sábado, 7 de setembro de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 24

 

Trovador Homenageado do Dia: Nemésio Prata (Trovas em preto e branco)


1
Ao ver a imagem singela
do barco, tranquilo, ao mar,
lembrei-me: não há procela
que Deus não possa acalmar!
2
Bom Humor em injeção 
comprimidos, ou xarope, 
é a melhor prescrição 
para tristeza a galope!
3
Correndo, desesperado,
de mala e chapéu na mão,
o passageiro, coitado,
perdeu o trem... e a razão!
4
Ensinar é dom sublime
que requer saber e amor;
o que muito bem exprime
a lide do Professor!
5
Homem, mau, vil e perverso;
toda vez que tu desmatas,
mesmo em nome do progresso,
é a ti mesmo que tu matas!
6
Na mata o machado bate
forte pra tirar "madeira";
e assim o "homem" abate,
uma a uma, a mata inteira!
7
Olhando com bem clareza
pras marcas do seu herdeiro,
já não tem tanta certeza
de ser o pai verdadeiro!
8
Por aqui passava um rio
caudaloso e pleno em vida;
hoje mal se vê um fio
d'água suja e poluída!
9
Se a lua inspira o Poeta...
também o faz o arrebol;
venturoso é para o esteta
ter os dois por seu farol!
10
Seja-lhe a vida a favor,
ou o seu viver adverso,
regala-se o Trovador
na lide de fazer verso!
11
- Solta-me! Clama o navio
ao cais que o faz prisioneiro;
- deixa-me sair vadio
pelo mar... que é meu parceiro!
12
Tem quem só quer receber
para si o que é melhor,
porém ao aparecer
chance pra dar: dá o pior!
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AS TROVAS DE NEMÉSIO EM PRETO E BRANCO
por José Feldman


AS TROVAS UMA A UMA

1. Acalmando as Tempestades
Esta trova reflete a ideia de que, mesmo diante das adversidades (as tempestades da vida), a fé em Deus pode proporcionar tranquilidade. O barco representa a jornada da vida, enquanto a presença divina sugere proteção e esperança.

2. O Poder do Bom Humor
O humor é apresentado como um remédio poderoso contra a tristeza. A metáfora dos "comprimidos" e "xarope" sugere que, assim como medicamentos, o bom humor é essencial para a saúde mental, enfatizando a importância de uma atitude positiva.

3. Desespero e Oportunidade Perdida
Aqui, o passageiro simboliza aqueles que, na pressa da vida, perdem oportunidades valiosas. A "mala e chapéu" indicam a carga emocional e as responsabilidades que ele carrega, e a perda do trem é uma metáfora para a perda de controle e direção na vida.

4. A Nobreza do Ensino
A figura do professor é exaltada como alguém que, além de transmitir conhecimento, deve ter amor pela educação. A expressão "dom sublime" destaca que ensinar é uma vocação que envolve dedicação e compromisso com o futuro.

5. A Destruição da Natureza
Esta trova critica a degradação ambiental, alertando que a exploração desenfreada dos recursos naturais traz consequências. A ideia de que "é a ti mesmo que tu matas" sugere uma reflexão sobre o impacto das ações humanas sobre si mesmos e as futuras gerações.

6. O Machado e a Mata
Com uma abordagem similar à anterior, aqui Nemésio usa a imagem do machado como símbolo da destruição. A repetição da palavra "abate" enfatiza a continuidade da devastação, mostrando um ciclo de morte que se perpetua por ações humanas.

7. Dúvidas de Paternidade
Esta trova de forma humorística aborda a insegurança nas relações familiares. O "herdeiro" e a "certeza" contrastam, refletindo sobre a complexidade das relações humanas e as dúvidas que podem surgir em laços familiares, questionando a identidade e a paternidade.

8. O Rio Poluído
A transformação do rio de "caudaloso" a "fio d'água suja" é uma poderosa metáfora para a degradação ambiental. Essa imagem expressa a perda da pureza e vitalidade do meio ambiente, um lamento sobre o impacto humano na natureza.

9. Inspiração Poética
A trova destaca a dualidade entre a lua e o arrebol como fontes de inspiração. Isso sugere que a beleza pode ser encontrada em diferentes formas e momentos, e que o artista deve estar atento a essas fontes para criar.

10. Alegria na Criação
Independente das circunstâncias, a figura do Trovador expressa que a criação poética é uma fonte de alegria. A palavra "regala-se" indica que a arte é um refúgio e uma forma de expressão que traz satisfação.

11. Clamor por Liberdade
O navio clamando ao cais representa o desejo de liberdade e exploração. Essa metáfora reflete o espírito aventureiro e a luta contra as amarras que prendem, simbolizando a busca por autonomia e novas experiências.

12. Egoísmo e Generosidade
Esta trova critica a natureza egoísta de algumas pessoas, que se aproveitam das oportunidades sem considerar os outros. A dicotomia entre "receber" e "dar" ressalta a falta de altruísmo e a necessidade de uma reflexão ética sobre as ações humanas.

TEMAS ABORDADOS PELAS TROVAS DE NEMÉSIO E SUA SIMILARIDADE COM POETAS DE DIVERSAS ÉPOCAS

1. Natureza e Degradação Ambiental
Nemésio em várias trovas critica a exploração desenfreada dos recursos naturais, alertando para as consequências de uma relação desequilibrada entre o ser humano e o meio ambiente. Essa preocupação é cada vez mais relevante no contexto atual, onde a urgência das questões ecológicas se torna inegável. Essa temática é comum na literatura, desde poetas românticos como William Wordsworth, que exaltava a beleza natural, até contemporâneos como Adélia Prado, que também aborda a relação do ser humano com a natureza de forma crítica.

2. A Condição Humana e a Busca por Identidade
A exploração da paternidade e das incertezas nas relações familiares revela uma busca profunda por identidade e pertencimento. A dúvida e a insegurança são sentimentos universais que ressoam com a experiência humana, conectando a poetas que também exploraram a complexidade das relações. Essa preocupação é encontrada em obras de Fernando Pessoa, que explorou a fragmentação do eu, e em poetas contemporâneos como Marianne Moore, que também refletiu sobre a complexidade das relações interpessoais.

3. O Papel do Professor e a Educação
A valorização do ensino como um ato de amor e dedicação destaca a importância da educação na formação do indivíduo e da sociedade. Nemésio se une a uma longa tradição de poetas que reconhecem a nobreza e o impacto do educador na vida das pessoas. A exaltação do professor como figura essencial na formação humana ecoa o pensamento de poetas como Cecília Meireles, que valorizava a educação e o saber.

4. Humor e Alegria como Remédios
A capacidade de encontrar alegria e leveza em meio às adversidades evidencia uma resiliência humana notável. O humor, apresentado como um remédio, reflete uma estratégia vital para enfrentar os desafios da vida. Esta ideia de que o humor pode curar a tristeza se alinha com a obra de poetas como Mário Quintana, que frequentemente usou a leveza e o humor como formas de enfrentar as dificuldades da vida. Ambos os poetas promovem uma visão positiva, ressaltando a importância da alegria.

5. Liberdade e Autonomia
O desejo de liberdade, simbolizado pelo clamor do navio, encapsula a luta intrínseca do ser humano por autonomia e exploração. Essa busca é um tema constante na literatura e ressoa com o espírito aventureiro presente em diversos poetas, desde Alfred Lord Tennyson, que abordou a busca por liberdade e aventura, até poetas contemporâneos que lutam contra as limitações sociais. Nemésio se junta a essa tradição ao expressar o anseio por explorar o mundo.

6. Egoísmo e Generosidade
A crítica ao comportamento egoísta e a promoção da generosidade revelam uma preocupação ética que é fundamental para a coexistência social. A reflexão sobre a moralidade das ações humanas é um convite à introspecção e à mudança. Poetas como Vinicius de Moraes exploraram a complexidade das relações humanas e a importância da generosidade. Nemésio, ao abordar essa dualidade, reflete uma preocupação ética que ressoa com a tradição poética.

Poetas românticos como Gonçalves Dias e Alphonsus de Guimaraens também exploraram a natureza e as emoções humanas. A busca por identidade e a crítica social em poetas modernistas, como Carlos Drummond de Andrade, mostram similaridades com a abordagem nas trovas, que também questiona valores e realidades contemporâneas. Poetas contemporâneos como Marcelino Freire e Juliana Gomes abordam a identidade e as relações sociais de forma incisiva, refletindo preocupações semelhantes às de Prata em um contexto atual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

As trovas de Nemésio Prata compõem uma teia de temas que refletem a complexidade da condição humana e a interação do ser humano com o mundo ao seu redor. Ao longo de suas trovas, aborda questões essenciais como a natureza, a degradação ambiental, a busca por identidade, a importância da educação, o poder do humor e a dualidade entre egoísmo e generosidade.

Em suma, as trovas de Nemésio Prata não apenas capturam a essência da experiência humana, mas também convidam à reflexão sobre questões que permeiam a sociedade contemporânea. Seu estilo poético, que combina musicalidade e profundidade, permite que suas mensagens ressoem através do tempo, estabelecendo um diálogo com poetas de diferentes épocas e tradições. As suas trovas são um testemunho da capacidade da poesia de tocar a alma humana, oferecendo consolo, reflexão e, acima de tudo, uma conexão com o que significa ser humano.

A combinação de leveza e profundidade é uma das características que tornam suas trovas tão impactantes. Consegue, com elas, evocar emoções complexas e instigar reflexões sobre temas que permanecem relevantes. Essa habilidade de sintetizar sentimentos e ideias em formas simples é um testemunho de sua verve poética.

Fonte: José Feldman. 50 Trovas em preto e branco. IA Open. 2024. VOL. 1

Luís da Câmara Cascudo (A Princesa do Sono Sem Fim)

Havia um reinado em que a rainha velha tinha a sina de correr de lobisomem, matando gente para beber o sangue. O príncipe seu filho era um moço sem tacha, bom e valente, e vivia triste com o destino da mãe. Sua distração era ir conversar com um velho, muito velhinho, que morava fora da cidade, perto de uma floresta sombria, na qual ninguém ia caçar nem passear.

O velhinho armava uma rede no alpendre para o príncipe descansar e este passava horas e horas ouvindo as histórias do tempo antigo, esquecendo-se da rainha velha e da sua doença de beber sangue de gente.

Vez por outra, quando o vento passava mais forte e levantava os galhos do arvoredo, o príncipe enxergava, lá ao longe, uma pequena mancha vermelha, parecendo um telhado de casa.

Um dia ele perguntou ao velhinho que telhado ao longe era aquele. O velho, então, contou:

– Aquilo é um palácio encantado, príncipe meu senhor. Meu avô contou a meu pai e este contou a mim que, há cem anos, está ali dormindo uma princesa, com todos os seus criados, pajens e mordomos, por via de umas fadas. No reinado Fulano, o rei e a rainha, nesse tempo, não tinham filhos e só faltavam morrer de vontade. Apresentou-se a rainha grávida e descansou uma menina bonita como o sol. Todo o dia era uma festa no palácio. Para o batizado o rei convidou todas as fadas que existiam por perto do reinado. Só não convidou a fada mais velha porque ninguém sabia da morada dela e julgavam que tivesse morrido.

As fadas vieram todas e já estava na mesa do banquete quando a fada velha apareceu resmungando e dando de corpo como uma condenada. A fada mais moça botou reparo na zanga da fada velha e mais do que depressa escapuliu-se da mesa e se escondeu sem que ninguém notasse sua falta. Depois do banquete as fadas foram fadar, dando as sinas e os dons. Cada uma dizia a coisa mais bonita.

– Eu te fado que sejas linda como a luz do sol.

Outra dizia por aqui assim:

– Eu te fado que sejas boa como o amor de mãe. Eu te fado que sejas rica como um tesouro. Eu te fado com a ciência de Salomão. E assim foram dizendo, e o rei, todo satisfeito, ao lado da rainha que tinha a princesinha nos braços. No fim, a fada velha se levantou, com a fala grossa, e disse:

– Nem vale a pena tanta sina boa para essa menina. Ela será tudo isto mas durante pouco tempo. Quando se puser moça, irá visitar a quinta do seu pai e aí furará a palma da mão com um fuso de fiar algodão e morrerá logo, sem remédio nem jeito.

As fadas, que já tinham fadado e não podiam desmanchar o que a fada velha tinha feito, choravam, quando a fada mais moça saiu de trás de uma cortina e disse:

– Não posso desmanchar o que foi fadado porque não tenho poderes mas, como ainda não fadei, fado esta menina para que, quando o fuso lhe ferir a palma da mão, não morra, mas fique dormindo cem anos, acordada que seja por um príncipe, case e seja feliz.

Acabou-se a festa e o rei proibiu, sob pena de morte, que alguém fiasse com o fuso no seu reinado. Apesar de todo cuidado, quando a princesinha inteirou os quinze anos, foram todos visitar outro palácio que o rei possuía dentro de umas matas mais bonitas do mundo. A menina andava, para cima e para baixo, corrigindo tudo, e, lá num quarto esconso da casa, encontrou uma velha ama que estava fiando. Pediu logo para ver o que era e desejou imitar. Assim que pegou no fuso, este saltou e varou sua mão.

Nem marejou sangue mas a princesinha caiu para trás, como morta.

Correram todos e deitaram a menina numa cama, num quarto preparado de um tudo, espelhando de bonito. A fada moça veio voando e bateu a varinha de condão na cumeeira do palácio. Todo mundo que estava dentro, tirando o rei e a rainha, pegou no sono profundo. Os músicos ficaram com os instrumentos na boca e a mesma cozinheira agarrou a dormir com a mão segurando uma galinha que estava assando no fogo.

O rei e a rainha, como aquilo era sina permitida por Deus, beijaram a filha, abençoaram e foram embora, com a fada, para o reinado. Por lá morreram e o reinado deles acabou-se. Só ficou o palácio dentro do arvoredo, com a princesa dormindo o sono sem fim. Era o que meu avô contava a meu pai e este me contou quando eu era menino.

O príncipe ficou alvoroçado com a história que o velho contou e não dormiu pensando na princesa encantada. Pela manhã pegou um facão bem afiado e tocou-se para a mata, perto da casinha do velho. Chegou e meteu o facão, abrindo uma picada, porque era tudo fechado, fechado. Ia abrindo e entrando, e, assim trabalhando, foi andando, até que deu numa roda de árvores enormes e no meio estava o palácio coberto de cipós, sem nenhum rumor, parecendo morto. O príncipe entrou pela porta principal e foi vendo soldados, músicos, damas e senhores, até cozinheiras e meninos, até os bichos, tudo parado, dormindo a sono solto.

Depois de subir as escadas e passar as salas cheias de gente roncando, viu deitada numa cama, forrada de seda, a moça mais bonita que a terra havia de comer, profundamente adormecida. O príncipe chegou para perto e pegou na mão da princesa e esta logo abriu os olhos, dizendo:

– Oh príncipe! Como demoraste em vir!...

O palácio estremeceu e todo mundo acordou. O príncipe ouviu as cornetas tocando, bichos berrando, as pisadas dos soldados, gritos, a música, enfim o barulho de gente viva.

Veio um mordomo muito bem-vestido anunciar que o jantar estava na mesa e o príncipe comeu a galinha que estava sendo assada há cem anos.

Ficou aí como num céu aberto. Veio o padre e casou os dois sem perder tempo. Os dias voavam e a princesa era feliz. O príncipe, sabendo a mãe que tinha, ia ao palácio dar ordens e voltava, dizendo que estava caçando. Não queria que ninguém o acompanhasse. 

No fim de um ano a princesa teve um filho lindo que se chamou Belo-Dia; e no outro ano nasceu uma menina, batizada por Bela-Aurora. 

Apareceram umas guerras e o príncipe não podia deixar de ir com as tropas. Como não queria deixar a mulher e os filhos naquele ermo, resolveu levar todos para casa. Foi na frente e contou o que se passara a sua mãe. A rainha velha só fazia pigarrear, com a cara fechada como o rei Herodes, imaginando coisas ruins.

Antes de ir embora, o príncipe dividiu o palácio em duas partes. A rainha velha ficaria num canto e a mulher com os filhos noutro, todos com criados e conforto. Chamou o príncipe ao mordomo que era muito seu amigo, de toda confiança, e pediu que vigiasse a família e tivesse cuidado com a rainha velha.

Assim que o príncipe montou a cavalo e viajou, a rainha velha começou a ter vontade de beber sangue e comer carne humana. Ficou mesmo bruta e, não podendo passar o desejo, chamou o mordomo e mandou que lhe servisse Belo-Dia, com bom molho, no almoço do dia seguinte.

O mordomo só faltou morrer. Pensou, pensou, procurou a princesa, contou tudo, levou Belo-Dia para sua casinha, longe do palácio e escondeu-o. 

Na manhã  do outro dia matou uma lebre, guisou-a bem e avisou que o almoço estava na mesa. A rainha velha comeu a fartar lambendo os beiços e gabando tudo.

Dias depois, veio o desejo e ela mandou que o mordomo matasse Bela-Aurora. O mordomo levou a menina para casa e assou uma paca. A rainha achou o prato gostoso por demais.

Dias passados, exigiu que a princesa fosse refogada em molho de tomate e cebola, para o jantar, porque tinha a carne dura. O mordomo levou a princesa para sua casa, juntou-a aos filhos, bem escondidos, e matou uma veadinha, refogando-a e preparou o jantar, com molho de tomates e cebolas. A rainha velha comeu, saboreando.

Os dias iam passando e a velha tornou a ter a cisma da carne humana de cristão e saiu de noite, como uma desesperada, farejando quem mandar matar para saciar sua sina. Ia passando por uma rua longe do palácio, tarde da noite, quando ouviu a voz da princesa sua nora e a dos netos, conversando dentro de uma casa. Subiu na calçada, encostou o ouvido e soube que era ali a casa do mordomo e que a princesa estava fazendo Belo-Dia dormir, porque este perdera o sono e acordara Bela-Aurora, todos com saudades do pai.

A rainha velha, feia como uma coruja, nem coração tinha para essas coisas, saiu babando de raiva e pela manhã mandou prender a nora, os netos e o mordomo. Uma fogueira enorme foi feita diante do palácio, e quando o braseiro estava escandeando de quente, a rainha velha veio para a varanda assistir à morte da mulher e dos filhos do seu filho e do pobre mordomo.

Já vinham todos amarrados, no sol pegando fogo, quando ouviram a fortaleza salvar e o tropel de cavalaria. Era o príncipe que vinha voltando com os seus soldados, morto de saudades da mulher e dos filhos. Chegando na praça e vendo aquele horror, o príncipe voou do cavalo embaixo, puxou a espada e livrou a esposa e os filhinhos e o mordomo das cordas, e, bufando de raiva, gritou perguntando quem se atrevera a pôr a mão no que ele queria demais em cima do Mundo.

A rainha velha saltou do sobrado para o fogo das fogueiras, com medo do castigo, e aí morreu, queimada, estorricada, virada cinza e pó preto. 

O príncipe foi para o palácio com a princesa, Belo-Dia e Bela-Aurora, abraçando-os e chorando de alegria. Nomeou o mordomo para vice-rei num reinado que ganhara na guerra. E morreram todos de velhos, bem felizes.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

Vereda da Poesia = 105 =


Trova Humorística de São João de Meriti/RJ

CLÉBER ROBERTO DE OLIVEIRA

Quanta coisa – minha nossa! -
leva a engano deprimente!...
– Vi que “casinha”, na roça,
é banheiro... e tinha gente!
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Poema de Guaraci/PR

FÁTIMA ROGÉRIO

Menino de Rua

Oi, moço! Quero lhe falar.
Por que me evitas?…
Sou criança!
Teria que ser esperança
pois isto está escrito.

Não se desvie de mim.
Quero apenas conversar.
Não sei onde estão meus pais,
e ninguém quer me ajudar. 

Estou nesta calçada já faz um tempo.
Vi meu irmão morrer,
nas mãos de pessoas malvadas.
Mas eu quero viver!

Me ouça e me dê uma chance!
Me ajude a sair daqui.
O sofrimento é muito grande
e eu não tenho pra onde ir.

As pessoas me cospem e me xingam.
Os carros me jogam lama.
Eu queria, moço, uma família,
um prato de comida e uma cama.

Às vezes me oferecem drogas.
Eu não queria, mas acabo aceitando.
Ela me faz adormecer,
e minha dor se vai, aliviando.

Me ajude, moço, a sair daqui!
Por favor, eu não sou mau!
Vejo sua família feliz,
eu só queria ter uma igual.

Se me ajudar e cuidar de mim,
muito grato serei a ti
e pedirei todo dia a Papai do Céu
que cuide de você e de sua família.

Pra que nunca precisem ver 
o que é rua de verdade,
e que nunca precisem viver,
esta dolorosa realidade.

Obrigado, moço,
por me ouvir!
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Trova Humorística de Belo Horizonte/MG

OLYMPIO S. COUTINHO

Bem malandro é o Ademar,
de “fogo”, quase caindo,
entra de costa em seu lar
pra fingir que está saindo.
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Soneto de Portugal

FAUSTO GUEDES TEIXEIRA
Lamego/Alto Douro, 1871 – 1930, ????

Eu quero ouvir o coração falar

Eu quero ouvir o coração falar
e não os homens a falar por ele!
Enquanto a gente fala, há de parar
no peito a vida estranha que o impele.

Independente à forma de o expressar,
o sentimento existe, e ai daquele
coração triste que se julgue dar
na cerração em que a palavra o vele.

Astro no peito, é sobre a língua chaga.
Dizer uma alegria ou um tormento
é um mar em que sempre se naufraga.

Era a essência de Deus vista e atingida!
Se é a força da vida o sentimento,
fez-se a palavra pra mentir a vida.
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Trova de Curitiba/PR

MÁRIO A. J. ZAMATARO

O tamanho do universo
não cabe em minha janela,
mas entra em pequeno verso,
quando estou de sentinela.
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Poema de Floriana/Malta

OLIVER FRIGGIERI

Uma Estrofe sem Título

Dá-me as palavras de teus olhos, a noite escreve
Uma estrofe purpúrea sobre teu bonito rosto,
Brilha o orvalho, tuas bochechas um branco universo
De onde nada dá um passo descalço sem dor,
Toca estas mãos e sente o despedaçado coração
E nota o sangue quente, o pranto solene.
Pomba, não voes distante  come de minhas mãos,
Este é o grão que não mata, água pura.
Monótono o sino que dá a hora
Para que te vás desta janela entreaberta
Por mim para ti, monótono o suspiro
Gravado como ilusão que vem e vai.
Não voes distante, e diga comigo esta oração:
“Há raios de luz de lanterna enfocados em mim,
Há uma humilde estrela que brilha só para mim,
Há uma flor selvagem que se abre em meu peito,
Há uma chama de vela vacilante só para mim.”

(tradução: José Feldman)
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Trova Popular

Todo homem que diz que sim
depois de ter dito "não";
primeiro fala o orgulho
depois fala o coração.
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Soneto de Lisboa/Portugal

JOSÉ DURO
1875 – 1899

Dor suprema

Onde quer que ponho os olhos contristados
– costumei-me a ver o mal em toda a parte –
não encontro nada que não vá magoar-te,
ó minh’ alma cega, irmã dos entrevados.

Sexta-feira santa cheia de cuidados,
livro d’Ezequiel. Vontade de chorar-te...
E não ter um pranto, um só, para lavar-te
das manchas do fel, filhas de mil pecados!...

Ai do que não chora porque se esqueceu
como há de chamar as lágrimas aos olhos
na hora amargurada em que precisa delas!

Mas é bem mais triste aquele que olha o céu
em busca de Deus, que o livre dos abrolhos,
e só acha a luz das pálidas estrelas...
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Trova Baiana 

CARLOS RIBEIRO ROCHA 
Ipupiara/BA [1923-2011] Salvador/BA

De mês a mês eu me espelho
mais idoso vou ficando
que se vá o corpo velho
e os versos fiquem brilhando(...)
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Poema de Caicó/RN

MARA MELINNI

O Tempo do Amor

Às vezes a resposta que eu preciso
Não vem de uma palavra, em expressão...
Mas do calmo calor do teu sorriso
Que manda embora a dor da solidão.

Se o meu gostar não encontra o jeito certo
Ou se é preciso um jeito de existir,
Que exista um jeito de estar sempre perto
E nesse jeito eu possa te sentir.

Nenhum querer possui uma medida,
Ninguém pode gostar pela metade.
Amar é o que dá vida à própria vida...
Ou ama, ou não se ama... Esta é a verdade.

O tempo não espera na estação
E o preço, embora pague um bom lugar,
Não traz escolha a quem, sem ter razão,
Não segue atrás do trem que viu passar...

As portas do destino guardam planos
Que as chaves certas abrem, logo à frente.
E às vezes, sem ter chave ou sofrer danos,
Há portas que se abrem, simplesmente.

Por isso, a cada sol, nascendo o orvalho,
Se vão, pelas manhãs, em cada flor,
As gotas tristes, no chorar do galho,
deixando suas lágrimas de amor.

A vida é a seiva mais pura do mundo,
é o mel que adoça o sonho de quem clama...
E o tempo, embora dure um só segundo,
se faz tempo bastante a quem se ama.

Eis sim, uma viagem passageira...
Que cumpre as curvas todas de uma estrada.
E um dia, já na curva derradeira,
Se não faltou amor... Não faltou nada!
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Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

O marido sai a “campo”
– e o pipoqueiro é estourado!...
vendo a esposa com sarampo
e o vizinho empipocado!!!
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Soneto de Lisboa/Portugal

ANTÔNIO BARBOSA BACELAR
1610 – 1663

A umas saudades

Saudades de meu bem, que noite e dia
a alma atormentais, se é vosso intento
acabares-me a vida com tormento,
mais lisonja será que tirania.

Mas quando me matar vossa porfia,
de morrer tenho tal contentamento,
que em me matando vosso sentimento,
me há de ressuscitar minha alegria.

Porém matai-me embora, que pretendo
satisfazer com mortes repetidas
o que à beleza sua estou devendo;

vidas me dai para tirar-me vidas,
que ao grande gosto com que as for perdendo,
serão todas as mortes bem devidas.
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Trova de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DE CARLI

Nossos pinheiros, brillhantes,
sobre a serra e em meio ao ar,
lembram taças borbulhantes
fazendo um brinde ao luar!
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Poema de Rio Verde/PR

ADY XAVIER DE MORAES

Mulher

És bela, não porque se fez bela,
mas porque tens no íntimo
o brilho de uma estrela
que durante o dia se esconde
e, durante a noite, no infinito,
mostra tua face que resplandece.

És linda, não porque se fez linda,
mas porque a natureza preparou
para nascer e brilhar.
Tu não precisas de arranjos,
porque uma flor já nasce
com toda a beleza, tenra
e perfumada.

És perfeita, não porque te fez perfeita,
mas porque a vida deu-te de tudo.
A simplicidade de um anjo.
A inocência de uma criança.
O carisma de uma rainha
quando sorri…
sorri com os olhos,
com os lábios, com o coração.

Mostras com muita esperança,
a vontade de vencer na vida
e não sabe da virtude que tens,
por isso, és linda, és bela,
como a flor do meu jardim.
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

RENATO ALVES

A leitura é um refrigério,
o livro me envolve e abraça;
é drama, é sonho, é mistério...
É mais do que isso: É UMA GRAÇA!
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Soneto de Évora/ Portugal

PADRE BALTASAR ESTAÇO
1570 – 16??

A um irmão ausente

Dividiu o amor e a sorte esquiva
em partes o sujeito em que morais;
este corpo tem preso onde faltais,
esta alma onde andais anda cativa.

Contente na prisão, mas pensativa,
porque este mal tão mal remediais,
que vós comigo lá solto vivais,
e eu sem mim e sem vós cá preso viva.

Mas lograi desse bem quanto lograis,
que eu como parte vossa o estou logrando
e sinto quanto gosto andares sentindo;

cá folgo, porque sei que lá folgais,
porque minha alma logra imaginando
o que lograr não pode possuindo.
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Trova de São Paulo/SP

JAIME PINA DA SILVEIRA

Se a razão e o coração
não têm a mesma medida,
o valor de uma paixão
se mede na despedida! 
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Soneto de Lisboa/Portugal

SOROR VIOLANTE DO CÉU
1602 – 1693

Vida que não acaba de acabar-se

Vida que não acaba de acabar-se,
chegando já de vós a despedir-se,
ou deixa por sentida de sentir-se,
ou pode de imortal acreditar-se.

Vida que já não chega a terminar-se,
pois chega já de vós a dividir-se,
ou procura vivendo consumir-se,
ou pretende matando eternizar-se.

O certo é, Senhor, que não fenece,
antes no que padece se reporta,
por que não se limite o que padece.

Mas, viver entre lágrimas, que importa?
Se vida que entre ausências permanece
é só vida ao pesar, ao gosto morta?
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Contador e cantador, 
num só tempo eu conto e canto: 
conto as rendas do labor; 
de outras “rendas” canto o encanto.
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Cantiga Infantil de Roda

FESTA DOS INSETOS 

A pulga e o percevejo
Fizeram combinação.
Fizeram serenata
Debaixo do meu colchão.

Torce, retorce,
Procuro mas não vejo
Não sei se era a pulga
Ou se era o percevejo

A Pulga toca flauta,
O Percevejo violão;
E o danado do Piolho
Também toca rabecão.

Torce, retorce,
Procuro mas não vejo
Não sei se era a pulga
Ou se era o percevejo

A Pulga mora em cima,
O Percevejo mora ao lado.
O danado do Piolho
Também tem o seu sobrado.

Torce, retorce,
Procuro mas não vejo
Não sei se era a pulga
Ou se era o percevejo

Lá vem dona pulga,
Vestidinha de balão,
Dando o braço ao piolho
Na entrada do salão.
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Trova da Princesa dos Trovadores

CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Não temas portas fechadas,
nem mesmo fracassos temas,
há sempre forças guardadas
para as conquistas supremas.
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Hino de Catanduva/SP

Sob o sol escaldante dos trópicos,
um pioneiro chegou a esta terra;
terra crua que não prometia
um futuro de tanto esplendor.
 
 O viajante fincou a bandeira
com coragem, confiança e amor,
e o intrépido aventureiro
consagrou-se como fundador.
 
 A semente foi plantada e mudou a paisagem,
nossa terra ficou fértil, floresceu.
E a mão firme do trabalho operou mais um milagre:
fez nascer um povo forte, um povo honesto e lutador.
  
Catanduva, Cidade Feitiço!
Quem pisa teu chão não se esquece jamais.
Teu feitiço é mais que um encanto
que inspira meu canto de amor e de paz!
Teu feitiço é mais que um encanto
que inspira meu canto de amor e de paz!
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Trova de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

O político, no pleito,
promete mundos e fundos;
só "papo", pois quando eleito,
"esquece" tudo em segundos!
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Poema de Lisboa/Portugal

ANTÓNIO FLORÊNCIO FERREIRA
1848 – 1914

1

Vês aquele enterro humilde,
sem padre, sem cruz, sem nada?
Vês aquel'outro, pomposo,
do templo a frente enlutada?

O primeiro é d'um honrado;
talvez o do outro o não seja...
Mas ambos, de igual doutrina,
são filhos da mesma igreja.

O que me admira e me assombra
é o afeto desta mãe,
que ao rico dispensa afagos
e ao pobre atira o desdém!
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Trova de São Gonçalo/RJ

GILVAN CARNEIRO DA SILVA

Vivendo de um sonho morto
na solidão dos meus dias,
o meu coração é um porto
cheio de amarras vazias...
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O porco, a cabra e o carneiro

Uma cabra, um carneiro e um porco gordo,
Juntos num carro, iam à feira. Creio
Que todo o meu leitor será de acordo
Que não davam por gosto este passeio.

O porco ia em grandíssimo berreiro
Ensurdecendo a gente que passava;
E tanto um como outro companheiro
Daquela berraria se espantava.

Diz o carreiro ao porco: «Por que gritas,
Animal inimigo da limpeza?
Por que, trombudo bruto, não imitas
Dos companheiros teus a sizudeza?

— Sisudos, dizes?!... Quer-me parecer
Que não têm a cabeça muito sã,
Porque pensam que apenas vão perder,
A cabra o leite, o companheiro a lã.

Mas eu, que sirvo só para a lambança,
Envio um terno adeus ao meu chiqueiro...
Pois cuido que à goela já me avança
O agudo facalhão do salchicheiro!»

Pensava sabiamente este cochino,
Mas para quê? pergunto eu. Se o mal é certo,
É surdo às nossas queixas o destino;
E o que menos prevê é o mais esperto.