domingo, 26 de janeiro de 2014

Eunice Tomé (Canais de Santos – Nossas referências)

 Praia José Menino - 1902
Pintura de Benedito Calixto.
Todas as cidades têm seus ícones. Entre os vários marcos que Santos possui, sem dúvida alguma, os canais são os mais referenciais. São como colunas vertebrais que sustentam a parte física de seu traçado, vindas de dentro para fora, do centro para a orla.

Engendrado o projeto pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, solução para o fluxo de águas servidas, seu criador nem imaginava que, por outro lado, suas funções seriam ampliadas como outros meios: de comunicação, de marco simbólico, de brincadeiras e de visual urbanístico.

Vale a pena trabalhar com essa idéia e pensar a obra com olhos poéticos e saudosistas. Quem foi criança em tempos idos, teve, principalmente os meninos, a oportunidade de pegar peixinhos no interior dos canais, pular de um lado para outro e de se perder na longitude de suas águas que avançavam para o mar em dias de maré cheia e de chuva. Esse é um dos registros memoráveis de uma geração inteira, que fugia aos olhos da mãe e, curtindo a liberdade, entrava naquele espaço de prazeres sem fim, inclusive viajando nos barquinhos de papel que chegavam até a barra e atingiam os oceanos.

Na fase juvenil, as beiras ou pontes do canal eram os pontos de encontro dos garotos, que sentavam nas grades para jogar conversa fora e trocar as suas experiências de descobertas de um mundo novo. Era como um santuário, onde eles confessavam que já eram homens adultos, com todos os hormônios a aflorar. Nem tudo era pureza, mas comparando com o momento atual, sem dúvida, eram sacanagens permitidas.

Como marco de comunicação, os santistas costumam dizer que moram no canal 1, 2, 3..., quando na verdade residem em ruas próximas, transversais ou paralelas aos canais. É uma forma de situar, como se dissessem o nome do bairro ou da região. Isso também acontece com os turistas que pouco conhecem o desenho do município, mas acabam por localizar-se pelos canais que cortam toda a avenida da praia.

A sua numeração define ainda, em seu entorno, alguns points marcantes e conhecidos de todos e acabam por ser referências de baladas, de esportes, lazer, ginástica, gastronomia e, bem recentemente, de passeios ciclísticos. Turmas e grupos de jovens também são denominados e conhecidos por esses marcos simbólicos, às vezes havendo até disputa entre eles.

Embora todos os sete canais (sem contar alguns menores que deságuam nos principais) tenham semelhanças em seu visual, cada qual conta com suas diferenças – um tipo de árvore que o ladeia (os jamboleiros do canal 3), uma altura maior mais, uma abertura mais ampla, maior ou menor quantidade de pontes para pedestres e veículos, que cruzam de um lado a outro, e outros tantos detalhes característicos. Todos com sua personalidade própria, completamente integrados ao aspecto urbano.

Os moradores mais velhos, aqueles que têm tempo de refletir sobre a vida e seus enigmas, param para olhar aquelas águas passadas e que, repetidamente, chegam ao mar, em fluxos e refluxos, levando não só dejetos, mas tantos sonhos, lembranças e alegrias. É como um ritual de passagem, onde pela canalização fossem ocorrendo fenômenos de purificação e renovação.

Tudo vai mudando, inclusive as gerações. Só os canais ficam como personagens oculares e guardiões da cidade, nesses cem anos de existência. Seus traçados, como vimos, são mais que marcos físicos. São como veias que singram o corpo e a alma dos santistas.

Fonte:
http://www.geocities.ws/maniadeler_1/cronicas.html

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