quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Dimas Carvalho (O Manuscrito)

Epaminondas Pitágoras da Cunha trabalhava numa livraria decrépita, um prédio velho de dois andares, situado numa ruazinha decadente do centro da cidade. Era o único empregado, além de dono, seu Eleutério, muito idoso, surdo, reumático, quase cego. De modo que Epaminondas se via quase que como proprietário absoluto daqueles milhares de livros velhos e empoeirados, perfilados em estantes antigas, e aos quais praticamente ninguém procurava. Porque os clientes, como era de se esperar de tal estabelecimento, eram raros, e também eles antigos, decrépitos e decadentes.

                Os dias se passavam numa monotonia de rio amazônico… Epaminondas, entediado, dava grandes bocejos enquanto folheava páginas esquecidas. Seu Eleutério cochilava na espreguiçadeira, por trás do balcão, o jornal caído entre as pernas, a boca aberta, babando.

                Além dos dois andares, o prédio possuía um pequeno sótão, onde Epaminondas subia, quando estava mais disposto, para fazer a limpeza. Numa dessas vezes, notou que, num canto, havia uma pilha de livros, coisa que nunca antes observara. Aproximou-se e começou a verificar os títulos, manuseando com todo o cuidado as folhas amareladas. A poeira fazia com que espirrasse. Alguns livros estavam roídos pelas traças, outros eram quase ilegíveis. Mas o que chamou mesmo a sua atenção foi um manuscrito encadernado, datado do século XVII, vazado em uma língua que lhe era completamente estranha. Um pequeno texto em Português, que parecia servir de introito, dizia ser a língua o sumério, e que o felizardo capaz de traduzi-lo alcançaria a imortalidade, assim como se tornaria imensamente rico.

                Epaminondas era um homem prático, nada sonhador, bem terra a terra. Riu com desdém daquelas promessas mirabolantes. O absurdo do que lia levava-o a crispar os lábios em um sorriso irônico. Porém, alguma coisa, que ele não saberia explicar o que era, puxava-o para o manuscrito, como o ímã faz com o ferro. Quando desceu do sótão, já estava determinado a aprender o sumério, custasse o que custasse.

                A partir deste dia, a vida de Epaminondas mudou radicalmente. O que era fascinação transformou-se em mania, obsessão, delírio. Tornou-se estudioso. Consagrava todas as horas de lazer ao seu objetivo único. Esqueceu-se de viver, absorveu-se e foi absorvido pelos caracteres mágicos que o enfeitiçavam.

                Foram anos a fio de dedicação, em casa e na livraria. Era com impaciência que atendia os fregueses cada vez mais raros. Comprou livros, pesquisou na internet, fez contatos com sábios do outro lado do mundo. Assinou revistas especializadas. À medida em que prosseguia naquela viagem sem volta, os indícios de que o manuscrito dizia a verdade se avolumavam. Citações milenares, pistas criptográficas, as peças do imenso quebra-cabeças iam se encaixando. Seus olhos adestrados passaram a ver, em coisas aparentemente desconexas, relações profundas e sutis. No final de nove anos de estudos, sentiu que estava a um passo de dar o grande salto, de penetrar enfim a grande porta que guardava o Mistério.

                Foi por esse tempo que o Seu Eleutério morreu, exatamente ao meio-dia, sentado na espreguiçadeira, o jornal dobrado nos joelhos. Como o velho fosse viúvo, e não tivesse filhos ou parentes conhecidos, Epaminondas, herdeiro presuntivo, organizou o velório. A casa do velho ficava num bairro afastado, onde grandes árvores ladeavam as ruas largas, enchendo de sombras e silvos os espaços da noite. Pôs-se a velar, sozinho, o morto. Quase madrugada, a fome o levou a abandonar a câmara mortuária, onde as velas tristes eram a sua única companhia.

                Encaminhou-se a uma churrascaria, onde fez um lanche breve, biscoitos e guaraná. Pediu ainda um sanduíche, para fazer o desjejum, quando o dia nascesse.

                Ao voltar para casa, o susto foi enorme. Rodeando o caixão, quatro de cada lado, oito anciãos, vestidos de preto, murmuravam palavras estranhas em uma língua extinta. E mais ainda aumentou seu espanto quando, trêmulo e suando frio, viu o antigo patrão erguer-se e, lenta e solenemente, pronunciar, com uma voz alta e cheia de vitalidade:

                – Caríssimo Epaminondas, é nossa obrigação agradecermos; o Segredo do Manuscrito é nosso, meu e dos meus oito companheiros, há muitos milênios. Realmente, ele nos dá a imortalidade e nos cumula de incalculáveis riquezas. No entanto, tudo tem um preço. E o preço que o manuscrito exige é o sangue de uma pessoa que por nove anos completos se dedique à tarefa de decifrá-lo, vencendo todos os obstáculos e tendo chegado às raias de desvendá-lo. De cem em cem anos repetimos este ritual, e tantas vezes já o fizemos que perdi a conta.

                Então Epaminondas Pitágoras da Cunha sentiu que garras aduncas rasgavam-lhe as vestes e a pele, e enquanto a escuridão se apossava dos seus olhos, uma lâmina fria penetrou no seu ventre, atingindo-lhe o coração, rasgando-lhe as vísceras, perfurando-lhe o pulmão, ao som de litanias e imprecações sussurradas naquela língua arcaica e quase que completamente esquecida.

(Dimas Carvalho, Fábulas Perversas)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nenhum comentário: