Ouvi que algumas pessoas
Entendidas e capazes
De distribuir coroas,
Andam estudando as bases
Da festa que comemore
Uma grave ação recente:
Jantar que a pança devore,
Doce de atolar o dente,
Ou retrato a óleo, e banda,
Com algum palavreado,
Uso desta velha Holanda,
Antigo e repinicado.
Há quem pense em monumento,
Obra fina que reúna
Bronze, mármore e cimento,
Ou busto ou simples coluna.
Em suma, nada que cheire
A inquérito ou a devassa,
Ou cousa que se lhe abeire...
Grande obra e de grande traça.
Porquanto, se aquela preta,
Que ia sendo sepultada,
Não chega a fazer mareta,
E desce tranqüila ao nada,
Se já no caixão metida
E levada ao necrotério,
Não suspira pela vida,
Mistério contra mistério,
Não tinha havido barulho,
É certo, nem artiguinhos;
Tudo acabava no entulho,
Bichinho entre mil bichinhos;
Mas também nem a vitória
Ao inspetor caberia,
Que mandou a preta à gloria,
Aonde ela ir não queria.
Pois no rosto da sujeita,
Que ressurgiu com malícia,
Talvez porque em sua seita
Ninguém morre de polícia,
Tu, sagaz, tu descobriste
Que a morte era cousa certa,
E — vendo quanto era triste
Viver de ferida aberta
No meio desta cidade,
Por mais algum magro dia —
Encheste-te de piedade,
Vibraste de inspetoria.
E perdoando à coitada
O resto da vida horrenda,
Mandaste dar-lhe pousada
Debaixo da eterna tenda.
Ela, que tornou ao mundo,
Entre as cantatas da imprensa,
Torna ao báratro profundo,
Morre sem pedir licença.
Triunfa, inspetor, triunfa
Neste voltarete, filho,
Trunfa, trunfa, trunfa, trunfa,
Que a todos deste um codilho.
Imagina tu se abrissem
Inquérito sobre o caso,
E que afinal concluíssem
Que o teu ato era um desazo;
E que isto de meter gente
Viva em caixão de finado,
Sem exame competente,
Devia ser castigado,
Que cara com que ficávamos,
Agora que a preta é morta!
Seguramente tomávamos
Novas da nossa avó torta.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Entendidas e capazes
De distribuir coroas,
Andam estudando as bases
Da festa que comemore
Uma grave ação recente:
Jantar que a pança devore,
Doce de atolar o dente,
Ou retrato a óleo, e banda,
Com algum palavreado,
Uso desta velha Holanda,
Antigo e repinicado.
Há quem pense em monumento,
Obra fina que reúna
Bronze, mármore e cimento,
Ou busto ou simples coluna.
Em suma, nada que cheire
A inquérito ou a devassa,
Ou cousa que se lhe abeire...
Grande obra e de grande traça.
Porquanto, se aquela preta,
Que ia sendo sepultada,
Não chega a fazer mareta,
E desce tranqüila ao nada,
Se já no caixão metida
E levada ao necrotério,
Não suspira pela vida,
Mistério contra mistério,
Não tinha havido barulho,
É certo, nem artiguinhos;
Tudo acabava no entulho,
Bichinho entre mil bichinhos;
Mas também nem a vitória
Ao inspetor caberia,
Que mandou a preta à gloria,
Aonde ela ir não queria.
Pois no rosto da sujeita,
Que ressurgiu com malícia,
Talvez porque em sua seita
Ninguém morre de polícia,
Tu, sagaz, tu descobriste
Que a morte era cousa certa,
E — vendo quanto era triste
Viver de ferida aberta
No meio desta cidade,
Por mais algum magro dia —
Encheste-te de piedade,
Vibraste de inspetoria.
E perdoando à coitada
O resto da vida horrenda,
Mandaste dar-lhe pousada
Debaixo da eterna tenda.
Ela, que tornou ao mundo,
Entre as cantatas da imprensa,
Torna ao báratro profundo,
Morre sem pedir licença.
Triunfa, inspetor, triunfa
Neste voltarete, filho,
Trunfa, trunfa, trunfa, trunfa,
Que a todos deste um codilho.
Imagina tu se abrissem
Inquérito sobre o caso,
E que afinal concluíssem
Que o teu ato era um desazo;
E que isto de meter gente
Viva em caixão de finado,
Sem exame competente,
Devia ser castigado,
Que cara com que ficávamos,
Agora que a preta é morta!
Seguramente tomávamos
Novas da nossa avó torta.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
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