quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 31 – 11 de outubro de 1887

Na semana que lá foi,
Houve cousas do diabo,
Já de vaca, não de boi,
Já com rabo, já sem rabo.

Sem rabo o que apareceu,
Foi a grande tartaruga,
Que naufragou e morreu
Em praia onde o mar se aluga.

Espécie nada comum,
Foi logo classificada,
Sem nenhum erro, nenhum,
E está no Museu guardada.

Ora, é muito de saber
Que a bicha, ao pousar na praia,
Sorriu consigo de ver
Tanta senhora sem saia.

E consigo murmurou,
Porque é animal sabido,
Tanto que Deus lhe botou
Nome latino e comprido:

— “Mostra a gente ao pé do mar
O que numa sala esconde.
Tudo é conforme o lugar,
Preciso é saber aonde.

“E tais encantos em flor,
Que ninguém arrastaria
Pela rua do Ouvidor
De noite, e menos de dia,

“Aqui publicados são
Sem bulha, nem matinada,
Aos olhos do camarão
Que nada, e do que não nada.

“Pascal é que disse bem
Quando da justiça ria:
“Verdade aqui, erro além “.
Cabe o dito à rouparia.”

Com rabo, houve o edital
Da câmara, um documento
Que apareceu no Jornal
No mesmo dia e momento

Em que deviam abrir
As propostas que acudissem ...
Aos que ficaram a rir,
Bradaram que se não rissem.

Que o tenente-coronel
Presidente é que mandara
Compor aquele papel
Que a folha não publicara,

Conquanto a tempo o doutor
Secretário o remetesse...
Não sei se o comendador
Tesoureiro andou com esse.

Pode ser que o general
Procurador da fazenda,
Como é muito bom fiscal,
Não gostasse da encomenda.

Pode ser; mas pode ser
Também que o protonotário
Escrivão, em vez de ler
O Jornal, lesse o Diário.

Ora, em verdade, foi bom
O caso: fico inteirado
Que é de rigor e bom tom
Cargo com título ao lado.

E não escrever papel
Em que venha o presidente
Sem tenente-coronel,
Seria pouco e insolente.

Quanto ao que houve, não de boi,
Mas só de vaca, naquela
Semana que lá se foi,
Certo não foi bagatela.

Foi um projeto que quer
População vacinada,
Seja homem ou mulher,
Gente grande ou criançada.

E não mais se casará
Sem se provar que a menina
E o noivo tiveram já
Ultimamente vacina.

Mas, como falasse alguém
Na câmara contra isto,
Dizendo que a cousa tem
Pecha contra a lei de Cristo,

Responderam-lhe que sim,
Que os noivos terão dispensa
Bastará ao grande fim
Toda a mais lei, que é extensa.

Pois manda revacinar,
Além dos tenros infantes,
Soldados de terra e mar,
Funcionários e estudantes.

Mas por que se há de excluir
Desse dever mal cruento
Quem vai à gente pedir
Um lugar no parlamento?

Quero crer que as ambições
Hão de vir em grande malta,
Suprindo as vacinações
O mérito que lhes falta.

Dir-se-á de um legislador
Morto, que era homem honrado,
Bom caráter, bom senhor,
Modesto e revacinado.

E, pois que um caso esqueci
Da outra semana, digo
Muito à puridade aqui,
Que falta à lei outro artigo.

Falta artigo, pelo qual,
Em caso de desafio,
Pudesse um homem mortal
cortar à pendenga o fio.

Corta deste modo: ouvir
O outro, em lances extremos,
E responder-lhe a sorrir:
“Vacine-se e falaremos”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

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