terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) José Costa Matos

José Costa Matos (Ipueiras, 1927), poeta, contista e romancista, é autor do volume de contos Na Trilha dos Matuiús (1998). Apesar de não ter apresentado livro de ficção curta antes, sua dedicação à literatura vem de muitos anos. Um dos vencedores do II Prêmio Ceará de Literatura, de que resultou livro com este título, em 1995. Venceu o Concurso Nacional de Contos, na Bahia, o II Prêmio Ceará de Literatura e outros concursos literários realizados em diversos Estados. Está presente em algumas antologias, como O Talento Cearense em Contos. Na poesia, tem os livros Pirilampos, As viagens, O sono das respostas, Na última curva da esperança e O Povoamento da solidão, este ganhador do Grande Prêmio Minas de cultura. É titular da cadeira 29 da Academia Cearense de Letras.

O poeta Francisco Carvalho, também estudioso da Literatura, faz a seguinte observação nas abas do livro Na Trilha dos Matuiús, de José Costa Matos: “Parece lícito supor que o conto, ao contrário do poema, se faz com palavras e com ideias. E também, obviamente, com imaginação e talento”. A obra objeto deste artigo se constitui de dez narrativas. Numa delas, “Um conto, só”, talvez a mais bem realizada do volume, o narrador, Marcos, cujo nome é mencionado apenas uma vez, rumina as suas angústias de querer ser escritor e, assim, mostrar ao povo e às autoridades da pequena cidade onde mora que a falta de diploma acadêmico não o torna menor que o juiz e o vigário. No entanto, sente-me menor, porque não passa de “defensor dativo dos réus pobres”, à falta de advogados na cidade, razão por que a inveja pouco a pouco vai lhe roendo o espírito: “A verdade é que não posso competir com ele em títulos, e isso me dói um bocado”. Essas ruminações lembram alguns personagens de Graciliano Ramos. A linguagem também nos remete à prosa castiça e envolvente do mestre de Angústia. E esse é um dos aspectos positivos no livro de Costa Matos. Mas voltemos ao conto: o protagonista-narrador se propõe escrever um conto e com ele participar de um concurso internacional, na França. Ganhar o prêmio seria realizar um sonho fabuloso: abocanhar quinze mil francos, ter a história publicada na Europa e ver o seu nome “em jornais de dois continentes”. Restava escrever o conto. Rumina aqui, rumina ali, Marcos se convence de que é fácil para ele escrever um conto, pois “tinha gramática” e imaginação. Bastava ler alguns autos de processos criminais, rememorar as secas no sertão e passar uma revista nos “tipos curiosos” do lugar. O assunto da história surgiria disso. Passam-se os dias e nada de o conto germinar. A angústia cresce, pois, sem o conto, ele continuará apenas defensor dativo de réus pobres, professor de “rapazes e moças da sociedade”, conferencista religioso e redator de telegramas dos políticos. Continuará menor do que o doutor Seixas, o magistrado. A história chega ao fim e nada de o conto ser escrito. Porque, apesar de todos os seus conhecimentos do espiritismo, do catolicismo e dos livros, não sabe como se escreve um conto. Talvez faltasse talento ao pobre Marcos. Como também a João Valério, o narrador de Caetés, que “tinha um romance começado na gaveta” e, no final do romance, confessa: “Abandonei definitivamente os caetés: um negociante não se deve meter em coisas de arte”. O que sobrou em Graciliano e não faltou a Costa Matos, ao escrever o conto de um conto que não foi escrito.

Na Trilha dos Matuiús contém crônicas poéticas (“Pedidos de Natal”, “Nada”), crônicas de costumes (“Madrinha Juliana e suas Peiticas”), novelas curtas (“Incêndio na Pedra”, “Uma História de Prefeito”), histórias pitorescas e anedóticas (“O Desmaio de Luís Preto”), contos psicológicos (“Um Conto, Só”, “Pedras na Vidraça”). Em quase todas as narrativas as tramas se desenrolam em cidade pequena do Ceará, seja a Ipueiras real e seus arredores (em “Incêndio na Pedra” há referência à “festa de Nossa Senhora da Conceição, padroeira dos ipueirenses”; em “Uma Usina de Mitos” um personagem pergunta: “Não vê que Ipueiras está cercada de morros?”), seja uma fictícia e mítica urbe do interior do Nordeste brasileiro: Morro do Papoco, com “seus sambas quentes”, Rua de Baixo, Rua de Cima, Rua do Ourives, Morro do Curral do Açougue. Também Fortaleza, ou simplesmente a capital, é palco de um drama, “Pedras na Vidraça”, embora somente na última frase haja menção a uma de suas praias: “Os coqueiros se desequilibravam em colunas oscilantes, sob a brisa de treva da Volta da Jurema”.

As histórias de Na Trilha dos Matuiús ocorrem em tempos variados, algumas nos meados do século XX, antes da televisão; outras, na era do telefone celular. Um personagem se refere a um cavalo-de-pau, seu objeto de desejo. Fala de retretas da banda de música. Tonho Silveira “comprou uma geladeira a querosene”. Dona Josefa “ficava sem outra ocupação que as novelas do rádio”.

Em “Incêndio de Pedra”, Inácio Romão encontra uma Ipueiras modificada, após anos longe da terra natal. Acostumado à cidade grande, bradava: “Cadê o barulho? Cadê o cheiro de fumaça? Me acostumo não! Sou um bicho de máquinas zoadentas. Preciso escutar sirenes de fábricas. Queimem gasolina, meus patrícios, pode ser que o progresso sinta a cheirinho bom e resolva chegar por aqui!” O conto ambientado em Fortaleza menciona a televisão e os automóveis.

Tirante os empresários Santiago Ribas e Sérgio Câmara, do conto acima mencionado, os personagens de Costa Matos são matutos ou vivem em cidade pequena. Alguns são tipos característicos (ou curiosos, como diz um personagem) desse ambiente e surgem, ou são apenas citados, em mais de uma história. O contista frustrado Marcos relembra alguns deles: “Passei uma revista nos tipos curiosos do meu conhecimento: Antônio Té-Logo, Maria Tei-tei, Véi Zuca-do-Oi-Só, Carolina Bunda-Alegre...” São pretas velhas, cozinheiras nas casas dos abastados, como Madrinha Juliana; padres de voz estridente nos sermões, como Salustiano e Feitosa; donas de forrós, como Joaninha Bunda Alegre; fabricantes de viola; cantadores; primeiras-damas; prefeitos corruptos; juízes incompetentes; promotores subservientes; comerciantes de secos e molhados.

Voltemos à linguagem. No meio da narrativa, o personagem Marcos, em seu monólogo bem arrumado, refere-se ao momento em que decide escrever um conto: “Certamente, eu tinha gramática para isso. E imaginação também”. Entretanto, se sabe que somente gramática, estudo, leitura não fazem um escritor. Mesmo que o candidato a prosador tenha também muita imaginação. É preciso algo mais. Talvez talento e dedicação à arte de escrever. Costa Matos certamente tem gramática para escrever. Sua frase é quase sempre curta, sem rodeios. Os verbos e os substantivos se casam de forma precisa, clara, sem a necessidade das muletas dos adjetivos, advérbios, preposições, como neste trecho de “Incêndio na Pedra”: “No princípio das tardes, o céu escurecia, para os lados do nascente. E chovia nas alturas. Aqui em baixo, apareciam umas gotinhas de água, tão leves que voavam na horizontal. Os cachorros, ociosos, tentavam abocanhá-las, na ilusão de comer pequeninos insetos faiscantes”. A descrição é minuciosa, embora sem excessos de palavras. Lembra pintura expressionista ou cenário de filme no campo.

O uso da descrição é discreto nas narrativas de Costa Matos. Somente o necessário para que o leitor imagine o lugar onde os personagens atuam. Em “O Desmaio de Luís Preto” lê-se isto: “Era o domingo entardecer e a poeira subir, no campo ao lado do cemitério novo. Bancas de café, potes de aluá, pirulitos em tabuleiros itinerantes, bandejas de pés-de-moleque”. Em poucas palavras pintou o quadro de uma festa esportiva.

Costa Matos mostra com Na Trilha dos Matuiús que é possível e bom para a Literatura o uso correto da frase, sem se prender demais às regras gramaticais e sem se deixar fascinar pelos modismos e pela banalização da linguagem.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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