quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 27 – 13 de setembro de 1887

Se Deus me dissesse um dia:
— Que desejas tu, Malvólio?
Castelos na Normandia?
Uma biblioteca in-fólio?

“Um punhado de brilhantes,
Grandes como ovos de pomba?
Um batalhão de elefantes,
Marfim puro e extensa tromba?

“Moças, com as quais cantasses
A vida, e pelo estio,
Cantigas velhas que achasses,
Como esta, no peito frio:

“Cajueiro pequenino,
“Carregadinho de flores
“Eu também sou pequenino,
“Carregadinho de amores.

“Ou tendo espíritos altos,
Ir correr desejarias
Perigos e sobressaltos
De Rússias e de Turquias,

“Pegando, com alma icária
E braços impacientes
A coroa da Bulgária,
E defendê-la das gentes?”

Responder-lhe-ia eu, contrito:
— Não desejo, ó verdadeiro
Deus grande, Deus infinito,
Ser castelão nem livreiro,

Nem ter pedras preciosas,
Nem legiões de tamanhas
Alimárias pavorosas,
Vindas de terras estranhas,

Nem bonitas raparigas
Com quem eu cantar pudera
Algumas velhas cantigas,
Cantigas de primavera,

Menos inda, muito menos,
Correr sem mais nada, à toa,
Pequeno entre os mais pequenos,
A apanhar uma coroa.

Não, o que eu quisera, ó divo
Senhor, que mandais a tudo,
O meu desejo mais vivo,
Que me corrói, longo e mudo,

Era entrar pela janela
Do senado... Olhai, não digo
Pela porta. A porta é bela,
Porém já não vai comigo.

A porta, traz como agora,
Obrigações superfinas;
Li-as em prosa canora,
Sobre as eleições de Minas.

A primeira é que resida
O candidato na terra,
Pois se acaso a própria vida
A outra terra o desterra,

Perca as tristes esperanças
De conservar eleitores.
Se há exemplos, são carranças,
Outra quadra, outros amores.

Olindas, Celsos, Correias,
Nabucos e Zacharias,
São estragadas candeias,
De outros homens e outros dias.

Agora, quanto à segunda
Obrigação do diabo,
É igualmente profunda...
Não se quer nenhum nababo,

Que ande assim, como um tesouro,
Em carruagens de prata,
Cavalos ferrados de ouro,
Um jantar em cada pata;

Mas se o candidato é pobre
E passa a vida lidada,
Não entra em funduras. Dobre,
Amigo, dobre a parada.

Ora, eu que há muito suspiro
Pelo senado, e aqui moro,
Lidando, que mal respiro,
Sem o vil metal que adoro,

Uma noite adormecia
Lendo alguma velha história
De Veneza ou da Turquia,
E acordava em plena glória,

Diante do presidente
Aparecia sentado.
Ai, Deus justo, ai, Deus clemente...
Janela... curul... senado...

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

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