terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Astolfo Lima Sandy (Sistema de Roldanas)

No começo eu não entendia aquela insistência de minha mulher em deixar o frasco de
sedativos sobre o meu colo e não no armário da cozinha, como sempre fazia ao sair, perfumada, com a desculpa de que levaria as crianças ao shopping. Os meninos ficavam mesmo sob as vistas da avó, enquanto ela seguia ao encontro de alguém – nunca duvidei. Fosse outra a sua forma de agir, talvez a compreendesse. Prostrado aqui nesta infame cadeira de rodas, partilhando o sofrimento de vê-la sedenta de carinho na solidão do quarto, eu tinha o dever moral de aceitar com naturalidade essas escapulidas. Em troca de simples afeto de mãe, teria fechado os olhos a tudo.

Sei, meu olhar estúpido, a boca quase sempre entreaberta, os lábios murchos sem desprenderem qualquer ruído podem ter inibido uma reaproximação. Se eu não podia mais corresponder aos seus afagos – ela por certo supôs – seria por haver perdido a capacidade de sonhar... sofrer. E eu só desejava sua presença novamente ali perto, me transmitindo um pouco de calor e lendo para mim os versos de Baudelaire.

                Antes de sair, me servia sopa, acendia a luz, fechava a porta, colocando em minhas pernas as coisas que seriam úteis na sua ausência: garrafa d'água com canudinho, controle remoto e, ultimamente, o maldito vidro de remédio – que tomava o cuidado de deixar fora da caixa. De volta a casa, depois de recolher os meninos no quarto, vinha de mansinho até o cubículo, me observava da janela, e eu logo percebia a frustração no seu olhar. Por vezes se aproximava, conferia se a tampa do vidrinho saía com facilidade e depois fixava em mim um olhar de Gioconda; sem me tocar, dando a impressão de sentir nojo.

                Nessas horas a minha mente fervilhava, imaginando frases jamais articuladas. Fantoche, eu sequer conseguia franzir o cenho, expelir lágrimas, esboçar um gesto qualquer de sentimento. A única forma de expressão ainda possível era girar vagarosamente aquela abominável cadeira, riscando a cerâmica com suas rodas, feito quisesse cunhar no mármore as palavras presas na garganta. Ela logo aparecia e, com leve toque na alavancazinha, também paralisava esses meus devaneios. Depois, furtiva, sumia sem nada falar, para reaparecer apenas na hora de servir novamente a sopa e me colocar na cama, com auxílio de nosso filho mais velho. E eu ficava ali, chumbo, olhos fitos no teto, esperando o sol surgir através da claraboia. A mim nada mais seria permitido a não ser sufocar a angústia e curtir sozinho a minha solidão. Sei, certamente que sei dos meus pecados e deles nunca procurei me eximir. Esses, porém, já estavam muito bem pagos, creio.

Se ela tivesse acabado comigo de uma vez, teria sido melhor. Uma injeção e pronto, tudo se resolveria. Não quis. Preferiu minar-me lentamente, explicitar ao máximo a minha fragilidade. Em certos momentos, confesso, tive ímpetos de fazer seu jogo e engolir todo o conteúdo daquele pequeno frasco teimosamente sobre meu colo. Depois raciocinei que agir assim seria lhe permitir gargalhar em liberdade, na companhia do outro. Não. Ela haveria de experimentar do próprio fel, saldar sua parcela de culpa pelo desastre que me aprisionou neste cubículo; redimir-se do ciúme doentio, pagar bem caro pelas intermináveis discussões que sempre acabavam em minhas enlouquecidas fugas noturnas, até aquela última, quando bati o carro.  

                Em certos momentos, tentando afastar da cabeça os maus presságios, cheguei a supor que o fato de minha esposa deixar os comprimidos ao meu alcance fosse apenas por zelo, aquele receio de me ver amargar outra vez as dores antigas. Engano. Ela sabia que, devido à falta de sensibilidade física, isso já não mais poderia acontecer. Eu vivia naturalmente anestesiado. Somente as mãos ainda se mexiam de forma precária, conservando um pouco de tato, se bem que quase todo meu cérebro funcionasse com perfeição. Ela só não sabia – e disto agora tenho certeza – das habilidades desenvolvidas por mim na solidão do quarto.

Com auxílio da arcada dentária aprendi a segurar a ponta de um barbante, atá-la a meu pulso, enquanto enlaçava a outra extremidade à maçaneta da porta, de modo a prendê-la novamente com os dentes e construir um rudimentar sistema de roldanas, em que, puxando o cordel, meu braço se erguia e posicionava a mão um pouco acima da cabeça. Igualmente ela não suspeitava do brinquedo que eu mantinha oculto sob o forro da cadeira.

                Naquela tarde, ao arrumar as coisas sobre meu colo, deixando pela primeira vez sem a tampa o vidro de comprimidos, notei malícia no seu olhar. Com esse gesto aparentemente tão banal, ela apenas precipitaria o desfecho da situação. Antes de sair para o costumeiro passeio, serviu-me o caldo de ervilhas com toda delicadeza, ajustou a posição da TV e disse em voz mansa que as crianças ficariam o fim de semana na casa de sua mãe. Achei providencial.

Ela estava linda nesse dia, não posso negar: vestia um curto cetim, decotado; calçava sandálias de salto e tinha os longos cabelos presos por graciosa fivela de prata. O brilho dos olhos se acentuava na face rosada, no batom dos lábios, e pela primeira vez em muitos meses a desejei de uma forma absurda, louca, em que a reação física era nula, só o cérebro formigava, projetando imagens obscenas, fazendo exalar os odores da volúpia, aquela vontade incontrolável de tocá-la, sentir o seu corpo resvalar no meu. De repente, ao ouvir o barulhinho de pingos escorrendo do meu assento para o ladrilho, percebi que estava todo molhado. Nesse instante senti ódio de mim, do mundo e logo me curvei à realidade mais atroz. Após tanto tempo de vida em comum, eu testemunhava pela primeira vez a imagem de minha mulher em trajes tão sensuais. Fosse outra a circunstância, jamais lhe teria permitido semelhante comportamento, e ela sabia disso. Ainda assim, deu voltas ao meu redor antes de fechar a porta.

Permaneci o resto da tarde com o olhar idiota fixo na parede, aguardando seu regresso; uma mosca zunindo incessantemente ao meu ouvido, o suor escorrendo pelo rosto – sem que pudesse enxugá-lo. Nunca as horas demoraram tanto a passar. Hoje chego à conclusão de que teria sido melhor se o tempo houvesse estacionado ali, ainda que eu ficasse o resto de meus dias com aquele tormentoso inseto me roçando o nariz.

logo que anoiteceu escutei barulho de carro em frente ao portão. Era ela. Minha esposa não dirigia, mas eu tinha certeza: era ela. Comecei a mastigar a cordinha – já em volta da maçaneta – e esperei a cabeça dela apontar na janela. Estranhamente isso demorou muito para acontecer. Nesse instante escutei o ruído de crianças na calçada e os acordes de suave canção no interior da casa. E ouvi risos abafados por ligeiro tilintar de copos, cochichos; novamente o grito dos meninos lá fora, a música aumentando de intensidade, diminuindo, se misturando ao som da TV, ao latido do cachorro, distante; todas essas coisas comprimindo minha nuca, me impossibilitando diferenciar os rumores da rua, daqueles escutados dentro de casa. Risos, acordes musicais, gritos, tudo martelando o meu juízo – o suor incessante percorrendo a face.

Depois veio o silêncio, quebrado levemente pelo atrito de galhos da figueira sobre o telhado. Foi quando a minha mulher abriu a cortina. A postura de minha cabeça, inclinada, a boca parcialmente fechada – engolindo com dificuldade o barbante, para fazer o braço mirar a janela – me causavam enorme aflição, algo impossível de externar. Em qualquer circunstância nunca modifiquei essa aparência inexpressiva, silenciosa, nem perdi o jeito parvo, se bem não deixasse de alimentar mil demônios dentro de mim. Ao olhar discretamente na minha direção, não mais captei em sua face aquele desapontamento exibido em outras ocasiões. O sorriso dela tanto poderia configurar a satisfação de uma mulher plenamente realizada, como... como. Mas já era tarde, infelizmente. Muito tarde para desativar o sistema de roldanas, que funcionou de forma perfeita, mesmo com o peso da arma empunhada por mim naquele instante e sob o impacto causado por ela tão logo acionei o gatilho...

 (Astolfo Lima Sandy, A Grande Fábrica de Brinquedos)


Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nenhum comentário: