sábado, 10 de setembro de 2022

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLVI


AMIEL
 
Não, nem no sonho a perfeição sonhada
Existe, pois que é sonho.  Ó Natureza,
Tão monotonamente renovada,
Que cura dás a esta tristeza?
O esquecimento temporário, a estrada
Por engano tomada,
O meditar na ponte na incerteza...

Inúteis dias que consumo lentos
No esforço de pensar na ação,
Sozinho com meus frios pensamentos
Nem com uma 'sperança mão em mão.

É talvez nobre ao coração
Este vazio ser que anseia o mundo,
Este prolixo ser que anseia em vão,
Exânime e profundo

Tanta grandeza que em si mesma é morta!
Tanta nobreza inútil de ânsia e dor!
Nem se ergue a mão para a fechada porta,
Nem o submisso olhar para o amor.
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NÃO QUERO IR ONDE NÃO HÁ A LUZ
 
Não quero ir onde não há a luz,
Do outro lado abóbada do solo,
Ínfera* imensa cripta, não mais ver
As flores, nem o curso ao sol de rios,
Nem onde as estações que se sucedem
Mudam no campo o campo.  Ali, no escuro,
Só sombras múrmuras*, êxuis* de tudo,
Salvo da saudade, eternas moram;
Região aos mesmos íncolas* incógnita,
Dos naturais, se os tem, desconhecida.
Ali talvez só lírios cor de cinza.

Surgirão pálidos da noite imota*.
Ali talvez só pelo som as águas,
Como a cegos, serão, e o surdo curso,
No côncavo sossego lamentoso,
Se acaso à vista habituada aclare,
Será como um cinzento tédio externo.

Não quero o pátrio sol de toda a terra
Deixar atrás, descendo, passo a passo,
A escadaria cujos degraus são
Sucessivos aumentos de negrume,
Até ao extremo solo e noite inteira.

Para que vim a esta clara vida?
Para que vim, se um dia hei de cair
De haste dela? Para que no solo
Se abre o poço da ida? Por que não
Será sem fim [?...]
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* Vocabulário:
Ínfera = que fica abaixo, inferior.
Múrmuras = murmurantes.
Êxuis = desterrados.
Íncolas = moradores, habitantes.
Imota = parada, quieta.

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NÃO QUERO IR ONDE NÃO HÁ LUZ II
 
Não quero ir onde não há luz,
De sob a inútil gleba não ver nunca
As flores, nem o curso o ao sol dos rios,
Nem como as estações que se renovam
Reiteram a terra.  Já  me pesa
Nas pálpebras que tremem o oco medo
De nada ser, e nem ter vista ou gosto,
Calor, amor, o bem e o mal da vida.
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NÃO QUERO MAIS QUE UM SOM DE ÁGUA
 
Não quero mais que um som de água
Ao pé de um adormecer.
Trago sonho, trago mágoa,
Trago com que não querer.

Como nada amei nem fiz
Quero descansar de nada.
Amanhã serei feliz
Se para manhã  há estrada.

Por enquanto, na estalagem
De não ter cura de mim,
Gozarei só pela aragem
As flores do outro jardim.

Por enquanto, por enquanto,
Por enquanto não sei quê...
Pobre alma, choras sem pranto,
E ouves como quem vê.
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NÃO QUERO ROSAS, DESDE QUE HAJAM ROSAS.
 
Não quero rosas, desde que hajam rosas.
Quero-as só quando não as possa haver.
Que hei de fazer das coisas
Que qualquer mão pode colher?

Não quero a noite senão quando a aurora
A fez em ouro e azul se diluir.
O que a minha alma ignora
É isso que quero possuir.

Para quê?... Se o soubesse, não faria
Versos para dizer que inda o não sei.
Tenho a alma pobre e fria...
Ah, com que esmola a aquecerei?…
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NÃO SEI SER TRISTE A VALER
 
Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma
E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,
Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm
Vamos florir ou pensar.

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