Damião entrou de mansinho no quarto abafado. Era mesmo verdade. O amigo não poderia resistir mais tempo. Trazia sulcos grandes no rosto. E os olhos, outrora irrequietos quando anunciavam um novo epigrama, restavam mortiços nas órbitas salientes.
O doente notou-lhe a chegada. Esboçou um sorriso em que punha toda a gratidão. E disse, balbuciante:
— Você... Meu velho amigo.
— É. Eu vim, Frederico. Eu vim.
— Muito... obrigado...
— Não precisa agradecer, não. Mas não fale tanto, Frederico. Você se vai cansar à toa. É preciso repouso, ouviu?
— Não quero.
— Descanse sim. Vai ficar bom mais depressa.
— Qual! Desta vez...
Passou a língua nos lábios secos.
— Chegou o meu dia.
— Ora. Nem diga isso.
Damião se levantou, a troco de nada. Fazia o possível para não chorar.
Frederico gemeu fundo. A testa brilhava, orvalhada. E o corpo todo queria pegar fogo, de tão quente.
Pediu água, numa angústia.
— Quero água, Damião. Bem... gelada.
— Paciência, Frederico. Não pode ser, não.
— Eu quero... Quero.
— Seja forte, menino.
Limpou-lhe o suor brandamente, e encostou um pano molhado na boca do enfermo.
— Eu quero é água.
— Logo. Logo você vai beber. Logo mais.
Revolvia-se, a todo instante, o Frederico.
Do lado de fora do quarto, a cidade sofrendo o sol medonho de dezembro. E do lado de dentro, a febre consumindo, consumindo...
De repente, levou a mão à nuca.
— Aqui.
— Que é?
— Aqui.
Arregalou os olhos.
— Vai estourar. É agora!... Ele vai estourar, já!
Pensava que ia arrebentar um furúnculo na nuca. Depois era a cabeça que estava aberta de lado a lado. A cabeça subiu, subiu. Pegou a cabeça. Atravessou o dedo no ouvido, e o dedo veio sair nos olhos. Os olhos saltaram. Ficaram dançando no ar. Caíram no chão. Era olho dançador! Era só o direito.
Mas a mulher chegou. Pisou, com raiva. Só viu água. A água estava afogando. Então, o furúnculo rompeu na ponta do nariz. Bem na pontinha. O nariz ficou compridíssimo. Chegou a bater na janela. Montou no nariz e saiu correndo. Voaram pela janela, ele mais o nariz. Mas a calçada era de quadradinhos. Deu com o nariz na pedra. Daí entrou na varanda. Socou um tapa no tio... O tio, que balançava na rede, ficou furioso. Deu-lhe uma sova tremenda. Foi aquela sova por causa do roubo da marmelada. Ora, a marmelada! Enterrou o focinho nela.
Encheu-se dela. E a marmelada virou língua. Uma língua danada, que lambia. Que lambia sempre.
Quando retomou consciência, caiu em prostração.
Damião era que sofria tanto como o amigo. Viveu o resto da tarde ali na beira da cama.
À noite, a febre diminuiu. A velha Luísa achava que aquela era a visita da saúde. A última visita. Mas não dizia, não. Podia assustar o moço...
— Você vai sarar logo. Tenho certeza disso.
— Por que, Damião? Não vou prestar mais pra nada...
— Nem fale.
— Eu sei...
Tirou o cabelo dos olhos.
— Sabe, Damião? Sou um caso perdido. Até à minha consciência eu menti sempre.
— Nada disso.
— Eu me arrependo. Fui um inútil. Paciência! Se acaso existisse uma outra vida, seria capaz de me regenerar, acredite.
Piorou, na manhã seguinte. Um febrão!
— Estou me queimando. Não aguento...
— Coragem, menino.
— Mas eu não quero morrer, ouviu? Não quero não... Me salve, Damião. Por favor!
Apenas passou a crise, tentou brincar.
— A bondade, meu amigo, é monótona. A inteligência é incômoda...
— E o romantismo é cretino (completou o outro, recordando as boas tertúlias do passado).
— Isso mesmo.
Fitaram-se longamente.
— Dê-me a sua mão. Como vou morrer logo... quero despedir-me... do único amigo que deixo na terra.
— Bobagem, Frederico.
— Dê-me sua mão. Assim.
E falou, pausadamente, como se estivesse são.
— Cria de alugado, hein? Você, cria de alugado... Lembra-se da palavra de Goethe? Ele falou mais ou menos assim: “Não creia nunca esquecer as dores da meninice...” Está certo?
— Sou capaz até de dizer a página.
Frederico quis sorrir. Mas uma dor aguda cortou-lhe a intenção. Gemeu alto. E quando dona Luísa entrou no quarto o coração do sulista não queria trabalhar mais...
Damião gastou todas as economias no funeral do amigo. Assim mesmo teve de encomendar um de classe inferior.
Os conhecidos, convidados pelo escriturário, prometeram ir, mas não foram.
O morto não deixara mesmo outras amizades. Até mesmo a Jeanette fujona, fora diabólica...
O carro levava duas coroas. E, atrás das coroas, caminhava Damião, em silêncio.
Dona Luísa — a pobre! — arquejava como quê! Só as vizinhas janeleiras é que estavam achando bom o enterro. Porque todo o pessoal as olhava — as únicas moças do acompanhamento.
Nas pernas do grande amigo do Frederico enroscou-se o Chouriço. O cachorro também sabia sentir a morte do dono.
Chouriço ganiu, longamente.
E Damião jurava que a marcha fúnebre de Chopin não podia ser mais triste, mais angustiada do que o ganido daquele vira-lata cheio de pulgas…
(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 12/11/1936)
Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
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