quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Ruy Barata (Pará Poético)

Foto do poeta do Acervo da Família

ARTE POÉTICA


Ah o ofício,
as contorções da espera,
entre a noite e a madrugada!
O litúrgico olhar abre cortinas,
o anjo adormeceu,
dança arbitrária
a minha barba de duzentos anos.
Quem poderá restituir-me intacto ao mistério
com o perfume de rosa não tocada?
Quem senão tu,
cântaro e fonte,
abrigo,
terra e pátria onde se esconde
a negra cicatriz que o peito ostenta?
Eis porque espero
(entre a noite e a madrugada)
para que salves
ou lances no infortúnio
o litúrgico olhar que em nova busca
apodrece sob o sol do desespero.
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FOI ASSIM

Foi assim,
como um resto de sol no mar,
como os lenços da préamar,
nós chegamos ao fim.

Foi assim,
quando a flor ao luar se deu,
quando o mundo era quase meu,
tu te foste de mim.

“Volta, meu bem”, murmurei.
“Volta, meu bem”, repeti.
“Não há canção nos teus olhos,
nem amanhã nesse adeus!”

Horas, dias, meses se passando
e, nesse passar, uma ilusão guardei:
ver-te novamente na varanda,
a voz sumida e quase em pranto,
a murmurar “meu bem, voltei”.

Hoje essa ilusão se fez em nada
e a te beijar outra mulher eu vi,
Vi no seu olhar envenenado
o mesmo olhar do meu passado
e soube então que te perdi.
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BRAÇOS DE SEDA

Ontem,
quando a morte passou
carregando meu corpo,
não sei se para o céu,
ou qualquer outro porto,
onde houvesse lugar
para um filho de Ogum,
eu vi que havia luz e madrugada
e um solo de canção desesperada,
nos olhos da mulher que não me amou.

Ontem,
quando a morte passou,
lá no bar onde bebo,
e como linda Inês,
posta em sossego,
em seus braços de seda me tomou,
senti que a vida inteira me fluía
e que a triste canção que eu perseguia
jazia na mulher que não me amou.
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ANJO DOS ABISMOS

Quero chegar diante de ti
não como o vulto familiar que doura o teu sossego,
não como a imagem do sonho
que se perde na bruma,
mas como o fantasma de dentro de ti mesmo.
Quero chegar diante de ti,
e olharás minha longa cabeleira,
minhas faces esvoaçantes,
meus olhos incolores
e adivinharás que atravessei
os limites do eterno.
Ó esta noite todas as luzes estarão veladas pelo sono,
todos os silêncios serão devorados
pela eternidade,
todas as chagas ressurgirão das dores,
todos os olhos estarão desmesuradamente abertos
mas não poderemos sentir
a Sua presença
porque então passamos à pátria das essências.
Esta noite chegarei diante de ti,
nossas almas se confundirão na grande viagem,
nossos olhos se alongarão ao paraíso dos símbolos
onde nasce o grande mar das almas moribundas.
Chegarei sobre a tranquilidade dos teus cânticos
e te assombrarás com este vulto notívago de morto
que se suspende milagrosamente além dos tempos
e que conduz as asas multicores
no derradeiro voo das espécies.
Ó sim sou eu por sobre as nebulosas,
fantasma que povoa quatro mundos,
imagem perdida e mais tarde encontrada
no limitado céu da poesia.
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HELENA

Da tristeza e da alegria
Somente Helena sabia,
Sabia porque sabia
do bordel à Eucaristia.
Sabia porque sabia
que a noite clareia o dia.

De tantas e tontas coisas
Sabia Helena sabia.
Regando seus muitos sonhos
penteando a maresia
lavando léguas de lodo
no limbo da poesia.

E assim costurava o caos
com a linha da fantasia
a nossa Helena dos bares
aquela que mais sabia
que sabendo se lembrava
e lembrando se esquecia.


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