o galinheiro, ele saía pegando as galinhas pelos pescoços, e arrancava-os com uma só dentada. Vontade eu tinha de experimentar, mas se eu fizesse o mesmo os tios castigavam. Com a lama endurecida no corpo, a gente parecia uns cavaleiros de armadura. Eu acho que era isso que o tio achava. As galinhas eram os inimigos. Bom, mas pra entrar em casa, a gente tirava a lama, a armadura. Eu ligava a mangueira do jardim e jogava  água no tio. Ele chorava. Eu ficava com pena. A lama amolecia. Ele soluçava.

– Com essa lama eu sou só um anjo!

Eu sentia que era também feito um anjo. A gente ria até a barriga doer. A gente se entendia. Por isso eu gostava dele, muito mais que dos outros treze. Mas o tempo foi rápido. O tio foi ficando igual a um cordão azul, igual àquele que eu imaginara. Foi se transformando num novelo, ovalzinho, recheado. Um novelinho, cada vez mais. E eu fui ficando forte. Não era magrinho. Cresci e crescia cada vez mais. Até que um dia, o tio me chamou.

– Agora vou ser Deus pra sempre!

Ele riu e se engoliu, como um novelo. Naquela hora, senti que o novelo tinha se enganchado na minha garganta. Eu achei que fosse ele. A alma dele. A vida dele. Não sei. Meus outros treze tios suspiraram aliviados. E eu passei muito tempo calado. Triste. Fui ficando magrinho. Os tios se preocupavam comigo. Mas eu não dava atenção a eles. Quando chegou a época de chuvas, eu chorei muito. Lembrei do tio. Saí escondido de casa. Na rua comecei a rolar na lama, um porco, roncando. E o novelo desapareceu da garganta. Foi quando deu vontade de gritar. E gritei.

– Com essa lama eu viro Deus!

Meus outros treze tios quando souberam, rasgaram as peles dos rostos. Eram mesmo umas máscaras! Tentaram me castigar, mas não puderam mais. Eu já era grande. Aí, dessa vez, foram eles que choraram. Sentiram um gosto novo de arame farpado na garganta...

(Jorge Pieiro, Caos Portátil)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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