Anda agora toda a imprensa,
Ou quase toda, cuidando
De alcançar que, sem detença,
Acabe um vício nefando.
Na brasileira linguagem,
Essa nacional usança
Chama-se capoeiragem;
É uma espécie de dança,
Obrigada a cabeçadas,
Rasteiras e desafios,
Facadas e punhaladas,
Tudo o que desperte os brios.
Há formados dois partidos,
Dizem, cada qual mais forte,
De tais rancores nutridos,
Que o melhor desforço é morte.
Ora, os jornais que desejam
Ver a boa paz nas ruas,
Reclamam, pedem, forcejam
Contra as duas nações cruas.
Referem casos horrendos,
Já tão vulgares que soam
Como simples dividendos
De bancos que se esboroam.
E zangam-se as tais gazetas,
Enchem-se todas de tédio,
Fazem caras e caretas
Por não ver ao mal remédio.
Vou consolá-las. É uso
Das alminhas bem nascidas
Dar, contra o pesar intruso
Consolações repetidas.
Eu (em tão boa hora o diga,
Que me não minta esta pena!)
Tenho aquela corda amiga
Que, em pena, dá eco à pena.
Inda quando a rima saia,
Como essa, um pouquinho dura,
(Ou esta da mesma laia)
É rima que dói, mas cura.
As consolações — ou antes
A consolação é uma;
Trepa tu pelas estantes,
Busca, arruma, desarruma:
E, se tens livros contendo
Decisões de Vinte e Quatro
(Há sessenta anos!) vai lendo
Um aviso áspero e atro.
Lê isto: “Para que cessem
De uma vez os capoeiras,
Que as ruas entenebrecem,
Com insolentes canseiras,
“Manda o imperador, que sabe
E quer pôr a isto cobro,
Dar a pena a que lhes cabe,
E se for preciso, em dobro.
“Recomenda neste caso
Que haja a major energia,
Para que em estreito prazo
Acabe a patifaria;
“E seja restituída
A paz aos bons habitantes,
De modo que tenham vida
Igual à que tinham dantes”.
Ora, se este aviso expresso
(Que é de vinte e oito de maio)
Teve tão ruim sucesso
Que inda fulge o mesmo raio,
Concluo que o capoeira
Nasceu com a liberdade,
Ou deu a nota primeira
Se tem mais que a mesma idade.
Valha-nos isto, que ao menos
Consola a gente medrosa,
E faz de alguns agarenos
Cristã gente gloriosa.
Sete de abril, a Regência,
Depois a Maioridade,
Partidos em divergência,
Barulhos pela cidade,
Guerras cruas e compridas,
Exposições, grandes festas,
Paradas apetecidas,
Tudo viu a faca e a testa...
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Ou quase toda, cuidando
De alcançar que, sem detença,
Acabe um vício nefando.
Na brasileira linguagem,
Essa nacional usança
Chama-se capoeiragem;
É uma espécie de dança,
Obrigada a cabeçadas,
Rasteiras e desafios,
Facadas e punhaladas,
Tudo o que desperte os brios.
Há formados dois partidos,
Dizem, cada qual mais forte,
De tais rancores nutridos,
Que o melhor desforço é morte.
Ora, os jornais que desejam
Ver a boa paz nas ruas,
Reclamam, pedem, forcejam
Contra as duas nações cruas.
Referem casos horrendos,
Já tão vulgares que soam
Como simples dividendos
De bancos que se esboroam.
E zangam-se as tais gazetas,
Enchem-se todas de tédio,
Fazem caras e caretas
Por não ver ao mal remédio.
Vou consolá-las. É uso
Das alminhas bem nascidas
Dar, contra o pesar intruso
Consolações repetidas.
Eu (em tão boa hora o diga,
Que me não minta esta pena!)
Tenho aquela corda amiga
Que, em pena, dá eco à pena.
Inda quando a rima saia,
Como essa, um pouquinho dura,
(Ou esta da mesma laia)
É rima que dói, mas cura.
As consolações — ou antes
A consolação é uma;
Trepa tu pelas estantes,
Busca, arruma, desarruma:
E, se tens livros contendo
Decisões de Vinte e Quatro
(Há sessenta anos!) vai lendo
Um aviso áspero e atro.
Lê isto: “Para que cessem
De uma vez os capoeiras,
Que as ruas entenebrecem,
Com insolentes canseiras,
“Manda o imperador, que sabe
E quer pôr a isto cobro,
Dar a pena a que lhes cabe,
E se for preciso, em dobro.
“Recomenda neste caso
Que haja a major energia,
Para que em estreito prazo
Acabe a patifaria;
“E seja restituída
A paz aos bons habitantes,
De modo que tenham vida
Igual à que tinham dantes”.
Ora, se este aviso expresso
(Que é de vinte e oito de maio)
Teve tão ruim sucesso
Que inda fulge o mesmo raio,
Concluo que o capoeira
Nasceu com a liberdade,
Ou deu a nota primeira
Se tem mais que a mesma idade.
Valha-nos isto, que ao menos
Consola a gente medrosa,
E faz de alguns agarenos
Cristã gente gloriosa.
Sete de abril, a Regência,
Depois a Maioridade,
Partidos em divergência,
Barulhos pela cidade,
Guerras cruas e compridas,
Exposições, grandes festas,
Paradas apetecidas,
Tudo viu a faca e a testa...
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
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