Fico pensando no como eram ao mesmo tempo simples e ingênuas as coisas naquele velho e bom tempo de pioneirismo
Era o cotidiano refrão do bucheiro desde bem cedinho pilotando sua carrocinha puxada a burro nas ruas da Maringá recém-nascida. Quem num por acaso me fez lembrar disso foi o mestre desenhista e cartunista Kaltoé. Ele era ainda um garotinho, mas diz que se lembra bem.
Fico pensando no como eram ao mesmo tempo simples e ingênuas as coisas naquele velho e bom tempo de pioneirismo. O bucheiro trazia não se sabe de onde sua vendinha ambulante, oferecendo bucho, tripa, fígado. Não só de porco, mas também de bode, carneiro e os de-dentro de galinha, pato, marreco, mais umas comidinhas várias: torresmo, tripa, linguiça, pastéis, bolinhos, biscoitos, cocadas. Ninguém perguntava quais os cuidados de higiene havidos no trato da mercadoria. O bucheiro embrulhava as porções num papel grosso, todo mundo comprava, cozinhava, punha no prato, mandava ver.
Era assim também com o pão e o leite. O padeiro atendia os clientes avulsos no carrinho e deixava o pão nas portas dos que pagavam por mês. O leiteiro trazia o “suco de vaca” numa barrica com uma torneirinha. Os fregueses traziam caneco, panela ou caçarola e levavam o produto para casa em estado natural – cruzinho e gordinho. Hoje algo assim seria inacreditável. No mínimo daria escândalo, com direito a virar notícia de rádio, jornal e tevê.
No entanto, até a primeira metade do século 20, isso era comum na maioria das cidades, principalmente nos lugares novos, como era o caso de Maringá. Ou as pessoas tinham maior dosagem de anticorpos ou os possíveis vírus e bactérias eram menos perversos.
Aqui (Maringá) começou a mudar nos meados de 1960, quando a população deu sinais de que era hora de botar ordem nesse tipo primitivo de comercialização. Afinal Maringá já era uma cidade bem crescidinha; não podia mais aceitar um atraso desses. Campanhas da imprensa, debates nos clubes de serviços, manifestações de médicos, pressão daqui, pressão dali, enfatizando a urgência de alguma medida proibindo a venda de leite cru.
Todavia, como de praxe acontece em toda mudança de costumes, havia também gente que não queria mudar coisa alguma, resultando daí um quiproquó que rendeu inclusive exaltadas discussões na Câmara de Vereadores.
Produtores e vendedores de leite, no início, ficaram também meio divididos, porém acabaram chegando a um consenso. Reuniram-se, debateram, avaliaram os prós e os contras e por fim reconheceram a real necessidade de entrar na era moderna.
Criou-se a Cooperativa de Laticínios e o produto passou a ser pasteurizado e distribuído nos conformes do que a higiene exige. Primeiro em garrafas de vidro, depois em saquinhos e finalmente em caixinhas, como se faz ainda hoje.
O bucheiro teve igualmente que aposentar sua carrocinha. Carnes e miúdos na rua, nunca mais. Só nos açougues e sujeitos à indispensável fiscalização oficial.
(Crônica publicada no Jornal do Povo)
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