quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Angela Maria de Godoy Theodorovicz (Os meninos)


Encontrei este texto escrito há algum tempo. Já tinha me esquecido dele. Talvez até tenha sido providencial tê-lo encontrado. Andava procurando não sei o quê e lendo-o encontrei saudade, delícias e revivi momentos de felicidades. Tentei reescreve-lo, não consegui. Está escrito como se deve. Mudei apenas o primeiro parágrafo, mais na forma do que no conteúdo, e acrescentei este que agora escrevo. Explicação desnecessária estará pensando o leitor. Em parte é, foi apenas um velho texto encontrado a relembrar coisas do passado. Em parte não, encontrei sentimentos a me dizer o quanto o passado se faz presente numa imensidão de lembranças que não se perdem, não se apagam. Lembranças de pequeninas coisas do dia-a-dia, de fatos corriqueiros do cotidiano, que, no final das contas, são o que enriquecem nossas vidas, que ficam para sempre como marca da nossa existência.

Voltando ao texto, nenhuma criança foi tão presente na minha vida como dois filhos de amigos meus, que aqui vou chamá-los simplesmente de Primeiro e Segundo, com o sentido que roubo de um dos diálogos mais lindos entre Romeu e Julieta: de que aquilo a quem chamamos rosa não perderá seu perfume se acaso tiver outro nome.

Estes dois foram-me tão próximos e tão queridos como só teriam sido meus filhos, se os tivesse tido. E mais, desde que começaram a falar é que me chamam de tia e faz tanto tempo que nem sei dizer se naquela época já existia esse modismo de chamar os mais velhos de tios. O que sei é que, com eles, sempre estive tão envolvida emocionalmente que sinto, senão de sangue e direito mas, de coração, como meus verdadeiros sobrinhos.

Durante a primeira década de suas vidas vivemos muitos próximos, numa convivência quase que diária, compartilhando hábitos, costumes, brincadeiras e brigas. Estivemos juntos nas alegrias e tristezas e as primeiras foram tantas e tão intensamente vividas que poucas lembranças restaram das segundas. Fizemos muitos passeios divertidos e foram muitos os finais de semana no campo, no nosso sítio, com banhos de rios e brincadeiras de esconde-esconde e pega-pega e também muitos cortes nos pés, tombos e joelhos ralados e também muitos momentos de raivas e muitos beijos e abraços e soluços e lágrimas. Passamos juntos muitas Páscoas e aniversários memoráveis. Dessa nossa convivência muito aprendi e dela muito me recordo.

O Primeiro nasceu primeiro, o que é óbvio. O Segundo veio depois, o que também é óbvio. O que não é óbvio é que veio logo depois, o que não deu ao Primeiro “aquela” vantagem de ser o mais velho, nem ao outro “aquela” vantagem de ser o caçula. Para mim eles eram simplesmente os meninos e era impossível ver um sem o outro.

O Primeiro veio ao mundo muito pequenino, muito aquém do que se espera para um bebê. Era tão diminuto que cabia na palma da mão do pai, mas de tamanho suficiente para preencher todo o meu coração. Quando o Segundo chegou, soube imediatamente que em meu coração havia lugar para mais um.

O Primeiro sempre foi mais calado, aprendeu a ler muito cedo, muito antes de ir para a escola. Adorava histórias e as lia em voz alta e com precisão nos acentos e pontuações. O Segundo foi sempre mais falante, dispersivo e agitado. Preferia as conversas do dia-a-dia, os causos que escutava dos adultos, os assuntos corriqueiros e sempre adormecia em meio a uma história contada pelo irmão. Seu ritmo corria em compasso diferente. Com eles entendi as sutilezas de se ler nas entrelinhas.

O Primeiro era mais meticuloso, mais detalhista, nas coisas da alma e do corpo. Desde muito pequeno suas opiniões eram seguras, firmes e cheias de argumento. O Segundo era mais bonachão e desligado, consigo, com todos e com tudo, mas nem por isso menos sensível. Se com um me identificava, com o outro aprendia.

O Segundo era muito participativo, gostava de ajudar e não media esforços para estar sempre presente, não importasse qual fosse a brincadeira. O Primeiro era mais arredio, distante, reflexivo e geralmente se colocava na posição de observador. De um jeito ou de outro, ambos tinham presença marcante.

O Segundo gostava de aventuras, de esportes. O Primeiro se irritava com ambas as coisas. O Segundo preferia as brincadeiras de correr, andava descalço, se sujava na terra. O Primeiro não via graça em nada disso e chorava se visse sujeira nas mãos. Foi assim que aprendi a respeitar as diferenças.

O Segundo sempre foi forte de corpo, com ombros largos, postura atlética e musculosa. O Primeiro sempre foi muito magrinho, com as pernas compridas e finas, o peito frágil e franzino. Era o físico adaptado ao espírito e foi quando acreditei que isso fazia sentido.

O Primeiro comia pouco e sem entusiasmo. Das frutas, gostava de maçã e melancia. Dos grãos, mostrava algum interesse por milho. Eram poucos os legumes que gostava e nunca quis experimentar repolho por causa do nome. O Segundo estava sempre com fome. Exceto feijão, comia de tudo e com gosto. Se as refeições para um eram obrigações, para o outro eram puro prazer. Isso me ensinou que em tudo há prós e contra.

E o tempo foi passando, como é natural que passe. E como nada dura para sempre, nossas vidas foram tomando rumos diferentes. Passamos a nos ver muito amiúde, em encontros que se distanciavam por meses, até por anos.

Quando os encontrava ficava surpresa de vê-los se tornando homens: a voz esganiçada, passando do grave para o agudo  o roçar da penugem da barba sobre meus lábios, quando os beijava no rosto  suas conversas tomando rumos mais sérios, sobre a profissão a escolher, sobre o futuro.

Hoje nos vemos muito raramente. A diferença de idade pesa muito quando um lado chega aos vinte e o outro passa dos cinquenta.

Hoje eles curvam seus corpos quando me abraçam. São eles que me envolvem com seus braços longos e fortes no aconchego de seus peitos largos.

E agora me ponho a recordar essas coisas e me pego imaginando que viverei o suficiente para ver os meninos desses meninos. Gosto de pensar que eles também me chamarão de tia e que terão muito a me ensinar, e então voltarei a esse texto para completá-lo.

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