sábado, 10 de setembro de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 17: Cheiro do Mato

 

Aparecido Raimundo de Souza (Simplesmente a imensidão de estar aqui)

O DIA ACABOU MAIS CEDO. Terminou sorumbático, casmurro, acabrunhado e eu, capiango (1) e apatetado, os pensamentos voando longe, nem me dei conta. Na verdade, quando percebi a falha do desvão, tentei trazer de volta, esses pensamentos, tudo de uma só vez, usando de uma astúcia inventada, meio que sem eira nem beira. Não alcancei êxito. Pois bem! Dancei. Quando atinei com a burrice e percebi o adiantado da noite, a televisão já anunciava o começo de um filme que fazia tempo tinha vontade de assistir. Que loucura! Tudo, hoje, foi tão rápido! Desde as primeiras horas da manhã, a impressão absolvida pela minha cabeça, era a de que o tempo trazia, consigo, uma pressa estranha e maquiavélica, uma decisão tresloucada de querer chegar correndo em algum lugar. E não me enganei. Não sei vinda de onde, recordo, mas juro, havia uma espécie de metamorfose caótica parecida com a de Kafka (2) pairando assarapantada sobre o céu esmaecido da cidade.

Senti, igualmente, uma involuntária alteração de conduta estampada em cada pessoa com quem cruzei pelas ruas. Uma espécie de desolação lastimosa, consternada e hedionda, que podia se ver e sentir no vai-e-vem da multidão afobada, na balbúrdia desembestada dos ônibus que deixavam passageiros com as suas caras de tacho nos pontos de espera, ao longo das avenidas. Até os semáforos abriam e fechavam rápidos demais. Por todos os cantos se ouviam brados horripilantes de insatisfações. Reclamações atípicas cortavam o ar, apimentadas com chuvas de palavrões ensandecidos e respingados de puro ódio e desolação. Um caos!


Lembrava um campo de batalha, eu diria sem medo de errar. Pior, trazia à tona uma arena, tipo um anfiteatro de figuras macabras representando uma peça infernal. Cada ser humano, estampava, no rosto, o vírus do mal, como se possuído pela Cólera de Aquiles (3). De repente, me senti bombardeado, grão-pútrido, preso em meio aos escombros de muros que desabavam de um lado e casas que ruíam de outro. Bem gostaria de fugir de mala e cuia com meus arrepios à tiracolo, para a Noruega. Meu Deus, se lá não fosse tão frio! Em meio a todas as loucuras infrenes e sem explicações plausíveis, qualquer coisa valeria a pena desde que me visse livre e longe do desespero e da instantaneidade que a cada segundo crescia ganhando dimensões maiores ao meu derredor. Para chatear, um carro, o som muito alto, passou barulhento, ao largo da praça, anunciando com estardalhaço incontido, a supremacia do caos irremediável se apossando de tudo.

Entrementes, memorizei Orwell (4), e associei o inferno em que deveria estar metido quando das suas “Horas de ódio”. Não é só uma revolução virtual que a tudo contempla. Impera, de contrapeso, uns quadros enigmáticos, aterradores e reais, onde a massa humana comprimida se debate, embalde, com todas as forças, em busca do eterno não sei o quê! De repente me questiono: o que aconteceu com a droga do mundo? Ficou louco, pirou, assim sem mais nem menos? A resposta está bem aqui diante dos meus olhos, atropelando meu nariz, ou mais precisamente, fustigando os ponteiros do tempo. E se alguém –, penso com meus dissabores saídos da caixinha dos meus medos –, e se alguém atropelasse as horas e parasse os mecanismos dos ponteiros do tempo, ou, via outra, se um louco varrido desse um basta no gigantesco relógio que comanda o Universo?

Quando criança, eu contava com a vantagem de não existir no real, não tinha vida própria. Entretanto, queria que o tempo (o mesmo tempo de hoje) passasse correndo. Que voasse à mil. Detestava as horas que perdia confinado nas carteiras do grupo escolar. Odiava as aulas chatas de matemática. Se pudesse, juro que enfiaria a carcaça do professor numa máquina do tempo e mandava o infeliz embrulhado em papel de presente para a Era Glacial (5). Naquele tempo, naquele tempo, para meu desgosto, não havia máquinas de tempo disponíveis, nem tempo de sobra sobrando para se pensar em algo mais sério, ou em uma solução plausível, por exemplo, que interferisse diretamente no futuro. Hoje, envelhecido, cansado de brigar com o agora, tenho saudades da linearidade do meu tempo de menino, do útil majestoso, das horas que perdia (não perdia, ganhava) nos bancos da escola. Naquela ocasião, eu não atinava com tal grandiosidade... sequer imaginava que o amanhã é um nunca que pode não chegar e o hoje, o agora que atropela.

Ainda agora, aos sessenta e nove, tenho vontade de voltar às noites e aos dias dos meus idos de quinze para dezesseis. Revisitar aqueles Instantes agradáveis que pareciam mais longos e amenos, sem os atropelos ríspidos que hoje pesam sisudos sobre os telhados de vidros das cidades. Todas as cidades e capitais, se revestem de telhados de vidros. As pessoas, não veem, mas são de vidros. Naquele tempo, ou “no longínquo que se quedou inerte, e enterrado”, percebo que o passado não se dizimou. Persiste e não para de ficar cada vez mais distante. Ou seria mais próximo? Vai se saber! Houve dias, dentro daquele outrora, onde eu e ela, a minha namoradinha de vestidinho curto e franjinha cobrindo os olhos, éramos felizes e não sabíamos. Com intuito de tentar explicar, eu não percebia, tampouco entendia ou imaginava a grandiosidade eloquente de estar vivendo.

Vivendo e sonhando. Sonhando e vivendo, a bel prazer das coisas sem noção. De fato, à luz de tornar as coisas inteligíveis, que por agora me norteiam, eu burro aos extremos, não atinava em aprender coisas novas e a criar vínculos duradouros que vivenciassem o “a depois”, de mãos dadas, com o meu futuro. Não me importava, igualmente, com o presente que logo chegaria (ele estava logo ali, aos meus pés) e me levaria (como me levou e me deixou), aos trancos e barrancos por veredas não percorridas. Naquele tempo, ou no tempo dos meus dias forasteiros, eu não sabia, nem me dava conta de que a Felicidade plena e gentil, se escondia faceira, bonançosa e estrepitosa, saltitante e real, bem aqui... Meus Deus, bem aqui dentro de meu peito.  
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Notas de rodapé:

1 – Capiango – Larápio borra-botas, uma espécie de gatuno de meia tigela.   

2 – Kafka – Referência ao escritor Franz Kafka, autor do romance “A Metamorfose”.

3 – A Cólera de Aquiles –  No poema “A Ilíada”, de Homero, Aquiles se contempla como o homem da solidão. Por conta, alimenta a ideia de que é revestido de um heroísmo individual que só ele possui.  

4 – Orwell – Autor da obra “1984”. Aliás, um tema bastante presente em nossos dias. O escritor sinaliza o Estado, como um todo controlando os passos da sociedade e impondo as suas ordens a ferro e a força.

5 – Era glacial – Denominação a qualquer período em que camadas espessas de gelo cobrem vastas áreas da Terra.

Fonte
Texto e notas enviadas pelo autor.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLVI


AMIEL
 
Não, nem no sonho a perfeição sonhada
Existe, pois que é sonho.  Ó Natureza,
Tão monotonamente renovada,
Que cura dás a esta tristeza?
O esquecimento temporário, a estrada
Por engano tomada,
O meditar na ponte na incerteza...

Inúteis dias que consumo lentos
No esforço de pensar na ação,
Sozinho com meus frios pensamentos
Nem com uma 'sperança mão em mão.

É talvez nobre ao coração
Este vazio ser que anseia o mundo,
Este prolixo ser que anseia em vão,
Exânime e profundo

Tanta grandeza que em si mesma é morta!
Tanta nobreza inútil de ânsia e dor!
Nem se ergue a mão para a fechada porta,
Nem o submisso olhar para o amor.
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NÃO QUERO IR ONDE NÃO HÁ A LUZ
 
Não quero ir onde não há a luz,
Do outro lado abóbada do solo,
Ínfera* imensa cripta, não mais ver
As flores, nem o curso ao sol de rios,
Nem onde as estações que se sucedem
Mudam no campo o campo.  Ali, no escuro,
Só sombras múrmuras*, êxuis* de tudo,
Salvo da saudade, eternas moram;
Região aos mesmos íncolas* incógnita,
Dos naturais, se os tem, desconhecida.
Ali talvez só lírios cor de cinza.

Surgirão pálidos da noite imota*.
Ali talvez só pelo som as águas,
Como a cegos, serão, e o surdo curso,
No côncavo sossego lamentoso,
Se acaso à vista habituada aclare,
Será como um cinzento tédio externo.

Não quero o pátrio sol de toda a terra
Deixar atrás, descendo, passo a passo,
A escadaria cujos degraus são
Sucessivos aumentos de negrume,
Até ao extremo solo e noite inteira.

Para que vim a esta clara vida?
Para que vim, se um dia hei de cair
De haste dela? Para que no solo
Se abre o poço da ida? Por que não
Será sem fim [?...]
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* Vocabulário:
Ínfera = que fica abaixo, inferior.
Múrmuras = murmurantes.
Êxuis = desterrados.
Íncolas = moradores, habitantes.
Imota = parada, quieta.

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NÃO QUERO IR ONDE NÃO HÁ LUZ II
 
Não quero ir onde não há luz,
De sob a inútil gleba não ver nunca
As flores, nem o curso o ao sol dos rios,
Nem como as estações que se renovam
Reiteram a terra.  Já  me pesa
Nas pálpebras que tremem o oco medo
De nada ser, e nem ter vista ou gosto,
Calor, amor, o bem e o mal da vida.
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NÃO QUERO MAIS QUE UM SOM DE ÁGUA
 
Não quero mais que um som de água
Ao pé de um adormecer.
Trago sonho, trago mágoa,
Trago com que não querer.

Como nada amei nem fiz
Quero descansar de nada.
Amanhã serei feliz
Se para manhã  há estrada.

Por enquanto, na estalagem
De não ter cura de mim,
Gozarei só pela aragem
As flores do outro jardim.

Por enquanto, por enquanto,
Por enquanto não sei quê...
Pobre alma, choras sem pranto,
E ouves como quem vê.
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NÃO QUERO ROSAS, DESDE QUE HAJAM ROSAS.
 
Não quero rosas, desde que hajam rosas.
Quero-as só quando não as possa haver.
Que hei de fazer das coisas
Que qualquer mão pode colher?

Não quero a noite senão quando a aurora
A fez em ouro e azul se diluir.
O que a minha alma ignora
É isso que quero possuir.

Para quê?... Se o soubesse, não faria
Versos para dizer que inda o não sei.
Tenho a alma pobre e fria...
Ah, com que esmola a aquecerei?…
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NÃO SEI SER TRISTE A VALER
 
Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma
E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,
Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm
Vamos florir ou pensar.

Francis Scott Fitzgerald (Este lado do Paraíso)


Romance de estreia de Fitzgerald, “Este lado do paraíso” alcançou sucesso imediato quando foi publicado originalmente em 1920. Este livro é o retrato de uma geração jovem desiludida com a guerra, conhecida como Geração Perdida. Fitzgerald foi o porta-voz de sua época, identificando-se com a juventude americana elegante e irreverente.

Podemos facilmente dizer que o livro trata-se de um romance de formação por nos mostrar a trajetória de Amory desde seus primeiros anos, ainda criança - uma das partes mais interessantes do livro é a que concentra-se na mãe do personagem -, até o momento em que ele, já formado e tendo passado por uma guerra, encontra-se sem direção.

Nascido em berço de ouro, Amory Blaine foi mimado por sua mãe, Beatrice, uma mulher que reunia as qualidades esperadas de uma dona-de-casa rica da virada do século XX. Ela era bonita, interessante, propensa a doenças misteriosas e com um fraco por vícios em bebidas e medicamentos. Nada além do normal dentro daquela sociedade. Beatrice praticamente criou Amory sozinha, já que o pai do rapaz ausenta-se durante todo o romance. A educação era, de fato, vista como assunto de mulheres. E Amory foi educado de forma muito próxima pela mãe durante seus anos de infância, o que parece tê-lo marcado para sempre. Se Fitzgerald colocou tal construção como crítica ao apego entre uma mãe e um filho fica à interpretação do leitor.

É interessante perceber como Amory passa de um jovem que tem tudo - dinheiro, status e convicções firmes - para alguém que não possui grandes certezas, alquebrado pelo mundo que o rodeia, a qual não mais sente-se pertencente. O Amory que acompanhamos durante mais da metade do romance exibindo seu intelecto, fazendo farras com os colegas, tendo diversos encontros e usando o mundo como se fosse seu parque de diversões é bem diferente do rapaz que encontramos da metade para o final da história, quando ele já está com as ilusões por terra e enxerga o mundo e a si mesmo como coisas irremediáveis.

O estilo muda conforme Amory vai perdendo as bases fundamentais que sustentavam sua personalidade. O que começa como prosa muda para poemas, diários, cartas e teatro. Não há uma constante porque aquela era uma época de mudanças - tal qual o é esta. A guerra, a crise econômica, o rompimento com Rosalind, seu primeiro e mais intenso amor (claramente baseada em Zelda), a pandemia, a falta de perspectivas, tudo deprime aqueles personagens, que continuam tentando encontrar seus lugares, quer seja numa profissão, quer seja num casamento tradicional, seguindo os passos da geração anterior que já não se encaixam naquele contexto, pois os valores vitorianos foram rompidos no início do século XX.

Amory é um jovem rico, de família tradicional, e que cumpre os requisitos da alta sociedade da época. Vai para um internato, estuda numa faculdade de ponta, entra para uma fraternidade, é benquisto pelos colegas - e até mesmo um pouco invejado. Mas, conforme vai se aventurando por leituras de autores clássicos, como Tolstói, políticas e filosóficas, Amory tem sua visão de mundo modificada. Isso dialoga com a experiência que teve na pré-adolescência, nos poucos anos em que morou junto com os tios, no meio do nada, onde viveu à parte do círculo de riquezas e benefícios que lhe cercaram desde o berço. Embora ele fosse um jovem rico para quem tudo estava ao alcance, o mundo que se desenhava à sua frente era mais complexo e ele, seja por suas leituras, seja pela experiência de ter morado com os tios num local afastado e visto algo para além de si mesmo e do luxo com o qual crescera, não conseguia simplesmente ignorar aquilo que percebia. Sua sede por tornar-se alguém - ter uma definição que fosse além dos muros do nascimento - cresceu de tal modo que afetou os rumos de sua vida, impregnando para sempre Amory de um sentimento de desilusão.

Com uma narrativa vibrante, um tom fortemente autobiográfico e sua ironia típica, o autor nos revela a imaturidade e a insensatez dos jovens deslumbrados pelo progresso. Um dos maiores escritores americanos do século XX, Francis Scott Fitzgerald publicou, além de contos e ensaios, os romances Os belos e malditos (1922), O grande Gatsby (1925), Suave é a noite (1934) e O último magnata (1941).

Francis Scott Fitzgerald captou como ninguém o que era ser jovem numa América ainda jovem. E o conseguiu fazendo o que para muitos escritores é conveniência, mas em seu caso era coragem: levando sua vida para sua arte de forma inédita.” Daniel Piza, trecho do prefácio.

Fontes:
Ed. Record
Mia Sodré. Este Lado do Paraíso: os ecos de uma Geração Perdida. In Querido Clássico. nov. 2020.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Nélio BessanT (Caderno de Trovas) 3

 

Contos e Lendas do Paraná - 12 (Município de Ponta Grossa: Tesouro do Capão da Onça)


 Lá pelo mês de junho de 1932, o coronel Brasílio França procurou desvendar o que havia de realidade sobre o lendário tesouro do padre fantasma, segundo o Jornal Diário dos Campos. O Capão da Onça é um local ao leste da cidade, rumo a Itaiacoca, onde está situada a fazenda do coronel João Carneiro Ribas, além do rio Verde, próximo às terras da fazenda Modelo. Do matagal insulado no meio da campina, como um oásis, onde, em remotas eras, foi caçada uma onça, adveio o nome para a região.

Sobre ele há narrativas fantásticas. Narrativas, onde, como sempre, aparecem lendas de tesouros enterrados, jesuítas e assombrações terríficas. Carroceiros e boiadeiros evitam fazer pousada nas proximidades, pois muitos outros que ali estavam descansando da jornada, foram bruscamente despertados com pedradas, toques lúgubres de sinos e gritos angustiosos. Outros juram, “de pés juntos”, que viram um padre macilento que desaparecia após fazer sinais.

Nas proximidades, há alguns anos atrás, o coronel Jordão Ribas da Silva possuía uma fazenda, nela habitava um polonês, ainda jovem. Certo dia, andando a reunir uma rês tresmalhada, este lavrador aproximou-se do local assombrado, viu um sacerdote que o chamava. Aproximou-se respeitosamente do clérigo. E o polonês ouviu as seguintes palavras, ditas com doçura: “meu filho, tem um tesouro enterrado e te escolhi para o herdares. Acompanha-me”. Disse o fantasma. E tomando uma das mãos do lavrador, o padre fantasma conduziu-o a determinado local, dizendo que cavasse a terra e usasse, como bom cristão, do ouro que outrora os jesuítas ali depositaram. E desapareceu.

O polonês, radiante, correu à casa em busca de ferramentas, com as quais desenterraria do seio avaro da terra o ouro precioso, que lhe proporcionaria o conforto que até ali o destino lhe sonegara. Num instante, voltou o polonês com uma pá nas mãos e mil sonhos ensandecidos na cabeça. O ouro!

Era o destino, personagem sempre perverso, mas poderoso, que até os deuses governava, que lhe negara uma vida melhor. Mas, Deus, por intermédio de seu sacerdote finado, o presenteava com o ouro. E quantas coisas ele faria. Seria como o bom padre, um bom cristão. E assim, chegou ao local designado pela aparição, titubeando. Mas hesitou. Seria ali?

Tomara boa nota dos indícios? Mas, agora duvidava! No entanto, pôs mão à obra. Cavou, cavou, sem que o loiro e vil metal surgisse encoberto com carvões, como reza a tradição. Fez novas e incessantes escavações. Tudo inútil! Entretanto, ele, em pleno dia e são de espírito, tinha perfeita consciência de todas as minúcias da estranha aparição do padre e de suas palavras. E profundamente abalado, perdeu o senso de humor e o juízo! Várias outras pessoas têm, em diferentes épocas, procurado o tesouro do Capão da Onça.

Atraído pela lenda, por fatos ou previsões mais ou menos justificáveis, o coronel Basílio França, honrado e conceituado comerciante de nossa cidade, tem explorando o capão da onça, procurando o legendário tesouro dos jesuítas.

O Capão da Onça é um dos locais mais procurados pela população, por ser mais próximo da cidade. Devido ao grande fluxo de visitantes, ocorre a degradação do meio ambiente, como o desaparecimento da vegetação e dos animais, principalmente dos pássaros.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 8


ABISSAL

O poema estava ali, entre os destroços,
Intocado, escondido, submerso,
Incompleto de palavras e de versos,
Entre algas e corais e entre ossos...
Visão turva, pouca luz e oxigênio,
Tempo escasso para o mergulhador
Cauteloso, observando cada cor,
Cada letra desenhada por um gênio...

A emoção fluía livre e se perdia
Na corrente abissal dos sentimentos;
Ofegante, triste e só, por uns momentos,
O nadador emocionou-se com o que lia...

Era um trecho tão triste... dizia assim:
Meu amor, de tanta dor de tanto pranto,
Acabei criando um mar, pois chorei tanto
Que afoguei meu próprio amor dentro de mim.
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MINHA SOMBRA

Sob a luz fria da Lua,
minha sombra me seguia.
Estranhei ao vê-la nua
como um flash de poesia.
Tê-la em mim, beijando a rua
era mais que fantasia,
para que meu sonho flua,
minha dor se distancia.

Quando a noite atenua
sua escuridão sombria,
o Sol logo se insinua

E a Lua, por ironia,
some e leva a forma nua
da sombra... que me seguia.
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NUM CLIC

Tu finges que não lês o que eu digito,
Mas guardas meu silêncio no teu peito,
Teu coração que é sempre insatisfeito,
Espera muito mais do que eu não grito.

Teus olhos, entretanto, me percorrem,
Socorrem-te no amor que te provoca,
Teu corpo me procura... quem te toca
São gotas lacrimais que, em vão, escorrem.

Para curtir-me é simples: basta apenas
Um clic e a mensagem é automática:
E chega fria, triste... sintomática,
Mas traz as tuas lágrimas serenas.

Eu sinto o teu sentir... mudo a mensagem
E ao clicar, escolho um coração,
Pois pode ser que minha intenção
Transforme...em emoção... a nova imagem.

Num clic, aciono o celular,
Mas o que eu digitei, por ironia,
Passou a ser um pingo de poesia,
Do tanto que eu queria te falar.

Enfim, busco no meu computador,
Um ícone maior que me permita
Fazer da minha tecla, que te grita,
Só uma frase aflita: Meu amor!
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PERSPECTIVA

Dentro dos olhos que se fecham sobre a vida,
O teu sorriso se condensa em fantasia,
A tua tela é pulsante e colorida
E a tua vida faz da tinta, a poesia.

Tudo é revisto com sutis perspectivas,
E cada traço geométrico que traças,
Longe das frias lentes das objetivas,
É muito mais que imagem fora das vidraças.

Surrealista na intenção, porém real
Na dimensão que a metafísica alcança,
A tinta dança na pureza do vitral
Que o teu olhar vai colorindo de esperança.

O todo é tudo e quando tudo é tempo e pó,
Cada partícula do tempo que se ausenta
Vai transformando a essência de estar só
Na emoção que o teu silêncio experimenta.

E é nessa doce ocasião de libertar
O teu sorriso sobre a mágica das tintas,
Que tu libertas, com teu jeito de sonhar,
No coração, a emoção com que te pintas.
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PÓLEN

Algumas flores antecipam primaveras...
E outras tantas atravessam estações.
São sempre assim, as emoções... como as quimeras,
Que, sem esperas, acalentam corações.

Algumas dores vão e vêm... quem as aguarda,
Nunca se ocupa com as próprias fantasias,
Veste só roupas para guerras, usa a farda
Da amargura e se despe da alegria.

Se a tristeza é uma flor despetalada,
Que ao secar, não poliniza nem produz,
O amor é luz nas mãos sutis de um jardineiro

Tão fascinado com a flor polinizada
Que o enternece, abençoa e seduz
Pois faz, da cor, o seu mais doce mensageiro.
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QUANDO A SAUDADE ME VISITA

A cada dia que a saudade me visita,
não vem sozinha, traz o afeto pela mão,
meu coração acha a saudade tão bonita,
que é incapaz de aceitar a solidão.

O meu sorriso se instala e a dor aflita
não mais se irrita, ao perceber que a suavidade,
de uma lembrança, passa a ser tão irrestrita,
que até se agita dentro da felicidade.

Minha saudade é soberana e infinita ,
ela é que  filtra a dor que mora no passado
e o resultado é uma alegria tão bendita,
que o meu amor sempre caminha do seu lado.

E quando a vida que me dão, não me completa,
por ser repleta de arrogância e falsidade,
levo a saudade para dentro do poeta
e deixo o sonho transitar... em liberdade.

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de Versos. Campo Mourão/PR: Edição JFeldman, 2020.

Machado de Assis (Jogo do Bicho)

Camilo, — ou Camilinho, como lhe chamavam alguns por amizade, — ocupava em um dos arsenais do Rio de Janeiro (marinha ou guerra) um emprego de escrita. Ganhava duzentos mil réis por mês, sujeitos ao desconto de taxa e montepio. Era solteiro, mas um dia, pelas férias, foi passar a noite de Natal com um amigo no subúrbio do Rocha; lá viu uma criaturinha modesta, vestido azul, olhos pedintes. Três meses depois estavam casados.

Nenhum tinha nada; ele, apenas o emprego, ela as mãos e as pernas para cuidar da casa toda, que era pequena, e ajudar a preta velha que a criou e a acompanhou sem ordenado. Foi esta preta que os fez casar mais depressa. Não que lhes desse tal conselho; a rigor, parecia-lhe melhor que ela ficasse com a tia viúva, sem obrigações, nem filhos. Mas ninguém lhe pediu opinião. Como, porém, dissesse um dia que, se sua filha de criação casasse, iria servi-la de graça, esta frase foi contada a Camilo, e Camilo resolveu casar dois meses depois. Se pensasse um pouco, talvez não casasse logo; a preta era velha, eles eram moços, etc. A ideia de que a preta os servia de graça, entrou por uma verba eterna no orçamento.

Germana, a preta, cumpriu a palavra dada.

— Um caco de gente sempre pode fazer uma panela de comida, disse ela.

Um ano depois o casal tinha um filho, e a alegria que trouxe compensou os ônus que traria. Joaninha, a esposa, dispensou ama, tanto era o leite, e tamanha a robustez, sem contar a falta de dinheiro; também é certo que nem pensaram nisto.

Tudo eram alegrias para o jovem empregado, tudo esperanças. Ia haver uma reforma no arsenal, e ele seria promovido. Enquanto não vinha a reforma, houve uma vaga por morte, e ele acompanhou o enterro do colega, quase a rir. Em casa não se conteve e riu. Expôs à mulher tudo o que se ia dar, os nomes dos promovidos, dois, um tal Botelho, protegido pelo general*** e ele. A promoção veio e apanhou Botelho e outro. Camilo chorou desesperadamente, deu murros na cama, na mesa e em si.

— Tem paciência, dizia-lhe Joaninha.

— Que paciência? Há cinco anos que marco passo...

Interrompeu-se. Aquela palavra, da técnica militar, aplicada por um empregado do arsenal, foi como água na fervura; consolou-o. Camilo gostou de si mesmo. Chegou a repeti-la aos companheiros íntimos. Daí a tempos, falando-se outra vez em reforma, Camilo foi ter com o ministro e disse:

— Veja V. Exª. que há mais de cinco anos vivo marcando passo.

O grifo é para exprimir a acentuação que ele deu ao final da frase. Pareceu-lhe que fazia boa impressão ao ministro, conquanto todas as classes usassem da mesma figura, funcionários, comerciantes, magistrados, industriais, etc., etc.

Não houve reforma; Camilo acomodou-se e foi vivendo. Já então tinha algumas dívidas, descontava os ordenados, buscava trabalhos particulares, às escondidas. Como eram moços e se amavam, o mau tempo trazia ideia de um céu perpetuamente azul.

 Apesar desta explicação, houve uma semana em que a alegria de Camilo foi extraordinária. Ides ver. Que a posteridade me ouça. Camilo, pela primeira vez, jogou no bicho. Jogar no bicho não é um eufemismo como matar o bicho. O jogador escolhe um número, que convencionalmente representa um bicho, e se tal número acerta de ser o final da sorte grande, todos os que arriscaram nele os seus vinténs ganham, e todos os que fiaram dos outros perdem. Começou a vinténs e dizem que está em contos de réis; mas, vamos ao nosso caso.

Pela primeira vez Camilo jogou no bicho, escolheu o macaco, e, entrando com cinco tostões, ganhou não sei quantas vezes mais. Achou nisto tal despropósito que não quis crer, mas afinal foi obrigado a crer, ver e receber o dinheiro. Naturalmente tornou ao macaco, duas, três, quatro vezes, mas o animal, meio homem, falhou às esperanças do primeiro dia. Camilo recorreu a outros bichos, sem melhor fortuna, e o lucro inteiro tornou à gaveta do bicheiro. Entendeu que era melhor descansar algum tempo; mas não há descanso eterno, nem ainda o das sepulturas. Um dia lá vem a mão do arqueólogo a pesquisar os ossos e as idades.

 Camilo tinha fé. A fé abala as montanhas. Tentou o gato, depois o cão, depois o avestruz; não havendo jogado neles, podia ser que... Não pôde ser; a fortuna igualou os três animais em não lhes fazer dar nada. Não queria ir pelos palpites dos jornais, como faziam alguns amigos. Camilo perguntava como é que meia dúzia de pessoas, escrevendo notícias, podiam adivinhar os números da sorte grande. De uma feita, para provar o erro, concordou em aceitar um palpite, comprou no gato, e ganhou.

 — Então? perguntaram-lhe os amigos.

— Nem sempre se há de perder, disse este.

 — Acaba-se ganhando sempre, acudiu um; a questão é tenacidade, não afrouxar nunca.

 Apesar disso, Camilo deixou-se ir com os seus cálculos. Quando muito, cedia a certas indicações que pareciam vir do céu, como um dito de criança de rua: “Mamãe, por que é que a senhora não joga hoje na cobra?” Ia-se à cobra e perdia; perdendo, explicava a si mesmo o fato com os melhores raciocínios deste mundo, e a razão fortalecia a fé.

 Em vez de reforma da repartição veio um aumento de vencimentos, cerca de sessenta mil réis mensais. Camilo resolveu batizar o filho, e escolheu para padrinho nada menos que o próprio sujeito que lhe vendia os bichos, o banqueiro certo. Não havia entre eles relações de família; parece até que o homem era um solteirão sem parentes. O convite era tão inopinado, que quase o fez rir, mas viu a sinceridade do moço, e achou tão honrosa a escolha que aceitou com prazer.

 — Não é negócio de casaca?

— Qual, casaca! Coisa modesta.

— Nem carro?

— Carro...

 — Para que carro?

— Sim, basta ir a pé. A igreja é perto, na outra rua.

— Pois a pé.

Qualquer pessoa atilada descobriu já que a ideia de Camilo é que o batizado fosse de carro. Também descobriu, à vista da hesitação e do modo, que entrava naquela ideia a de deixar que o carro fosse pago pelo padrinho; não pagando o padrinho, não pagaria ninguém. Fez-se o batizado, o padrinho deixou uma lembrança ao afilhado, e prometeu, rindo, que lhe daria um prêmio na águia.

Esta graçola explica a escolha do pai. Era desconfiança dele que o bicheiro entrava na boa fortuna dos bichos, e quis ligar-se-lhe por um laço espiritual. Não jogou logo na águia “para não espantar”, disse consigo, mas não esqueceu a promessa, e um dia, com ar de riso, lembrou ao bicheiro:

— Compadre, quando for a águia, diga.

— A águia?

Camilo recordou-lhe o dito; o bicheiro soltou uma gargalhada.

— Não, compadre; eu não posso adivinhar. Aquilo foi pura brincadeira. Oxalá que eu lhe pudesse dar um prêmio. A águia dá; não é comum, mas dá.

— Mas porque é que eu ainda não acertei com ela?

— Isso não sei; eu não posso dar conselhos, mas quero crer que você, compadre, não tem paciência no mesmo bicho, não joga com certa constância. Troca muito. É por isso que poucas vezes tem acertado. Diga-me cá: quantas vezes tem acertado?

— De cor, não posso dizer, mas trago tudo muito bem escrito no meu caderno.

— Pois veja, e há de descobrir que todo o seu mal está em não teimar algum tempo no mesmo bicho. Olhe, um preto, que há três meses joga na borboleta ganhou hoje e levou uma bolada...

Camilo escrevia efetivamente a despesa e a receita, mas não as comparava para não conhecer a diferença. Não queria saber do déficit. Posto que metódico, tinha o instinto de fechar os olhos à verdade, para não a ver e aborrecer. Entretanto, a sugestão do compadre era aceitável; talvez a inquietação, a impaciência, a falta de fixidez nos mesmos bichos fosse a causa de não tirar nunca nada.

Ao chegar à casa achou a mulher dividida entre a cozinha e a costura. Germana adoecera e ela fazia o jantar, ao mesmo tempo que acabava o vestido de uma freguesa. Cosia para fora, a fim de ajudar as despesas da casa e comprar algum vestido para si. O marido não ocultou o desgosto da situação. Correu a ver a preta; já a achou melhor da febre com o quinino que a mulher tinha em casa e lhe dera “por sua imaginação”; e a preta acrescentou sorrindo:

— Imaginação de nhã Joaninha é boa.

Jantou triste, por ver a mulher tão carregada de trabalho, mas a alegria dela era tal, apesar de tudo, que o fez alegre também. Depois do café, foi ao caderno que trazia fechado na gaveta e fez os seus cálculos. Somou as vezes e os bichos, tantas na cobra, tantas no galo, tantas no cão e no resto, uma fauna inteira, mas tão sem persistência, que era fácil desacertar. Não queria somar a despesa e a receita para não receber de cara um grande golpe, e fechou o caderno. Afinal não pôde, e somou lentamente, com cuidado para não errar; tinha gasto setecentos e sete mil réis, e tinha ganho oitenta e quatro mil réis, um déficit de seiscentos e vinte e três mil réis. Ficou assombrado.

— Não é possível!

Contou outra vez, ainda mais lento, e chegou a uma diferença de cinco mil réis para menos. Teve esperanças e novamente somou as quantias gastas, e achou o primitivo déficit de seiscentos e vinte e três mil réis. Trancou o caderno na gaveta; Joaninha, que o vira jantar alegre, estranhou a mudança e perguntou o que é que tinha.

— Nada.

— Você tem alguma coisa; foi alguma lembrança...

— Não foi nada.

Como a mulher teimasse em saber, engendrou uma mentira, — uma turra com o chefe da seção, — coisa de nada.

— Mas você estava alegre...

— Prova de que não vale nada. Agora lembrou-me... e estava pensando no caso, mas não é nada. Vamos à bisca.

A bisca era o espetáculo deles, a Ópera, a Rua do Ouvidor, Petrópolis, Tijuca, tudo o que podia exprimir um recreio, um passeio, um repouso. A alegria da esposa voltou ao que era. Quanto ao marido, se não ficou tão expansivo como de costume, achou algum prazer e muita esperança nos números das cartas. Jogou a bisca fazendo cálculos, conforme a primeira carta que saísse, depois a segunda, depois a terceira; esperou a última; adotou outras combinações, a ver os bichos que correspondiam a elas, e viu muito deles, mas principalmente o macaco e a cobra; firmou-se nestes.

— O meu plano está feito, saiu pensando no dia seguinte, vou até aos setecentos mil réis. Se não tirar quantia grossa que anime, não compro mais.

Firmou-se na cobra, por causa da astúcia, e caminhou para a casa do compadre. Confessou-lhe que aceitara o seu conselho, e começava a teimar na cobra.

— A cobra é boa, disse o compadre.

Camilo jogou uma semana inteira na cobra, sem tirar nada. Ao sétimo dia, lembrou-se de fixar mentalmente uma preferência, e escolheu a cobra-coral, perdeu; no dia seguinte, chamou-lhe cascavel, perdeu também; veio à surucucu, à jiboia, à jararaca, e nenhuma variedade saiu da mesma tristíssima fortuna. Mudou de rumo. Mudaria sem razão, apesar da promessa feita; mas o que propriamente o determinou a isto foi o encontro de um carro que ia matando um pobre menino. Correu gente, correu polícia, o menino foi levado à farmácia, o cocheiro ao posto da guarda. Camilo só reparou bem no número do carro, cuja terminação correspondia ao carneiro; adotou o carneiro. O carneiro não foi mais feliz que a cobra.

Não obstante, Camilo apoderou-se daquele processo de adotar um bicho, e jogar nele até estafá-lo: era ir pelos números adventícios. Por exemplo, entrava por uma rua com os olhos no chão, dava quarenta, sessenta, oitenta passos, erguia repentinamente os olhos e fitava a primeira casa à direita ou à esquerda, tomava o número e ia dali ao bicho correspondente. Tinha já gasto o processo de números escritos e postos dentro do chapéu, o de um bilhete do Tesouro, — coisa rara, — e cem outras formas, que se repetiam ou se completavam. Em todo caso, ia descambando na impaciência e variava muito. Um dia resolveu fixar-se no leão; o compadre, quando reconheceu que efetivamente não saía do rei dos animais, deu graças a Deus.

— Ora, graças a Deus que o vejo capaz de dar o grande bote. O leão tem andado esquivo, é provável que derrube tudo, mais hoje, mais amanhã.

— Esquivo? Mas então não quererá dizer...?

— Ao contrário.

Dizer quê? Ao contrário, quê? Palavras escuras, mas para quem tem fé e lida com números, nada mais claro. Camilo elevou ainda mais a soma da aposta. Faltava pouco para os setecentos mil réis; ou vencia ou morria.

A jovem consorte mantinha a alegria da casa, por mais dura que fosse a vida, grossos os trabalhos, crescentes as dívidas e os empréstimos, e até não raras as fomes. Não lhe cabia culpa, mas tinha paciência. Ele, em chegando aos setecentos mil réis, trancaria a porta. O leão não queria dar. Camilo pensou em trocá-lo por outro bicho, mas o compadre afligia-se tanto com essa frouxidão, que ele acabaria entre os braços da realeza. Faltava já pouco; enfim, pouquíssimo.

— Hoje respiro, disse Camilo à esposa. Aqui está a nota última.

Cerca das duas horas, estando à mesa da repartição, a copiar um grave documento, Camilo ia calculando os números e descrendo da sorte. O documento tinha algarismos; ele errou-os muita vez, por causa do atropelo em que uns e outros lhe andavam no cérebro. A troca era fácil; os seus vinham mais vezes ao papel que os do documento original. E o pior é que ele não dava por isso, escrevia o leão em vez de transcrever a soma exata das toneladas de pólvora...

De repente, entra na sala um contínuo, chega-se-lhe ao ouvido, e diz que o leão dera. Camilo deixou cair a pena, e a tinta inutilizou a cópia quase acabada. Se a ocasião fosse outra, era caso de dar um murro no papel e quebrar a pena, mas a ocasião era esta, e o papel e a pena escaparam às violências mais justas deste mundo; o leão dera. Mas, como a dúvida não morre:

— Quem é que disse que o leão deu? perguntou Camilo baixinho.

— O moço que me vendeu na cobra.

— Então foi a cobra que deu.

— Não, senhor; ele é que se enganou e veio trazer a notícia pensando que eu tinha comprado no leão, mas foi na cobra.

— Você está certo?

— Certíssimo.

Camilo quis deitar a correr, mas o papel borrado de tinta acenou-lhe que não. Foi ao chefe, contou-lhe o desastre e pediu para fazer a cópia no dia seguinte; viria mais cedo, ou levaria o original para casa...

— Que está dizendo? A cópia há de ficar pronta hoje.

— Mas são quase três horas.

— Prorrogo o expediente.

Camilo teve vontade de prorrogar o chefe até ao mar, se lhe era lícito dar tal uso ao verbo e ao regulamento. Voltou à mesa, pegou de uma folha de papel e começou a escrever o requerimento de demissão. O leão dera; podia mandar embora aquele inferno. Tudo isto em segundos rápidos, apenas um minuto e meio. Não tendo remédio, entrou a recopiar o documento, e antes das quatro horas estava acabado. A letra saiu tremida, desigual, raivosa, agora melancólica, pouco a pouco alegre, à medida que o leão dizia ao ouvido do amanuense, adoçando a voz: Eu dei! eu dei!

— Ora, chegue-se, dê cá um abraço, disse-lhe o compadre, quando ele ali apareceu. Afinal a sorte começa a protegê-lo.

— Quanto?

— Cento e cinco mil réis.

Camilo pegou em si e nos cento e cinco mil réis, e só na rua advertiu que não agradecera ao compadre; parou, hesitou, continuou. Cento e cinco mil réis! Tinha ânsia de levar à mulher aquela notícia; mas, assim... só...?

— Sim, é preciso festejar esse acontecimento. Um dia não são dias. Devo agradecer ao céu a fortuna que me deu. Um pratinho melhor à mesa...

Viu perto uma confeitaria; entrou por ela e espraiou os olhos, sem escolher nada. O confeiteiro veio ajudá-lo, e, notando a incerteza de Camilo entre mesa e sobremesa, resolveu vender-lhe ambas as coisas. Começou por um pastelão, “um rico pastelão, que enchia os olhos, antes de encher a boca e o estômago”. A sobremesa foi “um rico pudim”, em que havia escrito, com letras de massa branca este viva eterno: “Viva a esperança!”. A alegria de Camilo foi tanta e tão estrepitosa que o homem não teve remédio senão oferecer-lhe vinho também, uma ou duas garrafas. Duas.

— Isto não vai sem Porto; eu lhe mando tudo por um menino. Não é longe?

Camilo aceitou e pagou. Entendeu-se com o menino acerca da casa e do que faria. Que lhe não batesse à porta; chegasse e esperasse por ele; podia ser que ainda não estivesse em casa; se estivesse, viria à janela, de quando em quando. Pagou dezesseis mil réis e saiu.

Estava tão contente com o jantar que levava e o espanto da mulher, nem se lembrou de presentear Joaninha com alguma joia. Esta ideia só o assaltou no bonde, andando; desceu e voltou a pé, a buscar um mimo de ouro, um broche que fosse, com uma pedra preciosa. Achou um broche nestas condições, tão modesto no preço, cinquenta mil réis — que ficou admirado; mas comprou-o assim mesmo, e voou para casa.

 Ao chegar, estava à porta o menino, com cara de o haver já descomposto e mandado ao diabo. Tirou-lhe os embrulhos e ofereceu-lhe uma gorjeta.

— Não, senhor, o patrão não quer.

 — Pois não diga ao patrão; pegue lá dez tostões; servem para comprar na cobra, compre na cobra.

 Isto de lhe indicar o bicho que não dera, em vez do leão, que dera, não foi cálculo nem perversidade; foi talvez confusão. O menino recebeu os dez tostões, ele entrou para casa com os embrulhos e a alma nas mãos e trinta e oito mil réis na algibeira.

Fonte:
Publicado originalmente em Almanaque Brasileiro Garnier, 1904.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 27

 

Luís da Câmara Cascudo (A Missa dos Mortos)

(Região Sudeste)

De todas as coisas, porém, capazes de arrepiar cabelo, e que ouvi em minha infância ouro pretana, nenhuma tão tremenda como a Missa dos Mortos, na Igreja das Mercês de Cima.

Quem m'a contou é pessoa conhecida em toda a cidade de Ouro Preto, e exercia funções incompatíveis com o uso da falsidade em suas informações.

Foi João Leite, o saudoso João Leite, pardo, miudinho, anguloso, sempre montado em seu cavalinho branco, minúscula montaria de hábitos austeros, que se contentava de viver da escassa relva do adro da Igreja.

Seria possível que uma pessoa estimável e honesta como João Leite, sacristão de confiança de uma irmandade, zelador de um templo, tivesse coragem de depois de pregar uma mentira envolvendo mortos respeitáveis, fosse tranquilamente dormir na sacristia, tendo ao lado um cemitério?

Tenho dúvidas. João Leite era ele próprio uma figura mista, metade deste mundo, metade do outro. Suas origens eram misteriosas. Foi enjeitado, com horas de nascido, à porta da Santa Casa, em época que não se sabe. Não se sabe, ainda, quando começou a funcionar como sacristão das Mercês. As mais velhas pessoas da cidade já o conheciam desde criança, nesse mister, com a mesma cara, sempre com o mesmo cavalinho branco.

Quando alguém indagava de João Leite suas origens ou o tempo que servia Nossa Senhora das Mercês, em sua Igreja, João Leite sorria e não respondia nada Um belo dia, há alguns anos, foi encontrado morto diante do altar-mor, deitado no chão, com as mãos sobre o peito, arrumadinho como se estivesse dentro de um caixão. O cavalinho branco sumiu sem que dele ninguém desse notícias.

Pois João Leite, segundo narrativa que lhe ouvi, já lá vão mais de trinta anos, assistiu a uma Missa dos Mortos.

Morando na sacristia do templo cuja conserva lhe era confiada, achava-se recolhido altas horas da noite, quando ouviu bulha na capela. A noite era fria e João Leite estava com a cabeça coberta para esquentar-se melhor. Descobriu-a e abrindo os olhos viu claridade.

Seriam ladrões? Mas a Igreja era pobre e qualquer ladrão, por mais estúpido que fosse, saberia que a Igreja das Mercês, sendo paupérrima, não dispunha de prataria, de qualquer outra coisa de valor mercantil. Enfim, podia ser, raciocinou João Leite.

Estava nessa dúvida quando ouviu sussurrado por vozes cavas em coro, o "Deus vos salve" do começo da ladainha.

Ergueu-se e foi resolutamente pelo corredor até a porta que dá para a nave. A Igreja estava toda iluminada, altares, lustres; e completamente cheia de fiéis.

No altar-mor, um sacerdote paramentado celebrava missa.

João Leite estranhou a nuca do padre, muito branca, não se lembrando de calvície tão completa no clero de Ouro Preto.

Os fiéis que enchiam a nave trajavam todos de preto, e entre eles alguns de cogulas, e algumas senhoras com o hábito das Mercês; todos de cabeças baixas.

Quando o Padre celebrante se voltou para dizer o Dominus Vobiscum, João Leite verificou que era uma simples caveira que ele tinha em lugar da cabeça.

Assustou-se, e nesse momento reparando nos assistentes, agora de pé, viu que também eles não eram mais do que esqueletos vestidos. Procurou logo afastar-se dali, e, caminhando, deu com a porta que deitava para o cemitério completamente escancarada.

O melhor que tinha a fazer, fez. Recolheu-se à cama, cobriu a cabeça, transido de medo, e ficou quietinho ouvindo o sussurro das vozes orando, o tinir da campainha na "Consagração" e no Domine nom sum dignus, até que voltou de novo o pesado silêncio das frias noites de Vila Rica.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos.

Porto Alegre 250 anos (Trovas Premiadas)


ÂMBITO NACIONAL

VETERANOS

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VENCEDORES
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Cidade Sorriso... encanto,
brilha um céu bem mais azul!
Há beleza em cada canto,
no Rio Grande do Sul.
SÍLVIA SVEREDA
Irati/PR

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Ela é tudo o que eu preciso,
formosura em alto grau:
Ela é a Cidade Sorriso!
― Vou pra Porto Alegre, tchau!...
PAULO CEZAR TÓRTORA
Rio de Janeiro/RJ

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Cidade plena de encantos
traz, em si, gentil aviso
- Aqui, terminam seus prantos ,
esta é a "Cidade Sorriso" !!!
ALBA HELENA CORRÊA
Niterói/RJ


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MENÇÕES HONROSAS
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Dos pampas vem um aviso
que traz ao Brasil conforto:
há uma cidade-sorriso
a quem busca alegre porto.
EDWEINE LOUREIRO
Saitama/Japão

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Cidade-Sorriso tem
o que aquece o coração:
povo afável e do bem,
poesia e chimarrão.
GERALDO TROMBIN
Americana/SP

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Não há cidade que exiba
um por de sol mais preciso
que o visto, aos pés do Guaíba
pela Cidade Sorriso!
ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG


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MENÇÕES ESPECIAIS
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É Porto Alegre um encanto...
"cidade sorriso", e mais,
da UBT, belo recanto,
palco de Jogos Florais.
MÁRIO MOURA MARINHO
Sorriso/MT

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Na visão de um paraíso...
Vê, Porto Alegre risonha,
sendo a cidade sorriso
no coração de quem sonha!
ANA MARIA GUERRIZE GOUVEIA
Santos/SP

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Que com minha alma se integre...
Que... me lembre o Paraíso...
Busco... e encontro: Porto Alegre -
minha Cidade Sorriso!...
JAIME PINA DA SILVEIRA
São Paulo/SP


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TROVA DESTAQUE
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Mais do que nunca é preciso,
retornar à vida plena!
E em ti, Cidade Sorriso,
sei que sonhar vale a pena!
FERNANDO ANTÔNIO BELINO
Sete Lagoas/MG


ÂMBITO NACIONAL

NOVOS TROVADORES

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VENCEDORES
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Porto Alegre, paraíso,
de beleza sem igual,
linda Cidade Sorriso,
esta grande Capital!
NAZARETH FERRARI
Taubaté/SP

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Porto Alegre, Capital,
reconhecer é preciso,
de tão bela e especial,
chamam, Cidade Sorriso!
CLEBER DUARTE
Umarizal/RN


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MENÇÕES HONROSAS
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Por seu nome já se sabe,
explicar nem é preciso,
que a nenhuma outra cabe,
ser a Cidade Sorriso.
LAÉRCIO SANT’ANNA
São Paulo/SP

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Minha cidade sorriso
Porto Alegre hospitaleira,
pedaço do paraíso
nesta terra brasileira.
WILTON DI CALI
Guarulhos/SP


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MENÇÕES ESPECIAIS
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Minha Cidade Sorriso
só me traz felicidade,
nela estou no paraíso
e sou feliz de verdade!
JANETE FRANCISCO SALES YOSHINAGA
São Paulo/SP

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Nesta Cidade Sorriso,
vejo o progresso constante,
a alegria vem no aviso
do sorriso a cada instante!
MAGDA HELENA GOMES TEIXEIRA
Pouso Alegre/MG

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ÂMBITO ESTADUAL (RS)

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VENCEDORES
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Porto Alegre, junto ao cais,
tens sinais de um paraíso!
Ontem, Porto dos Casais
e hoje és Cidade Sorriso...
LUIZ DAMO
Caxias do Sul

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Ante o Guaíba, improviso...
contemplo o sol, num recosto...
Eis que a Cidade Sorriso,
põe sorrisos em meu rosto.
MARÍLIA OLIVEIRA
Porto Alegre

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Cidade Sorriso eu sou,
cantada pelo Quintana.
Sou Arte, Poesia, Show,
tão sublime e soberana!
LÚCIA BARCELOS
Porto Alegre


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MENÇÕES HONROSAS
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Porto Alegre, em ti me inspiro,
compor trovas de improviso.
E saudar-te assim prefiro:
- Salve , Cidade Sorriso!...
CLÁUDIO DERLI
Porto Alegre

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Porto Alegre, em suas águas,
tem cores de paraíso,
onde se afogam as mágoas,
nasce a Cidade Sorriso.
ARY CARDOSO
Porto Alegre

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Nossa Cidade Sorriso,
toda repleta de encanto,
nela está meu paraíso,
que em prosa, que em verso eu canto.
BERNARDETE SAIDELLES
Porto Alegre


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MENÇÕES ESPECIAIS
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O sol que brilha e seduz
no Guaíba refletindo,
Cidade Sorriso e luz
faz nosso viver mais lindo.
MARIA DA GLÓRIA DE OLIVEIRA
Porto Alegre

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De jovens casais, nasceu
bela Cidade Sorriso!
Que jamais esmoreceu,
fosse inferno ou paraíso.
LUCI BARBIJAN
Caxias do Sul

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Quando vou passando a ponte
rumo à Cidade Sorriso",
alarga meu horizonte,
estou indo ao paraíso.
MARISIA VIEIRA 
Pelotas

Fonte:
Calêndula Literária – n. 530 – setembro de 2022 – UBT Porto Alegre/RS

Sammis Reachers (Os caronistas)

Um dos grandes prazeres de minha infância de diabruras era pegar carona. Mas, como assim? O lance era o seguinte: Qualquer caminhão que passasse pelo bairro, na época todo feito, todo trabalhado em esburacadas ruas de chão e terra socada, era um convite, um chamariz tocado à diesel, um poleiro convidando os frangos que éramos.

A melhor das caronas era a usufruída nos caminhões de pipa d’água: Sua carga balouçante e pesada lhes impedia de andarem muito rápido, e somado a isso o caminhão tinha para-choques e poleiros como que feitos especialmente para que alguém neles se pendurasse. Coisa de design e ergometria, fui aprender anos depois. Ou não. Bem, o importante era a diversão.

E quando um caminhão vinha em nossa direção, enquanto saracoteávamos tranquilamente pela rua, e ao passar por nós víamos que já havia um ou mais moleques pendurados na traseira? Ohh! Aquilo era tomado na conta dos ultrajes, afinal ninguém poderia dar uma festa sem nos convidar. E lá íamos nós também.

Havia mesmo uma apurada técnica para escaparmos das vistas dos motoristas e ajudantes, alguns já tarimbados em lidar com aquilo. Passando pelo caminhão, continuávamos em frente, jamais observando-o diretamente ou demonstrando qualquer agitação. Alguns passos adiante, do canto da rua andávamos para o centro da mesma, até atingir o delicioso “ponto cego”, centralizados bem atrás do caminhão e ficando invisíveis aos espelhos retrovisores. Neste momento dávamos meia volta e literalmente voávamos em disparada, para agarrar nas ferragens.

Outra carona muito praticada era a realizada nas portas dos ônibus. Naqueles tempos, os ônibus possuíam um balaústre (espécie de apoio ou corrimão) para o lado de fora das portas – o que nos modelos posteriores foi sabiamente alterado, ficando agora do lado de dentro das mesmas, e sendo expostos apenas quando as portas se abrem.

Pois bem, aquelas duas “asas” para fora dos ônibus eram um convite para nos agarrarmos ali, equilibrando os pés nos sopés das portas. Íamos para a loja da Popó Piscinas, início da rua principal do bairro, e assim que o ônibus entrava, lá íamos nós agarrados, curtindo o vento nas fuças até a nossa rua. A Anarquia era deusa celebrada naqueles idos e sofridos: alguns dos motoristas já nem ligavam. Mas outros, furiosos, paravam o ônibus ou pior, aceleravam à toda, sacolejando a chulapa de ferro e lata para ver se desistíamos – ou caíamos, catapultados pelo tremelique do navio pirata.

O ônibus que atendia ao bairro fazia a linha 17, da empresa Icaraí (hoje ABC), que cumpria o trajeto entre os bairros de Maria Paula a Jardim Catarina. Ainda hoje a linha existe, mas agora passa por uma outra rua. As más línguas dizem que eu ajudei a remover o ônibus de nosso bairro, de tantos vidros que quebrei. Mas deixemos esses comentários venenosos para os maledicentes.

Quanto às caronagens clandestinas nas portas dos ônibus, eu e Renato éramos ali os talvez mais hábeis praticantes desse esporte radical e suburbano – atletas de ponta, campeões irreconhecidos dum esporte hoje proscrito pelo duro julgamento da lei.

Bem, certa feita as coisas não saíram como o corriqueiro. A atividade caronística tinha seus riscos, que eram algo calculados: O ônibus, ainda que o motorista acelerasse, geralmente parava de uma a quatro vezes bairro adentro, para descarregar passageiros, isso apenas até chegar em nossa rua, situada no quarto “ponto”. Dali em diante, por sinal, não havia iluminação pública, e ainda por cima as casas escasseavam, num “vácuo” humano que ia por quilômetros até o distante bairro de Maria Paula, já na fronteira com o município de Niterói, onde tal linha de ônibus tinha seu ponto final. Assim, de maneira alguma poderíamos passar de nossa rua, sob risco de nos vermos, em plena noite, “perdidos” e sozinhos bem longe de casa.

A boa etiqueta recomendava que descêssemos ao menos na segunda parada, por via das dúvidas. Pois vai que ninguém descesse nas seguintes? Mas nessa noite fatídica, após apanharmos nossa democrática condução, notamos que o motorista já iniciara a acelerar desde o primeiro ponto. Passou um ponto e ninguém descera, outro e nada... Chegamos no terceiro e igualmente ninguém puxou a “cigarra”, a campainha para descer do veículo. Eu e Renato ficamos preocupados. Enquanto aproximava-se de nosso limite, o ponto que dava para nossa “rua”, notamos que o miserável acelerava ainda mais – talvez já nos conhecesse! Vendo que ninguém iria descer, que o carroção tremia em solavancos cada vez maiores, e que acabaríamos lá em Maria Paula ou coisa pior, Renato, meu sinistro mestre, nãos se fez de rogado: Pulou dentro de uma fossa de esgotos que margeava certo trecho da rua! Enquanto avançava agarrado com força àquela porta, ainda pude ver o bitelão se levantando da lama, todo “borrado”. Mesmo em desgraça, encontrei tempo de gargalhar e gritar, caçoando do “espertalhão medroso”, que confirmava a fama de “Cascão”!

Entretanto, poucos metros adiante era o limite, a linha vermelha entre a civilização e o breu total. Tentei pensar o mais rápido que pude, ao ver que naquele último ponto ninguém desceria mesmo, e o satanáquia do motorista só fazia acelerar. Foi só então que me ocorreu que não havia mais fossas de esgoto. Ou moitas e matagais. Era apenas chão. Chão duro, compactado, coberto de esfoliante cascalho. Agora em mortal desespero, qual Ícaro de desfeitas asas, foi naquele chão que me joguei.

Não me lembro bem como foi o impacto. Bem, nem bem, nem mal. Testemunhas dizem que capotei pelo chão como um dublê de filmes de ação. Como de nada recordo, devo ter desmaiado na primeira pancada. O resto foi por conta e divertimento da lei da gravidade...

Acordei com algumas pessoas sobre mim, me abanando. Uma, a irmã de Renato, Rosana, correu imediatamente para avisar meus pais – o que me fez tentar levantar-me para detê-la, possuído de ódio e medo, pois eu tomaria mais uma coça, uma surra homérica! Ela não se comoveu, que não era disso, nem eu tive forças: e lá vieram meus pais. Jogado nos bancos de um Fusca ou Brasília, fui levado às pressas até um hospital para o raio-x rotineiro. Nada quebrara, por sorte.

Nos dias seguintes, aquele de quem ri, o que se jogara na maciez pútrida de uma vala, me zoou como a um asno, dizendo que eu preferira me jogar no chão duro e “apagara” como um pavão ou heroína de novela das sete.

E eu aprendera mais uma lição de meu mestre de presepadas…

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Adega de Versos 90: Carolina Ramos (O Grito)

 

Irmãos Grimm (Pele de Urso)


Há muito, muito tempo atrás, havia um jovem que se alistou como soldado, e era sempre o primeiro a avançar quando se tratava de chuvas de balas. Enquanto durou a guerra, tudo lhe correu às mil maravilhas; mas assim que se a paz foi assinada, ele foi demitido, e o comandante disse para que ele fosse onde desejasse. Seus pais haviam morrido, e portanto, ele não tinha mais casa, então, ele voltou para a casa de seus irmãos, e pediu para que eles o aceitassem, e ficasse com eles até a próxima guerra.

Os irmãos dele todavia, eram duros de coração e disseram: — “O que você poderia fazer aqui? você não tem utilidade para nós, vá e viva a sua própria vida.” 
 
O soldado não possuía nada além de uma carabina, ele a colocou no ombro, e partiu para o mundo. E chegou a um grande matagal, onde não conseguia enxergar nada além de um pequeno círculo de árvores, e debaixo destas árvores ele se sentou triste, e começou a pensar no seu destino.

— “Não tenho dinheiro,” pensou ele, “não tenho profissão, só sei lutar, e agora que só existe paz, eles não precisam mais de mim, então, já estou pressentindo que vou morrer de fome.”

De repente ele ouviu um barulho, e quando ele olhou em volta, uma figura estranha estava diante dele, a criatura usava um casaco verde, tinha um olhar imponente, mas tinha pés rachados que nem de cabra o qual ela ocultava.

— “Eu sei o que você está precisando,” disse o homem, “ouro e muitas riquezas é o que você terá, tanto quanto você desejar, mas primeiro é necessário que você não seja medroso, para que eu não aplique em vão o meu dinheiro.”

— “Soldado e covardia, — como estas coisas podem andar juntas?” perguntou o soldado, “Podes me colocar a prova.”

— “Muito bem, então,“ respondeu o desconhecido, “olhe atrás de você.” O soldado se virou, e viu um urso enorme, que vinha rosnando atrás dele.

— “Uau,“ exclamou o soldado, “espera aí que vou dar uma coçadinha no teu nariz, até que você perca a vontade de rosnar,” e foi em direção ao urso e deu um tiro bem no meio do focinho, ele caiu e nunca mais voltou a se mexer.

— “Está provado que não te falta coragem!,” disse o desconhecido, “mas falta ainda outra condição que deves satisfazer.”

— “Desde que isso não ponha em risco a minha vida.” respondeu o soldado, que sabia muito bem diante de quem ele estava.

— “Se a tua vida correr perigo, não serei responsabilizado por isso. Tu deverás fazer tudo sozinho.”, respondeu o homem de casaco verde, que disse “Nos próximos sete anos, não deverás tomar banho, nem pentear a tua barba, nem o teu cabelo, nem cortar as tuas unhas, nem rezar o padre nosso.

— “Eu te darei um casaco e uma capa, os quais deverás usar. Se morreres durante estes sete anos, cairás em meu poder; se, pelo contrario, viveres além desse tempo, conquistarás a liberdade e serás rico o resto de teus dias.” 
 
O soldado pensou no abandono extremo em que ele se encontrava agora, mas que tantas vezes havia enfrentado a morte, que ele decidiu correr novamente esse risco, e aceitou o convite. O diabo tirou o seu casaco verde, e entregou para o soldado, e disse:

— “Enquanto estiveres usando este casaco nas tuas costas, e colocares as mãos dentro do bolso, sempre os encontrarás cheios de dinheiro.” 
 
Então, ele arrancou a pele do urso e disse:

— “Esta será a tua capa, e a tua cama também, pois nela dormirás, e não farás uso de nenhuma outra cama, e por causa desta roupa você será chamado a partir de agora de Pele de Urso.” Dito isto, o diabo desapareceu.

O soldado colocou o casaco, enfiou as mãos dentro do bolso, e percebeu que realmente tudo era verdade. Depois ele vestiu a pele de urso, e partiu em jornada pelo mundo, e estava feliz, e não se abstinha de nada que lhe fizesse bem e lhe trouxesse dinheiro. Durante o primeiro ano tudo veio a contento, porém, no segundo ele começou a ficar feio como um monstro. Os seus cabelos começaram a cobrir quase todo o seu rosto, a sua barba parecia um pedaço de feltro muito grosseiro, seus dedos se transformaram em garras, e o seu rosto ficou tão coberto de sujeira, que dava até para plantar agrião.

Todos aqueles que o viam, corriam dele, mas como ele sempre dava esmolas aos pobres para que orassem para que ele não morresse durante os sete próximos anos, e como ele pagava bem por tudo, ele sempre encontrava abrigo. No quarto ano, ele entrou numa estalagem, onde o proprietário não o queria receber, e não queria nem que ele ficasse no estábulo, porque ele receava que os cavalos ficassem assustados. Mas, quando Pele de Urso enfiou a mão no bolso e tirou um punhado de ducados, o anfitrião mudou de opinião e lhe ofereceu um quarto na parte externa da estalagem. Pele de Urso, no entanto, devia prometer que não seria visto, caso contrário a estalagem ficaria com má fama.

Quando Pele de Urso estava sentado à noite, e desejava do fundo do coração que os sete anos houvessem se passado, ele ouviu queixas e lamentações que vinham de um quarto anexo. Como ele tinha bom coração, ele abriu a porta, e viu que um velhinho chorava amargamente, e até punha as mãos na cabeça. Pele de Urso se aproximou, mas o homem saiu correndo e tentou escapar dele. Finalmente, quando o homem percebeu que Pele de Urso tinha voz humana, ficou mais tranquilo, e conversando amigavelmente, Pele de Urso conseguiu que o velhinho lhe revelasse a causa de sua tristeza.

Os seus recursos estavam minguando a olhos vistos, ele e as suas filhas começariam a passar fome, e ele era tão pobre que não conseguia pagar o estalajadeiro, e por isso ele seria preso.

— “Se o seu problema for somente esse,” disse Pele de Urso, “fique tranquilo, eu tenho muito dinheiro.”

E mandou que o estalajadeiro fosse trazido até ali, pagou o que o velhinho lhe devia, e pôs ainda uma bolsa cheia de dinheiro dentro do bolso do velhinho.

Quando o velhinho se viu livre de todos os seus problemas, ele não tinha palavras para agradecer.

— “Venha comigo,” disse ele a Pele de Urso, “as minhas filhas são verdadeiras maravilhas da natureza, escolha uma delas para ti como esposa. Quando elas souberem o que você fez por mim, elas não irão te rejeitar.

— “A princípio você parece estranho, mas elas saberão dar um jeito na sua aparência de novo.” 
 
Isto agradou muito ao Pele de Urso, e ele foi.

Quando a filha mais velha o viu, ela ficou muito assustada, com o aspecto dele, e ela gritou e fugiu dele. A segunda ficou parada e o media da cabeça aos pés, mas, então, ela disse:

— “Como é que eu posso aceitar um marido que não tem mais a forma humana e que parece um bicho? O urso pelado que passou por aqui uma vez e que tinha feições humanas me agradava muito mais, pois, de qualquer jeito ele usava roupas e luvas de um hussardo[*]. Se ele fosse apenas feio eu me acostumaria com isso.”

Porém, a mais jovem disse,

— “Querido pai, ele deve ser um bom homem por tê-lo ajudado a resolver os teus problemas, portanto, se você prometeu que daria uma noiva para ele, a sua promessa deve ser cumprida.” 
 
Era uma pena que o rosto de Pele de Urso estivesse coberto de sujeira e de pelos, pois se não estivesse, elas teriam visto como ele ficou feliz ao ouvir estas palavras.

Ele tirou o anel do dedo, dividiu o anel em dois, e deu a ela a metade, e a outra ele guardou para si. Ele escreveu seu nome, todavia, na metade que ficou com ela, e o nome dela, na metade que guardou para ele, e pediu para que ela guardasse com cuidado a metade dela, e então, ele pediu licença e saiu:

— “Eu tenho de perambular por três anos ainda, e depois disso, se eu não retornar, estarás livre, pois eu estarei morto. Mas ore a Deus para que Ele preserve a minha vida.”

A pobre noiva prometida se vestiu inteiramente de preto, e quando ela pensava no seu futuro noivo, os seus olhos se enchiam de lágrimas. As suas irmãs somente a desprezavam e zombavam dela:

— “Cuidado,” dizia a mais velha, ”se você der a mão pra ele, ele vai machucar você com as suas garras.”

— “Seja esperta,” dizia a segunda, “ursos gostam de doces, se ele simpatizar com você, ele vai devorar você inteirinha.”

— “Deves fazer tudo que ele mandar,” começou a mais velha novamente, “ou então, ele vai começar a rosnar.” 
 
E a segunda aproveitou e disse:

— “Mas vocês serão felizes no casamento, porque os ursos gostam de dançar.” 
 
A noiva ficava em silêncio, e não permitia que as suas irmãs a entediassem. Pele de Urso, todavia, viajava pelo mundo de um lugar para outro, fazia o bem quando lhe era possível, e gostava de fazer doações aos pobres para que eles pudessem orar por ele.

Finalmente, quando raiou o último dia dos sete anos, ele tirou a capa mais uma vez, e se sentou debaixo do círculo de árvores. Não demorou muito e o vento começou a assobiar forte, e o tinhoso apareceu diante dele, e olhava furioso para ele, então, ele jogou o seu casaco velho para o Pele de Urso, e pediu o seu manto verde de volta.

— “Nunca chegamos tão longe em nosso acordo,” falou Pele de Urso, ‘‘tu deves me limpar primeiro.” Se o filho do cão gostava ou não, ele foi obrigado a buscar água, e a lavar o Pele de Urso, pentear seu cabelo, e cortar suas unhas. Depois disto, ele ficou parecendo um soldado valente, e estava muito mais bonito do que havia estado antes.

Quando o diabo tinha ido embora, Pele de Urso ficou muito aliviado. Ele foi à cidade, vestiu um magnífico casaco de veludo, se sentou numa carruagem puxada por quatro cavalos, e correu para a casa da sua noiva. Ninguém o reconheceu, o pai acreditou que se tratasse de um general muito importante, e o conduziu para o lugar onde as suas filhas estavam esperando. Ele foi obrigado a se colocar no meio das duas mais velhas, que serviram vinho para ele, lhe ofereceram os melhores pedaços de carne, e ficaram pensando que em todo o mundo não existiria homem mais perfeito.

A noiva, no entanto, sentou-se de frente para ele vestida de preto, e não ousava levantar os olhos, nem tinha coragem de dizer palavra alguma. Quando finalmente ele perguntou ao pai se daria como esposa uma de suas filhas, as duas mais velhas pularam, correram para os seus dormitórios, e vestiram roupas maravilhosas, e cada uma delas ficou imaginando que seria ela a escolhida. O desconhecido, assim que ele ficou a sós com a sua noiva, trouxe a metade do anel que havia ficado com ele, e o jogou dentro de um copo de vinho que ele apanhara em cima da mesa para ela.

Ela pegou o vinho, e depois que ela o bebeu, e descobriu a metade do anel no fundo do copo, o coração dela começou a bater forte. Ela pegou a outra metade, que usava num colar ao redor do pescoço, juntou as duas partes, e viu que as duas metades se encaixavam exatamente uma na outra. Então, ele disse:

— “Eu sou o teu noivo prometido, a quem conhecestes como Pele de Urso, mas, com a graça de Deus a forma humana me foi restituída, e mais uma vez estou limpo de novo.”

Ele foi até ela, abraçou—a, e deu—lhe um beijo. Enquanto isso, as duas irmãs voltaram todas enfeitadas e quando elas viram que o belo homem já estava comprometido com a irmã mais jovem, e souberam que ele era o Pele de Urso, fugiram tomadas de ódio e furiosas. Uma delas se atirou no poço, e a outra se enforcou na árvore. À noite, alguém bateu à porta, e quando o noivo a abriu, viu que era o diabo em seu casaco verde, que disse:

— “Veja você, que eu perdi a tua alma, mas, em compensação consegui duas!”
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* Hussardo: cavaleiro húngaro, soldado da cavalaria ligeira da Alemanha e da França.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

Ascânio Lopes (1906-1929) Caderno de Versos


SERÃO DO MENINO POBRE


Na sala pobre da casa da roça
papai lia os jornais atrasados.
Mamãe cerzia minhas meias rasgadas.
A luz frouxa do lampião iluminava a mesa
e deixava nas paredes um bordado de sombras.
Eu ficava a ler um livro de histórias impossíveis
— desde criança fascinou-me o maravilhoso.
Às vezes, Mamãe parava de costurar
— a vista estava cansada, a luz era fraca,
e passava de leve a mão pelos meus cabelos,
numa carícia muda e silenciosa.

Quando Mamãe morreu
o serão ficou triste, a sala vazia.
Papai já não lia os jornais
e ficava a olhar-nos silencioso.
A luz do lampião ficou mais fraca
e havia muito mais sombra pelas paredes...
E, dentro em nós, uma sombra infinitamente maior.
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CENA DE UMA RUA AFASTADA
                         Para Martins de Almeida

A solteirona fechou as janelas com estrépito.
Uma mocinha da escola normal passou firme, sem olhar.
Um senhor gordo disse que era uma pouca vergonha
e que nossa polícia não vigiava os costumes.
Mas, indiferentes aos gritos dos carroceiros,
às pedradas dos garotos,
a lulu de D. Mariquinhas e o fox-terriê
                 [ (meio sangue) do sr. Fagundes
continuaram impudicos no meio da rua.
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MINHA NAMORADA

Seu nome era besta e ela também
mas quase não falava e só sabia olhar.
Gostei dela
fiz versos puxados
gastei tempo nas rimas raras
e na colocação de pronomes
porque ela era normalista
e gostava de gramática e não perdoava galicismos.
Mas um dia ela descobriu meus versos modernos
e percebeu que fingia
e gostava de errar nos pronomes
e que meus sonetos eram só pra ela.
Então me deu o fora e arranjou um poeta sincero
que a comparava a Marília
e que sabia de cor a "Ceia dos Cardeais"
e que sapecava todos os ritmos novos
e as poesias sem geometria e compasso.

E ficavam cinicamente amando no portão
quando não iam ao cinema delirar com as fitas
                      [ dramáticas italianas 12 atos.
Ela me deu o fora.
Também nunca mais fiz sonetos.
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SANATÓRIO

Logo, quando os corredores ficarem vazios,
e todo o Sanatório adormecer,
a febre dos tísicos entrará no meu quarto
trazida de manso pela mão da noite.

Então minha testa começará a arder,
todo meu corpo magro sofrerá.
E eu rolarei ansiado no leito
com o peito opresso e de garganta seca.

Lá fora haverá um vento mau
e as árvores sacudidas darão medo.
Ah! os meus olhos brilharão procurando
a Morte que quer entrar no meu quarto.

Os meus olhos brilharão como os da fera
que defende a entrada do seu fojo.
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Ascânio Lopes Quatorzevoltas nasceu em Ubá (MG), em 1906, mas foi criado em Cataguases, onde faleceu, em 1929. O poeta transferiu-se para Belo Horizonte em 1925, onde cursou a escola de direito. Em 1928, já doente, retornou a Cataguases.

Uma atividade marcante na curta vida de Ascânio Lopes foi sua participação no grupo que fundou a revista Verde, publicada em Cataguases 1927 e 1929. Publicação modernista, a Verde reunia jovens como o romancista Rosário Fusco e o poeta Guilhermino César. Cataguases era um polo de criação artística. Na mesma época, o cineasta Humberto Mauro, pioneiro do cinema brasileiro, havia montado na cidade sua produtora, a Phebo Sul America Film.

Modernista de primeira hora, Ascânio Lopes se correspondia com Mário de Andrade e escrevia poesia, prosa, ensaio. Seus versos, como não podia deixar de ser, têm muitos traços do modernismo anos 20. O poema "Serão do Menino Pobre" até lembra o lirismo drummondiano de "Infância" (de Alguma Poesia, 1930). Ascânio: "Na sala pobre da casa da roça / papai lia os jornais atrasados. / Mamãe cerzia minhas meias rasgadas."  Drummond: "Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia."

Em textos como "Cena de Uma Rua Afastada" e "Minha Namorada", Ascânio Lopes mostra a irreverência da fase heroica do modernismo, com uma irresistível inflexão para o poema-piada. No primeiro, trata de um tema que jamais poderia ser motivo de poema nos padrões tradicionais. No outro, numa ironia bem ao estilo do "Desafinado" bossa-novista, queixa-se de uma namorada normalista que colocava bem os pronomes e detestava versos modernos.

Em "O Chefe", o poeta se volta para a crítica aos desmandos dos potentados interioranos. Por fim, vem a nota mais doída. É a crônica amarga de um jovem que se vê definhar num hospital sem esperança de cura. "Sanatório", poema autobiográfico, é a página mais citada de Ascânio Lopes.

Com a morte do poeta, a revista Verde se dissolveu. Os remanescentes publicaram ainda um último número, exatamente para homenagear o amigo morto. Sobre Ascânio escreveram nomes como Mário de Andrade, Antonio de Alcântara Machado e Carlos Drummond de Andrade.

Em vida, Ascânio Lopes publicou apenas um livro, chamado Poemas Cronológicos (1928). Ao todo, sua obra resume-se a 48 poemas, um fragmento de novela, três ensaios e quatro resenhas. Todo esse material, mais outros documentos sobre o autor, está reunido no volume Ascânio Lopes – Todos os Possíveis Caminhos, do romancista cataguasense Luiz Ruffato.
Carlos Machado