segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Pedro Salgueiro

Pedro Rodrigues Salgueiro (Tamboril, 1964) tem editados os livros de contos O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar Com Armas (2000), Dos Valores Do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), além de Fortaleza Voadora (2006), de crônicas. Premiado diversas vezes: Prêmio de Contos da Biblioteca Nacional para obras em curso, 1997; Osmundo Pontes de Literatura, 1997; Radio France Internationale (Concurso Guimarães Rosa de Literatura, 1999), e muitos outros. Participa de algumas coletâneas, como Antologia Literária da UECE (1996); Talento Cearense em Contos (1996); Geração 90: Manuscrito de Computador – Org. Nélson de Oliveira (2001); Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século – Org. Marcelino Freire (2004); Contos Cruéis: As narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea – Org. Rinaldo de Fernandes (2006); e Quartas Histórias: Contos baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, 2006). Organizou, em parceria, o Almanaque de Contos Cearenses (1997). Editor, com Jorge Pieiro, da revista Caos Portátil: Um Almanaque de Contos. Uma antologia de seus contos, Dos Valores do Inimigo, foi indicada pela Universidade Federal do Ceará para o vestibular em 2005 e 2006. Tem inéditos Inimigos (Premiado pelo I Edital de Literatura da Fundação Cultural de Fortaleza (2006) e Movimento Esperado.

Com o volume de contos Brincar Com Armas, assume Pedro Salgueiro lugar de destaque no conto cearense, embora O Peso do Morto e O Espantalho já tivessem merecido elogios de críticos do Ceará e do Brasil. Dividida em dois “livros”, o primeiro em seis partes, cada uma com quatro histórias, a obra apresenta unidade temática, de ambiente e de linguagem. Talvez seja equivocada a ideia de unidade temática em livro de contos. Apesar disso, pode-se ver neste terceiro compêndio de narrativas curtas de Pedro Salgueiro como temas primários a morte, a trama da morte, a proximidade da morte (a velhice, por exemplo), o medo da morte e o destino. A morte e as manifestações dela emanadas, como o medo, a paranoia, ou seus motivos, como a vingança. Em “A Volta” o protagonista “sabia que um dia eles o pegariam”. Eis nestas palavras o núcleo da narrativa: a morte, o destino, “o desfecho de tudo”. E a desgraça de fato aconteceu. O homem volta à cidade para morrer, para cumprir o seu destino. Por isso, nem “se assustou quando ouviu o primeiro estampido”. É o Destino das tragédias gregas, de Sófocles. Tinha de acontecer. O narrador-protagonista de “O Olhar” narra uma vingança: tarde morta, com gritos de crianças vindos de bairros distantes, a chegada de trem. Da janela da hospedaria avista a esquina da farmácia. As facadas e o olhar do morto. Em “O Pânico”, narrado na primeira pessoa do feminino, por uma repórter, mais uma vez a morte é o motivo da história, é o próprio enredo. Cenas rápidas de filme, em tempo breve, alguns minutos. O oposto de “Coronel, Coronel”, no qual se observa um drama interminável, uma situação de conflito duradouro e não uma só ação. A loucura instalada na vida de um antigo militar, a quem a meninada das ruas achincalhava aos gritos de “Coronel, coronel, cabeça de pastel”. Alguns contos tratam exatamente da velhice, da caduquice, da solidão dos idosos. Como a de Olga, em “Soluço antigo”. Os velhos são sempre abjetos, como em “Ausência”. Solitário, o velho já não podia dividir com a esposa a sombra do benjamim na calçada, nem o quarto do casal e muito menos espantar os meninos que roubavam goiabas no quintal. Tudo é passado: o tabuleiro de damas, o almanaque velho, as cadeiras de balanço, a caneca de alumínio no beiço do pote, o velho penico de ágata. Tudo é apenas solidão e velhice.

            O enredo de algumas histórias é subliminar, escondido, envolto numa espécie de casca, numa aura de mistério. Em “O Sobrado” o leitor se vê diante do inexplicável, para a ciência e para a fé: uma criança, um bebê, se assusta sem motivo aparente, ao ser conduzida por certa rua. Suas reações estranhas, de choro imotivado, são o ponto de partida da narrativa. Ao final sabe o leitor de uma tragédia ocorrida há tempos: um avô havia caído de uma janela naquela rua. No entanto, mesmo depois de “descoberto” o motivo do susto do bebê ainda se ouvia um choro baixo de criança. Igualmente estranha é “Na Estrada”. Às vezes não se trata exatamente do “estranho”, de que fala Todorov, porém do não-explícito, como no final de “No Carnaval”. Em outras páginas do livro se pode ler uma crônica do patético e do humorístico, como em “A Catraca”.

Exceção feita a alguns contos “policiais” ou de acidentes fatais, como “O Pânico”, “A Rosa Encarnada” e o que dá título ao volume, mais urbanos, o ambiente das narrativas de Brincar Com Armas é quase sempre o “lugarejo” do sertão, a pequena cidade e seus arredores, poucas vezes nomeado, a não a mítica Papaconha, do Livro Segundo. Gumercindo Freire, o protagonista de “A Volta”, entrava pela rua principal de uma cidadezinha. No seu passeio em busca do passado (ou do destino), avista a praça vazia, um benjamim, as calçadas. Caminhava para o desfecho de sua história. Há toda uma descrição-narração do trajeto do personagem, desde o trem, quando avistou os primeiros telhados pela janela do trem.

 Em quase todos os contos há uma rua empoeirada e deserta, a bandinha, a festa do padroeiro, um galo a cantar, a copa de um benjamim, o mercado, a mercearia, a torre da igreja vista da janela do trem, a estação, a calçada, lamparinas de querosene nas casas, uma bodega no final da rua, o cajueiro torto no meio da praça. O velho militar de “Coronel, Coronel” saía para a calçada para enxotar os moleques. Fazem parte deste cenário todo um passado sertanejo: o leite mugido, o açude, as mudas de roupa, as cangalhas e jiraus do alpendre, a trave da janela, a cacimba, a lua da sela do cavalo.

            No Livro Segundo, que se pode chamar do “ciclo Papaconha”, todo narrado em primeira pessoa, as narrativas estão ambientadas num fim de mundo, num sovaco de serra, na mata, num lugarejo escondido no sopé de uma serra, numa cidadezinha insignificante. Embora sejam diversos os narradores, ao leitor parece estar diante de um só narrador épico. Os contos, mesmo se lidos fora da ordem no livro, são como capítulos de romance.

            Um dos narradores estocou armas, montou um observatório. Outro cavou trincheiras no jardim, um túnel, à espera do inimigo. Na verdade, um inimigo imaginário, lendário. “O inimigo imaginário que aguardavam desde o começo dos tempos”, e que “jamais viria, pois ele estava dentro deles mesmos, em seus medos”. Tudo obsessão, como se vê na narração de três semanas de busca da verdade sobre o desvio da linha férrea. Minuciosa busca em antigos papéis na prefeitura (“O Trem”). A busca dos inimigos do passado. Para tanto, o personagem escreveu Os Cadernos da Papaconha. Um “lunático daqui” montou um observatório e havia mais de três anos observava o suposto inimigo. Havia anos planejava novas estratégias. Em “Os Prisioneiros” o narrador vê espiões nos vagabundos, que são presos e açoitados com galhos de urtiga. Como se vê, os personagens-narradores quase sempre se julgam lúcidos, em busca da verdade, enquanto para eles os outros são doidos, lunáticos. Na verdade, são todos loucos ou narram como se loucos fossem. Em “O Batedor” o narrador reconhece que “estava perdendo o juízo”. São todos paranoicos. O título geral, se se tratasse de um romance, até poderia ser “Homens Assustados” ou “O Paranoico” ou simplesmente “Paranoia”.

            Pode-se ver a raiz destas histórias numa espécie de síntese, como se fosse um apontamento do próprio contista, na página 168: “Transcrevi alguns dos fatos com minha letra para que não fossem totalmente destruídos pelo tempo; também havia histórias incompletas que busquei completar com outros achados mais ou menos coincidentes em assunto, grafia e até na maneira de contar, depois costuradas para parecerem uma sequência; na verdade eram descontínuas e retratavam várias versões do mesmo problema, pois, pelo que tudo indicava, foram muitos os indivíduos que se ocuparam em registrar falatórios, lendas e fofocas a cerca do ocorrido (se é que um dia realmente aconteceu algo)”.

            E a aldeia móvel? Em “Os Loucos da Papaconha” os habitantes “arrastam” a aldeia no rumo dos povoados. Como o faziam os índios brasileiros, em fuga ou em busca de lugares mais seguros, mais propícios à vida. Ou em busca do paraíso, da terra-sem-mal. No entanto, em que tempo viviam esses personagens das histórias de Pedro Salgueiro? Possivelmente no início do século XX, pois alguns deles seguiram o bando de Lampião. No entanto, na maior parte do livro não se vislumbra nenhum indício de tempo histórico. Seria, então, um tempo mítico, lendário, não real, o tempo da espera do inimigo que costumava ser confundido com mendigos e até ciganos. Todo estranho na cidade poderia ser um espião. A desconfiança, o medo, a paranoia estão presentes em todos os narradores.

Os contos de Brincar Com Armas são narrados ora na primeira, ora na terceira pessoa, quer seja ela testemunha, quer narrador onisciente ou escondido. Os diálogos são exceções, como em “Na Estrada”, no qual se encontram diálogos internos dentro da narração. Em “A Culpa” há até uma explicação para a ausência de diálogos. “Os dois não se falavam desde o triste dia: ele com suas dores e seus cabelos brancos; ela com suas vergonhas, suas culpas. Calaram-se, como se houvessem compreendido a inutilidade das palavras, o quanto elas poderiam agravar tudo aquilo”. Por isso, o silêncio dos personagens dentro de casa, na amplidão da casa, sempre a vagar (o rapaz) pela casa noite adentro.

                A linguagem é a da narração espontânea, sem rodeios, objetiva, seja na primeira, seja na terceira pessoa, sem descrições longas e enfadonhas e sem aqueles tradicionais e vulgares diálogos diretos, tão frequentes na literatura regionalista ou regionalizada de alguns prosadores.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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