Luciano Gutembergue Bonfim Chaves (Crateús, 1971) é graduado em Pedagogia, pela Universidade Estadual do Ceará, e professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú, em Sobral. Faz mestrado em Educação na Universidade Federal do Ceará. Publicou: Janeiros Sentimentos Poéticos (Crateús: edição do Autor, 1992), de poesias, Dançando com sapatos que incomodam (Fortaleza: edição do autor, 2002) e Móbiles (Fortaleza: Edição do Caos, 2007), ambos de contos. Escreveu para o teatro: As mulheres Cegas (premiado no Festival de Teatro Amador de Acopiara – CE/2000) e Auto do Menino Encantado; e o cordel Como Donana Calunga venceu o mosquito da dengue, adaptado e encenado pelo Grupo Ambulantes.
Luciano Bonfim se revela um escritor inventivo, versátil, que sabe se desviar do lugar-comum da literatura, da narrativa tradicional e linear. O contista não somente se vale da intertextualidade, ao colar trechos de obras clássicas ou contemporâneas, dar-lhes outra roupagem, como presta homenagem a alguns dos ícones da Literatura, ao conceber novas formas a fragmentos de suas criações, como em “O Cálice dos Desesperados”, numa recriação substantiva de um momento da Metamorfose de Kafka, como se lê aqui: “Até que um dia deparou-se com aquele monstro horrível, e sentiu mesmo uma imensa vontade de esmagá-lo”. Em “combinações aleatórias” as homenagens a escritores são claras. Nelas e no processo de diálogo intertextual, Luciano vai dos clássicos (Sören Kierkegaard, Juan Rulfo, Clarice Lispector) aos mais novos, como Caio Fernando Abreu e Jorge Pieiro.
Afeito à intertextualidade, Luciano sabe dialogar com outros textos, não somente os literários. Ao se aproveitar do recurso intertextual, ele o faz muito mais conscientemente do que inconscientemente, como se vê ao citar nomes e títulos de obras.
O contista demonstra afinidade não somente com escritores, mas também com compositores e pintores, como é o caso de Van Gogh. “Ilustração” se inicia assim: “No campo os girassóis lembram um certo pintor holandês ridicularizado em vida”.
Luciano também se socorre muito da descrição, que vem do seu amor à pintura e ao desenho. Como neste trecho de “Variações”: “Existe, após as casas, um imenso terreno baldio e um pequeno sítio onde cultivam flores e hortaliças; também possuem uma colmeia”.
Vejam-se as imagens, pinceladas, descrições em “Após a Neblina Cinzenta do Crepúsculo”, cuja poesia se inicia no título: “Em toda a sua extensão a nossa vila turva-se de vermelho, rosa, roxo, verde, florais – estampas de um enorme e denso colorido. A lua nestas noites, desde as primeiras horas, talvez influenciada por tantas mudanças, compõe-se bordô, – reforçando detalhes e apagando eventuais manchas que possam dissimular imagens”. O próprio narrador (“Naquela mesma lua, na espessa calda que recobre a noite, os traços de Zuita Benoar ganham uma conotação cada vez mais confusa – aspecto de rascunho engolido pela paisagem”) se encarrega de enfatizar a tendência de Luciano pelo desenho, pela pintura, pela paisagem. Em “Aves de Arribação” (clara homenagem a Antônio Sales) se lê: “Durante algum tempo, a corda tensa no espaço e o corpo oscilando suspenso no ar, permaneceram compondo a paisagem, tendo o desvão azul e frio do céu como fundo arbitrário de imagem” (grifo nosso). Em “Estúpido Cupido de Giz” (absorção de parte da letra da música de Neil Sedaka, na voz de Celly Campello, gravada em 1959) outra descrição, outra pintura: “O firmamento é um imenso prato raso, onde todos os canais noturnos do inferno astral convergem para além do firmamento blue”.
Em Luciano há muita poesia, sobretudo nas metáforas, que são abundantes: “Numa noite difusa, silenciosamente, as casas devoraram os seus moradores”. E, se não são metáforas, estamos diante de pura literatura fantástica. Veja-se a poesia deste excerto: “Não me encontrando [em meu coração] especializei-me em vislumbrar abismos”.
Dois de seus personagens – Margot e Gaspar – aparecem em diversas composições, o que levaria o leitor a imaginar a construção de um romance. Talvez houvesse essa pretensão no escritor. Porém, em nenhum momento se percebe nos “móbiles” ou nos “passos” do primeiro livro o espírito de romance.
Em “Terceiro Caderno” o ser fictício está perdido e nem sabe como narrar, ou o que narrar. O de “Não Existe Apenas uma Forma de Amor & Prazer” mais se assemelha a ensaísta, num ensaio do amor e do prazer carnal. Em “Segundo Rascunho” o narrador-personagem está em completa solidão, desespero: “As ruas não estavam desertas, eu estava”. Em “Sobre Naturezas Humanas” o tema central é o ser humano, como a dizer: “Assim são os humanos”. Em “Por Causa do Gato Lilás”, cujo protagonista é um animal, “Tarsila, uma gata siamesa, que conviveu conosco por alguns dias, apaixonou-se pelo ‘gato lilás’ de Aldemir Martins – uma reprodução da tela que possuímos em casa”. Seria a felina também pintora? Em “Correspondência Violada” o tema é a solidão do escritor, os sonhos literários, e seu cotidiano doméstico.
Em muitas peças nada se vê de descrição ou mesmo de informação geográfica. No entanto, aqui e ali se percebe como espaço das ações a cidade do interior. “Sina” é todo composto de referências ao ambiente rural, em vocábulos e expressões de uso comum no sertão. “Viúva de Marido Vivo” também retrata o ambiente de pobreza, a seca. Em “Apesar de.” “Uma pequena chuva ainda insiste, e desliza pelos telhados da pequena cidade”.
A chuva é outro elemento frequente na obra de Luciano, talvez exatamente em face da escassez dela no Ceará. Em “Blues da Finitude.” se lê: “Uma pequena chuva, dessas que não divergem opiniões e nos estimulam ao sexo, lambeu por toda a noite a cidade insone”.
Um conto só é bom se tiver um bom desfecho. Como em “Negócios Importantes para o Futuro da Empresa”: “Dali a pouco, ela pegaria a sua filha no colégio e eu me encontraria com o seu marido, para tratarmos de negócios importantes para o futuro da empresa”. Belo deslinde, inusitado, embora realista.
Luciano se serve das mais variadas formas ou modalidades de comunicação: a carta – o que não é novidade – (como em “Cartas a Van Gogh”), a propaganda, a conversa fiada, o anúncio, a frase feita, o lugar-comum, o ditado (em “Na Brevidade das Fugas” a pessoa que dialoga com Maria e também o narrador fazem uso constante dessa linguagem). O mesmo recurso é utilizado em “De Natureza Cíclica”. Há até uma “Conversa entre Liquidificadores” (ilegível para o leitor humano, talvez legível por outros liquidificadores, que falariam de si mesmos ou dos humanos, de suas engrenagens, de seu trabalho diário, etc. Sim, sobre o que “conversam” os liquidificadores? Sobre os humanos ou sobre si mesmos?) Em “Noturnos Ópios No 9” Luciano aproveita a fórmula das questões de prova escolar. Em “Variações” encontramos até o que se poderia chamar de relatório oficial: “Casas: iguais e diferentes. /Moradores: análogos e divergentes. /Situações: semelhantes e distintas”. Em “Apesar de.” a forma utilizada é a do diário, o que também não é novidade.
Muitas de suas composições são bem curtas, constituídas de diálogos breves, quase enigmáticos. Outras são compostas apenas de uma fala e uma narração breve, como em “Implicações Clandestinas das Herméticas Influências”. “Intervenção Urbana” seria uma síntese de um acidente ou suicídio. Em “Original Lugar Comum” ele brinca com as fórmulas filosóficas, os sofismas, etc. Em “A Realidade Segundo H. P. Down” de novo a linguagem dos filósofos ou uma paródia filosófica. Ou conclusões lógicas, como em “O Filho Alérgico e a Mãe Protetora”.
Luciano também aproveita com cuidado a sequência de vocábulos ideologicamente análogos, para construir a frase, o enunciado narrativo, como em “Manhã Guardada”: “Confissões, namoros feitos, mágoas, traições refeitas, álcool, amores desfeitos, mulher amada, punhais, olhares penumbros, bichas pavão, lésbicas fumadas, viciados utópicos – a praça para além dos bancos”. Ou em “Filhos de mãe d’água”.
Tudo isso faz de Luciano Bonfim um escritor absolutamente moderno, novo, embora não se desfaça das fórmulas consagradas de narrar ou escrever, não se afaste dos narradores essenciais e, acima de tudo, não pense que inventou a roda, a pólvora ou mesmo o conto.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
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