sábado, 10 de setembro de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Simplesmente a imensidão de estar aqui)

O DIA ACABOU MAIS CEDO. Terminou sorumbático, casmurro, acabrunhado e eu, capiango (1) e apatetado, os pensamentos voando longe, nem me dei conta. Na verdade, quando percebi a falha do desvão, tentei trazer de volta, esses pensamentos, tudo de uma só vez, usando de uma astúcia inventada, meio que sem eira nem beira. Não alcancei êxito. Pois bem! Dancei. Quando atinei com a burrice e percebi o adiantado da noite, a televisão já anunciava o começo de um filme que fazia tempo tinha vontade de assistir. Que loucura! Tudo, hoje, foi tão rápido! Desde as primeiras horas da manhã, a impressão absolvida pela minha cabeça, era a de que o tempo trazia, consigo, uma pressa estranha e maquiavélica, uma decisão tresloucada de querer chegar correndo em algum lugar. E não me enganei. Não sei vinda de onde, recordo, mas juro, havia uma espécie de metamorfose caótica parecida com a de Kafka (2) pairando assarapantada sobre o céu esmaecido da cidade.

Senti, igualmente, uma involuntária alteração de conduta estampada em cada pessoa com quem cruzei pelas ruas. Uma espécie de desolação lastimosa, consternada e hedionda, que podia se ver e sentir no vai-e-vem da multidão afobada, na balbúrdia desembestada dos ônibus que deixavam passageiros com as suas caras de tacho nos pontos de espera, ao longo das avenidas. Até os semáforos abriam e fechavam rápidos demais. Por todos os cantos se ouviam brados horripilantes de insatisfações. Reclamações atípicas cortavam o ar, apimentadas com chuvas de palavrões ensandecidos e respingados de puro ódio e desolação. Um caos!


Lembrava um campo de batalha, eu diria sem medo de errar. Pior, trazia à tona uma arena, tipo um anfiteatro de figuras macabras representando uma peça infernal. Cada ser humano, estampava, no rosto, o vírus do mal, como se possuído pela Cólera de Aquiles (3). De repente, me senti bombardeado, grão-pútrido, preso em meio aos escombros de muros que desabavam de um lado e casas que ruíam de outro. Bem gostaria de fugir de mala e cuia com meus arrepios à tiracolo, para a Noruega. Meu Deus, se lá não fosse tão frio! Em meio a todas as loucuras infrenes e sem explicações plausíveis, qualquer coisa valeria a pena desde que me visse livre e longe do desespero e da instantaneidade que a cada segundo crescia ganhando dimensões maiores ao meu derredor. Para chatear, um carro, o som muito alto, passou barulhento, ao largo da praça, anunciando com estardalhaço incontido, a supremacia do caos irremediável se apossando de tudo.

Entrementes, memorizei Orwell (4), e associei o inferno em que deveria estar metido quando das suas “Horas de ódio”. Não é só uma revolução virtual que a tudo contempla. Impera, de contrapeso, uns quadros enigmáticos, aterradores e reais, onde a massa humana comprimida se debate, embalde, com todas as forças, em busca do eterno não sei o quê! De repente me questiono: o que aconteceu com a droga do mundo? Ficou louco, pirou, assim sem mais nem menos? A resposta está bem aqui diante dos meus olhos, atropelando meu nariz, ou mais precisamente, fustigando os ponteiros do tempo. E se alguém –, penso com meus dissabores saídos da caixinha dos meus medos –, e se alguém atropelasse as horas e parasse os mecanismos dos ponteiros do tempo, ou, via outra, se um louco varrido desse um basta no gigantesco relógio que comanda o Universo?

Quando criança, eu contava com a vantagem de não existir no real, não tinha vida própria. Entretanto, queria que o tempo (o mesmo tempo de hoje) passasse correndo. Que voasse à mil. Detestava as horas que perdia confinado nas carteiras do grupo escolar. Odiava as aulas chatas de matemática. Se pudesse, juro que enfiaria a carcaça do professor numa máquina do tempo e mandava o infeliz embrulhado em papel de presente para a Era Glacial (5). Naquele tempo, naquele tempo, para meu desgosto, não havia máquinas de tempo disponíveis, nem tempo de sobra sobrando para se pensar em algo mais sério, ou em uma solução plausível, por exemplo, que interferisse diretamente no futuro. Hoje, envelhecido, cansado de brigar com o agora, tenho saudades da linearidade do meu tempo de menino, do útil majestoso, das horas que perdia (não perdia, ganhava) nos bancos da escola. Naquela ocasião, eu não atinava com tal grandiosidade... sequer imaginava que o amanhã é um nunca que pode não chegar e o hoje, o agora que atropela.

Ainda agora, aos sessenta e nove, tenho vontade de voltar às noites e aos dias dos meus idos de quinze para dezesseis. Revisitar aqueles Instantes agradáveis que pareciam mais longos e amenos, sem os atropelos ríspidos que hoje pesam sisudos sobre os telhados de vidros das cidades. Todas as cidades e capitais, se revestem de telhados de vidros. As pessoas, não veem, mas são de vidros. Naquele tempo, ou “no longínquo que se quedou inerte, e enterrado”, percebo que o passado não se dizimou. Persiste e não para de ficar cada vez mais distante. Ou seria mais próximo? Vai se saber! Houve dias, dentro daquele outrora, onde eu e ela, a minha namoradinha de vestidinho curto e franjinha cobrindo os olhos, éramos felizes e não sabíamos. Com intuito de tentar explicar, eu não percebia, tampouco entendia ou imaginava a grandiosidade eloquente de estar vivendo.

Vivendo e sonhando. Sonhando e vivendo, a bel prazer das coisas sem noção. De fato, à luz de tornar as coisas inteligíveis, que por agora me norteiam, eu burro aos extremos, não atinava em aprender coisas novas e a criar vínculos duradouros que vivenciassem o “a depois”, de mãos dadas, com o meu futuro. Não me importava, igualmente, com o presente que logo chegaria (ele estava logo ali, aos meus pés) e me levaria (como me levou e me deixou), aos trancos e barrancos por veredas não percorridas. Naquele tempo, ou no tempo dos meus dias forasteiros, eu não sabia, nem me dava conta de que a Felicidade plena e gentil, se escondia faceira, bonançosa e estrepitosa, saltitante e real, bem aqui... Meus Deus, bem aqui dentro de meu peito.  
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Notas de rodapé:

1 – Capiango – Larápio borra-botas, uma espécie de gatuno de meia tigela.   

2 – Kafka – Referência ao escritor Franz Kafka, autor do romance “A Metamorfose”.

3 – A Cólera de Aquiles –  No poema “A Ilíada”, de Homero, Aquiles se contempla como o homem da solidão. Por conta, alimenta a ideia de que é revestido de um heroísmo individual que só ele possui.  

4 – Orwell – Autor da obra “1984”. Aliás, um tema bastante presente em nossos dias. O escritor sinaliza o Estado, como um todo controlando os passos da sociedade e impondo as suas ordens a ferro e a força.

5 – Era glacial – Denominação a qualquer período em que camadas espessas de gelo cobrem vastas áreas da Terra.

Fonte
Texto e notas enviadas pelo autor.

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