SERÃO DO MENINO POBRE
Na sala pobre da casa da roça
papai lia os jornais atrasados.
Mamãe cerzia minhas meias rasgadas.
A luz frouxa do lampião iluminava a mesa
e deixava nas paredes um bordado de sombras.
Eu ficava a ler um livro de histórias impossíveis
— desde criança fascinou-me o maravilhoso.
Às vezes, Mamãe parava de costurar
— a vista estava cansada, a luz era fraca,
e passava de leve a mão pelos meus cabelos,
numa carícia muda e silenciosa.
Quando Mamãe morreu
o serão ficou triste, a sala vazia.
Papai já não lia os jornais
e ficava a olhar-nos silencioso.
A luz do lampião ficou mais fraca
e havia muito mais sombra pelas paredes...
E, dentro em nós, uma sombra infinitamente maior.
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CENA DE UMA RUA AFASTADA
Para Martins de Almeida
A solteirona fechou as janelas com estrépito.
Uma mocinha da escola normal passou firme, sem olhar.
Um senhor gordo disse que era uma pouca vergonha
e que nossa polícia não vigiava os costumes.
Mas, indiferentes aos gritos dos carroceiros,
às pedradas dos garotos,
a lulu de D. Mariquinhas e o fox-terriê
[ (meio sangue) do sr. Fagundes
continuaram impudicos no meio da rua.
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MINHA NAMORADA
Seu nome era besta e ela também
mas quase não falava e só sabia olhar.
Gostei dela
fiz versos puxados
gastei tempo nas rimas raras
e na colocação de pronomes
porque ela era normalista
e gostava de gramática e não perdoava galicismos.
Mas um dia ela descobriu meus versos modernos
e percebeu que fingia
e gostava de errar nos pronomes
e que meus sonetos eram só pra ela.
Então me deu o fora e arranjou um poeta sincero
que a comparava a Marília
e que sabia de cor a "Ceia dos Cardeais"
e que sapecava todos os ritmos novos
e as poesias sem geometria e compasso.
E ficavam cinicamente amando no portão
quando não iam ao cinema delirar com as fitas
[ dramáticas italianas 12 atos.
Ela me deu o fora.
Também nunca mais fiz sonetos.
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SANATÓRIO
Logo, quando os corredores ficarem vazios,
e todo o Sanatório adormecer,
a febre dos tísicos entrará no meu quarto
trazida de manso pela mão da noite.
Então minha testa começará a arder,
todo meu corpo magro sofrerá.
E eu rolarei ansiado no leito
com o peito opresso e de garganta seca.
Lá fora haverá um vento mau
e as árvores sacudidas darão medo.
Ah! os meus olhos brilharão procurando
a Morte que quer entrar no meu quarto.
Os meus olhos brilharão como os da fera
que defende a entrada do seu fojo.
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Ascânio Lopes Quatorzevoltas nasceu em Ubá (MG), em 1906, mas foi criado em Cataguases, onde faleceu, em 1929. O poeta transferiu-se para Belo Horizonte em 1925, onde cursou a escola de direito. Em 1928, já doente, retornou a Cataguases.
Uma atividade marcante na curta vida de Ascânio Lopes foi sua participação no grupo que fundou a revista Verde, publicada em Cataguases 1927 e 1929. Publicação modernista, a Verde reunia jovens como o romancista Rosário Fusco e o poeta Guilhermino César. Cataguases era um polo de criação artística. Na mesma época, o cineasta Humberto Mauro, pioneiro do cinema brasileiro, havia montado na cidade sua produtora, a Phebo Sul America Film.
Modernista de primeira hora, Ascânio Lopes se correspondia com Mário de Andrade e escrevia poesia, prosa, ensaio. Seus versos, como não podia deixar de ser, têm muitos traços do modernismo anos 20. O poema "Serão do Menino Pobre" até lembra o lirismo drummondiano de "Infância" (de Alguma Poesia, 1930). Ascânio: "Na sala pobre da casa da roça / papai lia os jornais atrasados. / Mamãe cerzia minhas meias rasgadas." Drummond: "Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia."
Em textos como "Cena de Uma Rua Afastada" e "Minha Namorada", Ascânio Lopes mostra a irreverência da fase heroica do modernismo, com uma irresistível inflexão para o poema-piada. No primeiro, trata de um tema que jamais poderia ser motivo de poema nos padrões tradicionais. No outro, numa ironia bem ao estilo do "Desafinado" bossa-novista, queixa-se de uma namorada normalista que colocava bem os pronomes e detestava versos modernos.
Em "O Chefe", o poeta se volta para a crítica aos desmandos dos potentados interioranos. Por fim, vem a nota mais doída. É a crônica amarga de um jovem que se vê definhar num hospital sem esperança de cura. "Sanatório", poema autobiográfico, é a página mais citada de Ascânio Lopes.
Com a morte do poeta, a revista Verde se dissolveu. Os remanescentes publicaram ainda um último número, exatamente para homenagear o amigo morto. Sobre Ascânio escreveram nomes como Mário de Andrade, Antonio de Alcântara Machado e Carlos Drummond de Andrade.
Em vida, Ascânio Lopes publicou apenas um livro, chamado Poemas Cronológicos (1928). Ao todo, sua obra resume-se a 48 poemas, um fragmento de novela, três ensaios e quatro resenhas. Todo esse material, mais outros documentos sobre o autor, está reunido no volume Ascânio Lopes – Todos os Possíveis Caminhos, do romancista cataguasense Luiz Ruffato.
Carlos Machado
Uma atividade marcante na curta vida de Ascânio Lopes foi sua participação no grupo que fundou a revista Verde, publicada em Cataguases 1927 e 1929. Publicação modernista, a Verde reunia jovens como o romancista Rosário Fusco e o poeta Guilhermino César. Cataguases era um polo de criação artística. Na mesma época, o cineasta Humberto Mauro, pioneiro do cinema brasileiro, havia montado na cidade sua produtora, a Phebo Sul America Film.
Modernista de primeira hora, Ascânio Lopes se correspondia com Mário de Andrade e escrevia poesia, prosa, ensaio. Seus versos, como não podia deixar de ser, têm muitos traços do modernismo anos 20. O poema "Serão do Menino Pobre" até lembra o lirismo drummondiano de "Infância" (de Alguma Poesia, 1930). Ascânio: "Na sala pobre da casa da roça / papai lia os jornais atrasados. / Mamãe cerzia minhas meias rasgadas." Drummond: "Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia."
Em textos como "Cena de Uma Rua Afastada" e "Minha Namorada", Ascânio Lopes mostra a irreverência da fase heroica do modernismo, com uma irresistível inflexão para o poema-piada. No primeiro, trata de um tema que jamais poderia ser motivo de poema nos padrões tradicionais. No outro, numa ironia bem ao estilo do "Desafinado" bossa-novista, queixa-se de uma namorada normalista que colocava bem os pronomes e detestava versos modernos.
Em "O Chefe", o poeta se volta para a crítica aos desmandos dos potentados interioranos. Por fim, vem a nota mais doída. É a crônica amarga de um jovem que se vê definhar num hospital sem esperança de cura. "Sanatório", poema autobiográfico, é a página mais citada de Ascânio Lopes.
Com a morte do poeta, a revista Verde se dissolveu. Os remanescentes publicaram ainda um último número, exatamente para homenagear o amigo morto. Sobre Ascânio escreveram nomes como Mário de Andrade, Antonio de Alcântara Machado e Carlos Drummond de Andrade.
Em vida, Ascânio Lopes publicou apenas um livro, chamado Poemas Cronológicos (1928). Ao todo, sua obra resume-se a 48 poemas, um fragmento de novela, três ensaios e quatro resenhas. Todo esse material, mais outros documentos sobre o autor, está reunido no volume Ascânio Lopes – Todos os Possíveis Caminhos, do romancista cataguasense Luiz Ruffato.
Carlos Machado
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