segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) A Saia de Esquilhas

Recolhido no Algarve

Um homem rico tinha três filhas, e costumava ir passar o verão com elas para o campo; ao voltar para a corte ficou a filha mais velha, que era muito esperta, encarregada de arranjar a bagagem. Depois de ter tudo arrumado e pronto para partir, foi ter com a caseira da quinta, que andava no arranjo da sua casa. Em cima de uma caixa estava uma roca com estopa, e a menina pegou nela para se entreter:

– Menina, não pegue nessa roca; pode meter alguma pua pelas unhas, e olhe que faz grandes dores.

A velha continuou a governar a sua casa, quando sentiu um grito; veio ver o que era. Era a menina que tinha caído desmaiada, sem sentidos. Deu-lhe a cheirar alecrim, alfazema, mas ela não voltava a si. Apoquentada com aquela desgraça, escondeu a menina, e logo que anoiteceu foi deitá-la na tapada real; pôs-lhe uma almofada para recostar a cabeça e cobriu-a com uma manta, fingindo que estava ali a dormir. Passado outro dia foi lá ver se a menina teria dado acordo de si. Nada. Calou-se muito calada e voltou para sua casa.

O príncipe costumava sempre andar à caça, e num dia recolheu-se àquela tapada, porque lhe anoiteceu depressa; mas foi grande o seu espanto quando descobriu ali uma menina muito formosa, a dormir, sozinha. Esteve primeiro a olhar para ela muito tempo; já se sentia apaixonado, e quis acordá-la; ela estava corada e risonha, mas não se movia. O príncipe quis acordá-la porque bem conhecia que não estava morta, queria-lhe falar. Foi tudo impossível. Ali ficou junto dela, e todas as vezes que podia, fingia que ia para a caça, mas não fazia senão vir sentar-se para o pé da menina que ele já amava com loucura. Só o criado que o acompanhava é que sabia do segredo. O príncipe vinha à corte de fugida só quando era preciso, e tornava para a tapada, onde guardava a menina adormecida, que ainda assim veio a ter três filhos.

As crianças foram crescendo, e cada vez se tornavam mais encantadoras; mas o príncipe tinha uma grande pena da mãe estar naquele estado. Um dia andando um dos pequeninos a brincar em cima da cama, começou a pegar nas unhas da mãe, e por acaso, sem saber como, fez-lhe saltar da unha a pua que causara aquela doença. O príncipe, que estava ali, ficou maravilhado por vê-la mexer-se logo e começar a falar e a beijar os filhos, como se tivesse voltado à vida. O príncipe contou-lhe tudo como se tinha passado até ali, e disse-lhe que os seus três filhos se chamavam Cravo, Rosa e Jasmim. A rainha já andava desconfiada daquelas ausências do filho, e tratava de ver se descobria alguma coisa.

Uma ocasião o príncipe teve de ir a uma grande feira, e perguntou à sua namorada se queria que lhe trouxesse de lá alguma coisa; depois de muitas instâncias sempre disse:

– Pois traz-me de lá uma saia de esquilhas.
   
Não havia lá isso, mas o príncipe mandou-a fazer de propósito; era uma saia cheia de guizos, que tilintavam. A menina ficou muito contente com a lembrança. Mas a rainha que maquinava a sua vingança, e que pelo pajem que acompanhava o filho já sabia tudo, fez com que o príncipe se demorasse muitos dias na corte. O filho com medo do génio ruim da rainha não dizia nada, mas andava cheio de saudades; foi de uma vez que ela lhe ouviu um suspiro:

– Ai de mim

Cravo, Rosa e Jasmim.

Isto lhe confirmou a verdade; a rainha chamou o pajem e disse-lhe:

– Vai já, quando não mando-te matar, e traz-me aqui o menino Cravo. Diz lá à minha nora que é ordem do príncipe, que me contou tudo.

O pajem trouxe o menino; mas a velha rainha entregou-o à criada dizendo:

– Ensopa-me esse menino para o jantar.

Quando o filho estava jantando, e com fastio, porque andava muito triste, a mãe disse-lhe:

– Come, come, que teu é.

Passados dias a rainha deu ordem ao pajem para ir buscar a menina Rosa. Seguiram-se as mesmas coisas. Depois deu ordem para lhe trazer o menino Jasmim. O príncipe já andava doente, e a velha rainha, dizia-lhe sempre à mesa:

– Come, come, que teu é.

Por fim não contente ainda desta vingança, mandou dizer à nora, que viesse à corte, porque a queria casar com o seu filho. A menina que já andava morta de saudades, por se ver sem os seus filhos, vestiu-se à pressa com sua saia de esquilhas, e partiu para a corte. A rainha estava à espera dela e assim que a viu, deixou-a entrar para um corredor, e lançou-lhe as unhas furiosa para a afogar. A menina lutou para ver se lhe escapava, e quanto mais lutava, mais barulho fazia a saia de esquilhas.

O príncipe, que estava de cama, assim que ouviu aquele som lembrou-se de sua mulher e levantou-se para ir ver o que era. Viu a rainha querendo estrangular a nora. Chamou gente; e foi então que se soube das ordens que a rainha tinha dado para matarem os netos. O príncipe ainda ficou mais aflito e começou a gritar:

– Ai de mim
Cravo, Rosa e Jasmim!

Foi então que a criada da cozinha disse que não tinha cumprido as ordens da rainha, e que tinha escondido os meninos. A rainha foi condenada, e o pajem sentenciado à morte, e a cozinheira em paga foi feita dama da nova rainha.
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Notas Comparativas

O vestido com escamas de ouro com que a menina escapa à ferocidade da sogra é a Aurora depois que brilha vencendo a escuridade maligna da Noite. É um tipo geral deste ciclo novelesco.

No conto hindu intitulado Surya Bai, da coleção Old Deccan Days, de M.Frere, a menina fica com um sono letárgico por causa de um espinho, e é lançada num poço por outra mulher que a vê amada por um príncipe.

Sobre o caráter mítico deste conto pode aplicar-se a consideração de Husson sobre o citado conto hindu: «Temos nesta narrativa o novo exemplo do mito da mulher picada por um espinho ou por uma ponta aguda, e caindo em um sono letárgico de que é tirada por um príncipe amoroso.

Um outro mito se lhe sobrepõe, o de uma rival ou irmã ciosa, que personifica a hostilidade da escuridão contra a luz da primavera contra o inverno; e nesta fase de desenvolvimento novas peripécias se manifestam entre uma morte aparente e um regresso persistente à vida». (La chaine traditionnelle, p. 109).

Nos Contos populares portugueses, Lisboa, 1879, o conto XXXV, Os Sapatinhos Encantados versa sobre um sono letárgico com algumas relações no fim com o nosso.


Fonte:
Wikisource

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