sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Trova 323 - Nilsa Alves de Melo (Maringá/PR)

Imagem: hermesfernandes.blogspot.com

Olivaldo Junior (Um professor..)


"Quero falar de uma coisa / Adivinha onde ela anda / Deve estar dentro do peito / Ou caminha pelo ar"... Quem não se lembra dessa linda música de Milton Nascimento e de Wagner Tiso? Pois ela acabou virando um hino quase obrigatório em todas as formaturas Brasil afora desde que fora lançada, em 1983, além de se tornar a música que marcou a morte do ex-presidente Tancredo Neves, sendo executada inclusive durante o seu funeral. Coração de Estudante... Existe ideia mais pura de coração, mais genuína de real interesse pelo mundo, pela vida, por tudo o que existe e pode ser melhorado? Se há um estudante, há um professor.

Um professor que se desvela em mil cuidados pelo ingressante na Educação Infantil, continuação de pai e de mãe, antigamente chamada (sim, eram e ainda são quase todas mulheres) de "tia". Hoje, muitas vezes, apenas "prô". Mas o que importa é que, muitas vezes, é a "prô" quem dá o carinho que a criança não tem em casa e acaba assumindo no coração infantil um papel ainda maior que o esperado. É a mãe, a tia e até a prô numa só professora!

Um professor que ensina as primeiras letras, o alfabeto todo e se distancia, para que o aluno aprenda a escrever seu destino com as próprias mãos. Mãos que, amanhã, serão de médicos, engenheiros, administradores, comerciantes e de muitos outros profissionais, até de professores. Mãos que, com certeza, se emocionarão quando pensarem no rosto de quem às vezes ficava bravo e pegava no pé do menino e da menina que não queria aprender com ele.

Um professor que domina uma sala de adolescentes, todos conectados, em mil redes sociais, com a atenção difusa, dispersa, tendo que chamar a atenção para uma matéria que, para os jovens, nem sempre tem graça, nem sempre faz sentido. Alguém que acaba caricaturado, com sua característica própria em lente de aumento, por algum aluno, mestre em sátira. Um professor que, apesar da desvalorização geral, consegue passar o que é preciso.

Um professor que lida com alunos universitários, adultos, mas que, ao se sentarem na cadeira de uma sala de aula, voltam a ter oito, nove, ou treze anos, porque aluno é sempre aluno, não importa a idade. Mesmo com toda a tecnologia e com o "poder" de formação de texto em nossas mãos, quando se vê sob as mãos de um professor, um aluno espera dele a mão da professora do início, que tantas vezes lhe guiou a mão pelo papel, hábil na conduta.

Um professor que também educa jovens e adultos que não puderam aprender na "idade certa" (entre aspas, porque, na verdade, toda idade é a mais certa para aprender). Professor que tenta suprir a falta de tantos outros professores, lacunas de tantos outros ensinamentos que ficaram pelo caminho. O aluno da E.J.A. requer o carinho, o apoio de quem é professor, um professor de verdade, e ensine os seus olhos a lerem o mundo com olhos letrados, ágeis.

Um professor que ensina o que ele sabe e domina. Um professor que muda sua comunidade e respira modernidade. Um professor que é pura poesia para o aluno que só teve conversa fiada. Um professor que se torna com o tempo o próprio tempo, veloz em saber a resposta, mas ainda mais rápido em saber que ninguém sabe tudo. Um professor que se chama de amigo, de eterno, de mestre. Um professor que demonstra respeito e o recebe também.

"Coração de estudante / Há que se cuidar da vida / Há que se cuidar do mundo / Tomar conta da amizade"... Amizade. Amizade de um professor que seja estudante a vida inteira. Um professor que não se veja parte de pesquisa sobre o crescimento da violência também em sala de aula. Um professor que seja a coruja e (por que não?) a águia que inspirará seu aluno a novos céus de alegria. Um professor que eu poderia ter sido. Um professor que posso ser?...

* Texto originalmente publicado na edição de sábado, dia 14/10/2017, no jornal impresso Gazeta Guaçuana, de Mogi Guaçu, São Paulo, para o Dia do Professor (15 de Outubro).

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

João Batista Xavier Oliveira (Poemas Recolhidos) I


À LÁGRIMA

Quando a esperança acorda um sonho leve
e o som da natureza se aprimora;
penumbras do passado vão embora
e o toque do relógio não se atreve...

Quando o aperto de mão à paz aflora
e a dúvida do amor torna-se breve;
o gelo da pintura vira neve
e o justo com justiça não demora...

Ressurgem as latentes pradarias;
os olhos não se enganam com a fala
e a liberdade enfim mais aparece.

Tertúlias fraternais noites e dias
lapidam o poeta que se exala
e à lágrima fervente desfalece!

JOIO

Por que nós complicamos singelezas
pelo simples sabor de afirmação;
por que não escutar o coração
que pulsa as vibrações das incertezas...

se temos ao alcance o corrimão;
degraus que facilitam mãos coesas;
o dom de emocionarmos às belezas...
Por que só ver a luz na escuridão?

Estamos de passagem simplesmente.
Abrindo com desvelo nossa mente
o mundo é bem maior em nosso espaço.

Por que nós complicamos as passagens
seguindo a realidade das miragens?
A vida é bela e o tempo é bem escasso! 

HARMONIA DO OLHAR

Um mavioso som espargiu-me à mente
de repente, alucinadamente,
ao deparar-me no alarme do olhar
do teu mundo de olhar.
No ínfimo espaço do nosso íntimo
apenas o som das veias
que incendeias nas entranhas.
Uma canção acaricia
Os nossos tatos dos olhos.
Latente harmonia
explode em êxtases...
E deparamo-nos no santuário
onde a pauta é infinita.
É o coral do suprassumo!
Ali mesmo se chega às estrelas!
Nossos corpos são nossos olhos!
Adentramos nas almas
e purificamos a eternidade!!

ESCRAVO DO ADEUS

Um lenço branco ao longe é uma constante
na solidão que eu mesmo construí,
escravo do meu ego ao seu talante;
verdugo da humildade que perdi.

No pensamento agora tão errante
vislumbro espelho frágil que parti.
Malgrado a juventude me acalante
macróbio em lassidão detenho aqui.

Foi tudo uma serpente intempestiva.
Fugimos em veredas dolorosas...
mas hoje estás feliz, muito bem viva.

Divides teu caminho com as rosas...
e eu somo à solidão a minha vida
multiplicando as mãos da despedida!

...E A VIDA CONTINUA

Aos poucos meus amigos vão embora...
Saudade hospitaleira abre janelas
e os ares das paisagens amarelas
aumentam o vazio que devora.

As mãos saudosas ficam sem aquelas
que tanto me afagaram mundo afora
nas horas tristes bem fora de hora
e nos momentos das tertúlias belas.

E assim eu sinto que também vou indo
na esteira da fatal apoteose.
Sublime é caminhar sempre sorrindo

sabendo que ao beber da mesma dose
os planos das paisagens verdejantes
ressurgirão sorrindo como antes

Fonte:
Poemas enviados pelo autor

Isabel Furini (Línguas Viperinas)


Minha amiga J. adora bons restaurantes. E quem não adora?... O problema é que minha amiga gasta a maior parte de seu polpudo salário em restaurantes. Há quatro meses ele decidiu mudar. Iniciou um regime. Continuava frequentando restaurantes chiques, mas em vez de pedir carnes e massas, começou a se conformar com saladas e alguma carne magra de frango ou de peixe. E os resultados começaram já estavam presente no primeiro mês. Aquele início tímido, poucos notado pelos outros, mas notado pela roupa que passa de apertada a um pouco folgada. E como dá alegria!

Pois bem, amiga ligou, convidou-me para almoçar em um shopping. Nos encontramos lá, olhamos lojas e depois fomos até a praça da alimentação. Ela, orgulhosa, só colocou no prato frango grelhado e salada variada. Na mesa do lado havia uma senhora sentada olhando para o prato de minha amiga. Mexia a cabeça para um lado e para outro com ar de reprovação. O que seria?

De repente, com voz de mãe autoritária dirigiu-se a minha amiga dizendo: “Não adianta querida, já não adianta, não vai dar resultado, você deveria ter pensado antes... agora é obesa não tem mais nada para fazer”. Depois dessa frase maldosa, levantou-se e saiu como de cabeça erguida, orgulhosa de seu ato de maldade.

Minha amiga olhou o prato, observou a própria barriga proeminente, e eu percebi que seus olhos se enchiam de lágrimas.

Tentei animá-la: - “Deixe falar, nem se preocupe”. E ela secou a lágrimas e sorriu - foi um sorriso forçado.

Antes de sair do shopping comprou um bombom e o deglutiu com prazer. Dias depois, ligou dizendo que não valia a pena fazer regime... só cirurgia de estômago podia ser uma solução. - “Mas você estava indo tão bem!” – exclamei.

- “Não sei não”, disse ela, “a mulher do restaurante tem razão não regimes não dão resultado”.

Minha primeira reação foi dizer que a mulher do restaurante, essa cobra com forma humana, deveria olhar para a própria vida, em vez de meter o nariz onde não é chamada. Eu deveria ter jogado o prato na cabeça dela - falei para minha amiga e ela riu.

Ao desligar fiquei pensando o que ganham essas pessoas de língua viperina que estão sempre procurando humilhar, ofender, e fazer desistir a quem tem um objetivo. Será que antes de dormir contabilizam os danos provocados com suas palavras e gritam:

- “Hoje consegui destruir três pessoas. Uauu! Eu sou demais! Qual será o triste dividendo que essas pessoas estão ganhando?…”

Fonte:

Academia Ituana de Letras (Convite para 20 de outubro)


A Academia Ituana de Letras e o Museu da Energia de Itu convidam para o Encontro Cultural “Poesia Brasileira” que contará com a participação de Acadêmicos e do cantor Edson D’aísa em performance com poetas da ACADIL. 

Entrada franca.

20 de outubro de 2018, sábado, 10h
Museu da Energia de Itu
Rua Paula Souza, 669, Itu/SP

Convite para Premiação em Formiga/MG (19 out - 19h30)

Solenidade de Entrega de Prêmios do nosso "7º Troféu Formiga de Letras", a ocorrer no dia 19/10/18 às 19:30 horas, no Auditório 1 do UNIFOR-MG.



Fonte:
Paulo José de Oliveira
Presidente do Clube Literário Marconi Montoli - CLMM

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Leandro Bertoldo Silva (Mentiroso Profissional… Quem?)


Uma vez fui arrebatado por um pensamento de João Ubaldo Ribeiro: “todo escritor é um mentiroso profissional”! Logo me lembrei de alguns, cuja vida – ou fim dela – já parecia uma embustice. Guimarães Rosa, por exemplo, ao ser aceito na Academia Brasileira de Letras, levou 4 anos para tomar posse com medo de morrer, pois foi advertido por um pai de santo que seu exício se daria logo após um grande acontecimento. Morreu sozinho em seu apartamento, no Rio de Janeiro, de um infarto fulminante dois dias depois a tão adiada posse... O que dizer de Monteiro Lobato? Uma boneca de pano falante e um sabugo de milho sabido, vá lá! Mas um porco marquês?! Bem, levando-se em conta que sempre inventamos histórias e até quando as recontamos fazemos jus àquela velha máxima de “quem conta um conto aumenta um ponto”, quem sabe até dois ou três, é bem possível que isso seja verdade. Mas nada se compara ao que um dia me aconteceu...

Estava eu em meu computador enveredando-me por entre palavras e acentuações, pondo pontos semânticos em ilusões gramaticais à espera de uma história que teimava em não vir, quando ouço um chamado no portão. Justo agora em que uma vírgula brigava com os dois pontos e a enfastiada história esperava inerte a sua vez quase desistindo de vir á luz? Mesmo assim, dei cabo à discussão e não muito com vontade fui ver quem era.

— Bom dia! — disse-me uma voz vinda de um homem não muito alto, não muito baixo, de bigodes e barba bem aparadas aparentando seus 45 anos de idade de uma vida que, se bem vivida, não daria para afirmar.

— Bom dia. O que deseja?

— O senhor é escritor, não é?

A pergunta veio direta, firme, sem rodeios. Reparei que o homem trazia um livro nas mãos: “As Areias do Imperador”, de Mia Couto. Antes mesmo que eu pudesse responder, ele se adiantou:

— Na verdade, seu Mia, fiz essa pergunta apenas para dar início ao motivo pelo qual vim a sua casa. Sei muito bem quem é o senhor. Acabei de ler este seu livro e o achei magnífico.

Tive um sobressalto. Por alguns segundos que mais me pareceram horas, não sabia o que dizer nem o que fazer; se olhava para o senhor, se olhava para o livro. Certamente fiz as duas coisas seguida de uma puxada de ar preparando-me para desfazer a ilusão maluca daquele pobre homem que, só não era lunático, pelo fato desse acontecimento de sermos confundidos ser algo até natural entre os escritores, acredite se quiser.

A bem da verdade isso já havia acontecido comigo outras vezes, o que jogou outra ideia semântica na minha puxada de ar de há pouco, dando a ela um tantozinho de raiva somente abrandada por ter sido confundido não com um escritorzinho qualquer... O peixe dessa vez era bem grande! Confesso que fiquei até lisonjeado pela patuscada criada pelo homem, tanto porque tenho muita fé no meu taco, mas daí a ser o Mia morando no Brasil... E, assim, era preciso jogar o peixe de volta ao mar. Mas antes mesmo de abrir o anzol, o homem já havia recolhido a vara – era rápido o danado – e, enumerando comentários e passagens do livro, já foi entrando portão adentro, acomodando-se na cadeira da varanda e convidando-me a fazer o mesmo. Não pude deixar de lembrar-me mais uma vez do João Ubaldo ao dizer que “não há de haver profissão mais louca do que a de escritor".

Aquele homem já estava me parecendo um personagem. E eu ali estranho em minha própria casa. Como isso era possível, como é que eu era dono da casa um minuto antes e visita um minuto depois? O fato é que ali estava eu sendo convidado a me sentar por um homem que, cordialmente, me pedia para ficar a vontade. Por um milésimo de segundo achei-o cretino, irresistivelmente cretino e resolvi naquele instante devolver a cretinice assumindo quem ele me delegava. Aquilo já me parecia um enredo de uma história, dessas tiradas não se sabe de onde nem por que, mas com um personagem que começava a ditar a ordem dos acontecimentos. Como é assim mesmo que me acontece ao escrever, indo sempre os cavalos a frente do imperador, resolvi dar sequência à situação:

— Muito bem... Quer dizer que gosta mesmo do que escrevo? – perguntei fazendo a maior cara de escritor.

— Oh, muito! Já li todos os seus livros. O acompanho há bastante tempo.

— Não diga...

Aquele homem não era cretino, era louco e aquilo uma maluquice de pedra. Tinha mesmo uma pedra em meu caminho ou no meu caminho tinha uma pedra? Sei lá, mas sei que entre eu e o homem tinha um livro que era tido como meu sem nunca ter sido. Não sabia bem por que não acabava logo com aquilo, não jogava ao vento toda aquela história e dizia logo ao homem: “meu filho, eu não sou quem você pensa!” Misericórdia! Isso soava terrivelmente clichê, bem aos moldes de novela mexicana e isso eu não podia admitir. Começava ali um verdadeiro pesadelo, pois desistira completamente da brincadeira cretina e tudo o que eu mais desejava era me ver livre do homem. Porém, o fato de vê-lo magoado em sua fantasia reprimia-me, sem dizer que o pobre coitado ficaria extremamente sem graça. O que fazer? Eis que veio uma luz! A foto! Na orelha dos livros do Mia sempre tem a sua foto. Era só o homem comparar e estava tudo resolvido. Mas um outro pensamento me ocorreu... Era bem provável que acontecesse uma inversão de constrangimentos, pois seria ele a ficar sem jeito de ter que reconstruir aquela bagatela achando que seria eu o magoado. Mas vá lá! É assim ou de jeito nenhum...

— O senhor vai me desculpar, mas...

Já disse que o homem era rápido? Pois parecia a fome com a vontade de comer. No que eu estava pronunciando o “mas”, o sujeito sacou do bolso uma caneta, abriu o livro e quis me ditar enternecido uma dedicatória – sim, isso acontece – algumas pessoas ditam o que querem que escrevamos para elas, como se fôssemos grandes amigos. E agora? Frente à alegria do homem que me tinha como alguém que ele acreditava que eu fosse, poderia escrever a tal dedicatória e educadamente dizer que estava ocupado, que ele me desculpasse... Ele entenderia, sairia feliz e eu me livraria daquela fantasia paranoica de uma vez por todas.

— Certo! – disse decidido para o homem – vamos lá...

— Escreva aí! – sentenciou ele – “para o meu grande amigo Bartolomeu, companheiro de muitas batalhas, lembrando dos tempos em Moçambique...”

Ah, não! Já era demais! Eu nunca havia ido a Moçambique, aquilo não estava certo e definitivamente já tinha passado dos limites. Diplomacia à parte, mas, embora um “mentiroso profissional”, uma coisa era inventar gente que não existia, outra era me passar por alguém que não fosse. Enchi-me de coragem e disse finalmente:

— Olha, você vai me desculpar, mas eu vou ter que ser franco com você. Eu não sou o Mia Couto.

O homem ficou meio assim... Arqueou a sobrancelha, e após um breve silêncio, num gesto de desembaraço olhando para mim, arrematou:

— Ora, não faz mal! Eu também não sou o Bartolomeu…

Fonte:
Texto enviado pelo autor, editor do blog literário Árvore das Letras

Antonio Brás Constante (Bem versus mal [façam suas apostas])


O bem e o mal. Para alguns estes conceitos antagônicos vivem em eterna guerra. Uma guerra que começa em vida e termina na morte. Onde a partir daí, cada um vai para o seu reduto. Uns seguem iluminados, embalados pelo som de harpas tocadas por anjos voando rumo ao céu azul. Outros compram passagem expressa para descida sem volta aos confins do inferno. Cada um seguindo de acordo com sua escolha de vida.

Mas, discordo dos que dizem que existe uma luta entre o bem e o mal. Afinal, o bem não luta. Prefere uma saída diplomática e pacífica para a situação. Não acredita que violência seja a solução para qualquer tipo de conflito. Etc. O mal, por sua vez, também evita qualquer tipo de duelo, pois, apesar de perverso, é covarde (e covardes não lutam). Prefere uma tocaia básica. Um tiro pelas costas. Um veneninho servido em alguma salada, ou outra ideia traiçoeira qualquer, para que as suas chances de vitória sejam obtidas de forma fácil e sem muito esforço.

Apesar do que as pessoas pensam, o pior inimigo do mal é o próprio mal. O bem compartilha. Doa. Ampara. Algo detestável para aqueles que têm pretensões maléficas. Porém, de muita valia para se arrebanhar os bens do bem. E em matéria de surrupiar, o mal é muito bom. Nos embates entre essas duas forças, surgem junções pouco amistosas, pois, a partir de seus confrontos, tudo fica bem mal. Mas como alguns males vêm pra bem, as coisas acabam voltando ao normal, deixando para a próxima batalha uma possível decisão para o sempre fatídico “confronto final”.

O mal não gosta do trabalho, pois dizem que o trabalho enobrece, e enobrecer não está nos planos de quem quer ser mal. Para ele a semana deveria ter cinco dias de descanso, e dois de feriado. Isso demonstra que mesmo o mal tem o seu lado bom de viver, com pensamentos próximos aos anseios da maioria das pessoas.

O ser vil não gosta de servir. Prefere ser servido. Adorado. Retribuindo com toda maldade possível de se praticar. Todos esses atributos detestáveis o deixam em desvantagem frente ao sucesso. Mas o mal é esperto, e está sempre querendo se dar bem, achando formas inovadoras que impeçam os seus planos de irem mal.

O mal é o doce veneno que mata. O bem é o amargo remédio que cura. O mal é uma floresta escura, cheia de perigos e encantos, com lobos espreitando em cada um de seus recantos. O bem é campo florido, lugar onde pastam ovelhas, bezerros e vaquinhas malhadas. O bem é o amor puro e iluminado. O mal é a essência do pecado, vontade insaciável de supremo poder. É fogo que arde envolto em sombras, que chama para junto de suas chamas, incendiando vontades com promessas de prazer. O bem é o lugar seguro, é serenidade. Consciência que nos faz refletir. É estender a mão aos que precisam. É mesmo triste ter coragem de sorrir. O mal é inquieto, sem raízes onde se fixar. Segue nômade, procurando vítimas para atacar. É sedutor. Alegre em ser amoral. Superficial. Gosta de estender a mão para empurrar. Sorrir das tristezas que possa provocar.

Nós, seres humanos, somos invólucros que contêm generosas parcelas do bem e do mal, que estão gravadas em nossa existência, sussurrando em nossos ouvidos em cada decisão a ser tomada. Dizendo-nos para fazer assim ou assado. Sinalizando caminhos a seguir, na incerteza de chegar. A decisão final é nossa. O bem e o mal ficam guardados em nossas entranhas, esperando uma brecha para tomar as rédeas de nossas vidas e passar enfim a guiá-las rumo à essência de suas (ou nossas?) próprias vontades.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

Euclides da Cunha (Poemas Escolhidos) II


ONDAS

Correi, rolai, correi — ondas sonoras
Que à luz primeira, dum futuro incerto,
Erguestes-vos assim — trêmulas, canoras,
Sobre o meu peito, um pélago deserto!

Correi... rolai — que, audaz, por entre a treva
Do desânimo atroz — enorme e densa —
Minh'alma um raio arroja e altiva eleva
Uma senda de luz que diz-se — Crença!

Ide pois — não importa que ilusória
Seja a esp'rança que em vós vejo fulgir...
— Escalai o penhasco ásp'ro da Glória...
Rolai, rolai — às plagas do Porvir!
[1883]

EU QUERO

Eu quero à doce luz dos vespertinos pálidos
Lançar-me, apaixonado, entre as sombras das matas
— Berços feitos de flor e de carvalhos cálidos
Onde a Poesia dorme, aos cantos das cascatas...

Eu quero aí viver — o meu viver funéreo,
Eu quero aí chorar — os tristes prantos meus...
E envolto o coração nas sombras do mistério,
Sentir minh'alma erguer-se entre a floresta de Deus!

Eu quero, da ingazeira erguida aos galhos úmidos,
Ouvir os cantos virgens da agreste patativa...
Da natureza eu quero, nos grandes seios túmidos,
Beber a Calma, o Bem, a Crença — ardente a altiva.

Eu quero, eu quero ouvir o esbravejar das águas
Das asp'ras cachoeiras que irrompem do sertão...
E a minh'alma, cansada ao peso atroz das mágoas,
Silente adormecer no colo da so'idão...
[1883]

REBATE 
(Aos padres)

Sonnez! sonnez toujours, clairons de la pensée.
V. Hugo

Ó pálidos heróis! ó pálidos atletas —
Que co'a razão sondais a profundez dos Céus —
Enquanto do existir no vasto Saara enorme
Embalde procurais essa miragem — Deus!...

A postos!... É chegado o dia do combate...
— As frontes levantai do seio das so'idões —
E as nossas armas vede — os cantos e as ideias,
E vede os arsenais — cérebros e corações.

De pé... a hora soa... esplêndida a Ciência
Com esse elo — a ideia — as mentes prende à luz
E ateia já, fatal, a rubra lavareda
Que vai — de pé heróis! — queimar a vossa Cruz...

Vos pesa sobre a fronte um passado de sangue.
— A vossa veste negra a muit'alma envolveu!
E tendes que pagar — ah! Dívidas tremendas!
Ao mundo: João Huss — e à Ciência: Galileu.

Vós sois demais na terra!... e pesa, pesa muito
O lívido bordel das almas, das razões,
Sobre o dorso do globo — sabeis — é o Vaticano,
Do qual a sombra faz a noite das nações...

Depois... o século expira e... padres, precisamos
Da ciência c'o archote — intérmino, fatal —
A vós incendiar — aos báculos e às mitras,
A fim de iluminar-lhe o grande funeral!

Já é, já vai mui longa a vossa fria noite,
Que em frente à Consciência, soubestes, vis, tecer...
Oh treva colossal — partir-te-á a luz...
Oh noite, arreda-te ante o novo alvorecer...

Oh vós que a flor da Crença — esquálidos — regais
Co'as lágrimas cruéis — dos mártires letais —
Vós, que tentais abrir um santuário — a cruz,
Da multidão no seio a golpe de punhais...

O passado trazeis de rastro a vossos pés!
Pois bem — vai-se mudar o gemer em rugir —
E a lágrima em lava!... ó pálidos heróis,
De pé! Que conquistar-vos vamos — o porvir!...
[1883]

GONÇALVES DIAS (AO PÉ DO MAR)

Seu eu pudesse cantar a grande história,
Que envolve ardente o teu viver brilhante!...
Filho dos trópicos que — audaz gigante —
Desceste ao túmulo subindo à Glória!...

Teu túmulo colossal — nest'hora eu fito —
Altivo, rugidor, sonoro, extenso —
O mar!... O mar!... Oh sim, teu crânio imenso —
Só podia conter-se — no infinito...

E eu — sou louco talvez — mas quando, forte,
Em seu dorso resvala — ardente — Norte,
E ele espumante estruge, brada, grita

E em cada vaga uma canção estoura...
Eu — creio ser tu'alma que, sonora,
Em seu seio sem fim — brava — palpita!...
[1883]

VERSO E REVERSO

Bem como o lótus que abre o seio perfumado
Ao doce olhar da estrela esquiva da amplidão
Assim também, um dia, a um doce olhar, domado,
Abri meu coração.

Ah! Foi um astro puro e vívido, e fulgente,
Que à noite de minh'alma em luz veio romper
Aquele olhar divino, aquele olhar ardente
De uns olhos de mulher...

Escopro divinal — tecido por auroras —
Bem dentro do meu peito, esplêndido, tombou,
E nele, altas canções e inspirações ardentes
Sublime burilou!

Foi ele que a minh'alma em noite atroz, cingida,
Ergueu do ideal, um dia, ao rútilo clarão.
Foi ele — aquele olhar que à lágrima dorida
Deu-me um berço — a Canção!

Foi ele que ensinou-me as minhas dores frias
Em estrofes ardentes, altivo, transformar!
Foi ele que ensinou-me a ouvir as melodias
Que brilham num olhar...

E são seus puros raios, seus raios róseos, santos
Envoltos sempre e sempre em tão divina cor,
As cordas divinais da lira de meus prantos,
D'harpa da minha dor!

Sim — ele é quem me dá o desespero e a calma,
O ceticismo e a crença, a raiva, o mal e o bem,
Lançou-me muita luz no coração e na alma,
Mas lágrimas também!

É ele que, febril, a espadanar fulgores,
Negreja na minh'alma, imenso, vil, fatal!
É quem me sangra o peito — e me mitiga as dores.
É bálsamo e é punhal.

Fonte:
Euclides da Cunha. Ondas e outros poemas esparsos.
Rio de Janeiro: 1883.

Malba Tahan (A Lenda da Embriaguez)


Preparava-se Noé para plantar a primeira vinha e eis que surge diante dele a figura negra e hedionda do Demônio.

— Que pretendes plantar aí? — perguntou o Demônio.

— Uma vinha! — informou Noé, encarando com olhar sereno o seu insolente interrogante.

— E como são os frutos que esperas colher, meu velho? — inquiriu friamente o Demo.

— Ora — explicou o Patriarca de bom humor —, são frutos deliciosos, sempre doces. Os homens poderão saboreá-los maduros e frescos ou secos e açucarados. Do caldo desse fruto poderá ser fabricada uma bebida — o vinho — de incomparável sabor. Essa bebida levará alegria e inspiração aos corações dos mortais!

— Quero associar-me contigo no plantio dessa vinha! — propôs o Demônio com certo acinte na voz.

— Muito bem — concordou Noé. — Trabalhemos juntos. Ficarás, desde já, encarregado de regar a terra.

E o Demônio, no desejo de agir pela maldade, regou a terra com o sangue de quatro animais tirados da Arca: o cordeiro, o leão, o porco e o macaco.

Em consequência desse capricho extravagante do Maligno, aquele que se entrega ao vício degradante da embriaguez recorda, forçosamente, um dos quatro animais. Bem infelizes os que se deixam dominar pelo álcool! Tornam-se alguns sonolentos e inermes como um cordeiro; mostram-se outros exaltados e brutais como o leão; muitos, sob a ação perturbadora da bebida que os envenena, ficam estúpidos como um porco. E há, finalmente, aqueles que, depois dos primeiros goles, fazem trejeitos, dizem tolices e saracoteiam como macacos.
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Fonte:
Malba Tahan. Lendas do Bom Rabi. 
Rio de Janeiro/RJ: Editora Record, 2011