Craveiro, da extinta e florida firma de Craveiro & Rosas (chá, cera, rapé e sementes) era homem de muita carne, de bom sangue, católico e conservador. O pai, além de haver sido um dos esteios do partido, fora na mocidade, conservador de um museu, onde diziam as más línguas, ele encontrara a excelente senhora D. Brígida, modelo de honestidade e de magreza — o que lhe sobrava em virtude escasseava em carnes.
Até os vinte anos Craveiro Júnior, que nascera franzino, foi um mocinho amarelo e magro, muito sujeito a bronquites e a cólicas, sempre a tossir e a gemer pela casa, recatado e mole. A mãe atirava-lhe para os ombros derreados todas as lãs que encontrava, o pai obrigava-o a trazer baetas sobre a pele e D. Serafina, todas as noites, fazia-lhe uma gemada substancial com canela e cravo e punha- lhe aos pés, sob as cobertas, duas botijas com água a ferver, tanto que uma vez, estando Craveiro a dormir quando a solícita senhora lhe chegou às plantas o aquecedor, o rapaz, num assombro, saltou da cama berrando que descera ao inferno, como Orfeu, e pôs-se a esfregar os pés, agarrando ferozmente, mostrando bolhas que lhe haviam feito os ardentes ladrilhos do reino de Belzebu. Apesar de todos os cuidados Craveiro continuava a amarelecer e a definhar, sempre a tossir, mastigando pastilhas, engolindo xarope.
Não era bonito, tinha sardas e cravos (não fosse ele Craveiro), os cabelos eram negros mas raros e a fronte ia lhe alargando com a idade, o que maravilhava o velho que, ao contemplar a vastidão daquela testa, lisa e cor de marfim que ia subindo a pique, dizia com enlevo e orgulho — que era o talento, o fogo vivo do gênio que esturrava a raiz do cabelo como as chamas, em agosto, lavrando por um cerro, consomem até às raízes as plantas que o vestem.
Apesar da profecia do velho, o apregoado talento do rapaz era difícil, e só escorria num fio escasso, em dias de festa doméstica, arriscando à mesa um brinde trêmulo. Quando se falou em mandar Craveiro aos estudos, D. Brígida opôs-se aterrorizada aconchegando o filho aos ossos do peito:
— Medicina, Brígida; aventurou pacatamente o velho.
— Deus me livre! O quê? Para o pobre menino ter de estudar em defuntos e passar toda a vida à cabeceira de doentes com risco de apanhar alguma coisa!? Deus me livre!
— Bem... engenharia, então.
— Que engenharia, homem! Você parece maluco: para um dia cair de uma ponte ou ficar debaixo de um túnel...
— Então... direito.
— Nada! pode, como promotor, acusar um sujeito de maus bofes que mais tarde, queira se vingar...
— Então, filha, só o seminário; vamos metê-lo no seminário.
D. Brígida sorriu desvanecida, mas veio logo um suspiro contrariar o prazer:
— Sim, padre, isso era outra coisa, mas... e os jejuns? Ele podia lá com os apertados jejuns!? Não. Olha, queres a minha opinião? Mete-o no comércio, dá-lhe sociedade na loja. Ele que venda chá, dizem que o chá ataca os nervos, mas é história, o chá é inofensivo, a cera é grata ao Senhor e as sementes são a riqueza da terra.
— E o rapé? E as lanternas? E os fogos?
— É verdade... Mas seu Rosas pode encarregar-se dessas coisas. Divida-se a casa em duas seções: uma para o pequeno, outra para seu Rosas.
E assim se fez. Craveiro encarregou-se da 1ª seção e o Rosas lá foi para a dos explosivos e dos esternutatórios (que provocam espirros).
Nos primeiros tempos a vida foi uma maçada tediosa para o mancebo. O dia todo ao balcão ou no escritório a vender círios, barrigas, pernas, chá verde, chá preto, chá padre, abóboras e fúcsias, pouco a pouco, porém, habituando-se, Craveiro deu em pandear — aos vinte e cinco anos era todo ele uma só imensa barriga — foi necessário alargar a porta do escritório para que o homem passasse. A mãe, alvoroçada, exigiu um exame médico e a ciência em lenta e minuciosa análise achou apenas toucinho. Foi uma alegria em casa.
Um dia chovia a jorros, Craveiro bocejava no escritório com a fronte lisa sobre a mão, quando duas senhoras, acossadas pelo aguaceiro, entraram precipitadamente na loja. Era no tempo dos balões tufados, aí pelos fins da guerra. A que parecia mais velha trazia um balão de pequeno diâmetro, a outra, porém, com as goteiras que pingavam da saia, fez na casa um círculo maior que a roda maciça de um carro de bois.
Era uma criaturinha viva, de um moreno quente e aveludado, olhos mais negros que jabuticabas maduras e com uma pequenina boca que era mesmo um botão de rosa. O colo era alto e arfava, as mãos eram finas e arrebatavam o mantelete (capa curta usada por mulheres) com um brilho rico de anéis.
Craveiro, vendo-a, sentiu um tumulto no coração amadurecido para o amor e como as duas senhoras se conservassem de pé examinando plantas, ele compreendeu com muita sutileza que elas não queriam saber de dálias, nem de azaleias, senão de um pouco de agasalho até que a chuva estiasse, e ofereceu cadeiras. Agradeceram e sentaram-se. A mais velha acomodou o balão, a mais nova, porém, por mais que batesse, por mais que aconchegasse, não conseguiu submeter os arcos rebeldes da crinolina que ficou rebeldemente empinada e enfunada expondo à curiosidade lúbrica de Craveiro os pequeninos pés da linda morena e um palmo de meias cor de rosa que eram uma tentação, ou melhor duas tentações.
Craveiro perdeu a cabeça e de olhos gulosamente abaixados, admirava, os caixeiros ouviam-lhe os roncos e viam-lhe o fogo das pupilas incendiadas. Felizmente chovia e os fogos lá estavam na seção pirotécnica do Rosas. Por fim a chuva serenou e as duas senhoras, com muitos sorrisos e agradecimentos saíram.
Craveiro não se conteve, tomou, à pressa o casaco e abalou, a largas pernadas, chapinhando nas poças, escorregando no lodo, a ver a direção que tomavam os balões.
Oh! Aquela morena! Aquelas meias cor de rosa!... Via-a ao longe, muito tufada no grande balão que bamboleava, via-a e forcejava por alcançá-la... Mas a barriga! Aquela barriga...
Num cruzamento de ruas perdeu de vista a linda criatura. Ficou a olhar pasmado: onde se teria metido? Pôs-se a rondar o ponto em que se sumira a beleza, a olhar as casas, a tossir, a pigarrear... e nada! E ali esteve até tarde. Já escurecia quando, com o desespero na alma, o desventurado resolveu voltar ao negócio mas, ai dele! Já não era o mesmo homem calmo, sisudo, despreocupado — tornou-se frenético, deu em berrar com os caixeiros, em atirar murros à secretária e, em casa à noite, cercava-se de papéis e punha-se a riscar, a calcular e ia até à madrugada, às vezes, naquela lida, suspirando e bufando.
O pai interpelou-o uma noite sobre aquelas vigílias que lhe comprometiam a saúde e Craveiro, sem tirar os olhos do papel respondeu secamente: “estou vendo se descubro uma coisa...”.
De sorte que o velho, quando D. Brígida suspirava atribulada com tantas noites em claro e trabalhosas, dizia-lhe com uma ponta de orgulho: “deixa lá o rapaz, está com a sua descoberta... Eu, quando te dizia que ele devia estudar para engenheiro, tinha as minhas razões”. E Craveiro, sobre um complicado desenho que representava o cruzamento das ruas, colocava dois feijões pretos e um feijão cavalo — os feijões pretos representavam as duas aerostáticas senhoras, o feijão cavalo era ele e tanto mexia com os tais feijões que perdia a calma e acabava a pesquisa atirando formidáveis murros à mesa e, já deitado, esmagando os travesseiros, lançava ainda exclamações que atroavam a casa: “eu hei de descobrir, custe o que custar. Eu hei de descobrir”. E tanto insistiu na famosa descoberta que, um dia, foi postar-se no tal cruzamento, perguntando a todos que passavam: “o senhor (ou a senhora) não viu por aqui um balão com umas meias cor de rosa? Não sabe que direção tomou?”
Arrancaram-no dali, à noite — estava louco.
Os pais quiseram conservá-lo em casa, mas Craveiro berrava com tal furor que a vizinhança, alarmada, recorreu à polícia e o infeliz foi internado em um hospício. O Rosas passou a dirigir as duas seções, D. Brígida finou-se ralada de tristezas, o velho seguiu-a pouco depois, e Craveiro lá ficou no hospício calculando e engordando até que as banhas o prostraram a um canto do cubículo, pesado e inerte.
Com os anos, porém, foi lhe desvanecendo a mania e os médicos pensavam em dar-lhe alta e teríamos cá fora o estupendo corpanzil do antigo negociante se um incidente não o comprometesse. O médico passava a visita quando, justamente diante de Craveiro, voltou-se para o farmacêutico que o acompanhava:
— Então, hein? Temos o balão.
Craveiro estremeceu e arregalou os olhos, maravilhado.
— Parece que sim, doutor.
— Onde? Bradou o louco, num rugido.
— Onde? Em Paris.
— Em Paris?! Um balão? Com umas meias cor de rosa?
— Como?
— Sim, senhor: meias cor de rosa... Acharam sempre, hein?
— Acharam; e foi um patrício nosso, mas... que história é essa de meias cor de rosa?
Craveiro teve um sorriso malicioso e, afagando a papada, murmurou: “É cá uma coisa, doutor. Se eu, naquele dia, tivesse descoberto a direção... Ah! Não lhe conto nada...”
— Que direção?
— A direção que tomou o balão; eram dois...
— Um do Severo, disse o farmacêutico.
— Qual Severo! Um era de uma senhora magra, já idosa, a mãe, creio. Mas o das meias!...
— Que meias?
— Que meias, hein? Que meias?
Pôs-se a ranger os dentes, fechou ameaçadoramente os punhos e... foi metido em camisola de força. E agora a fúria é contra o médico porque entende o infeliz que foi ele (pobre Dr. Brochado!) quem descobriu o balão ou antes — a direção que tomou a dama que o vestia.
E lá está.
Fonte: Olavo Bilac & Coelho Neto. Contos Pátrios. RJ: Francisco Alves, 1931. Disponível em Domínio Público.
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