sábado, 17 de setembro de 2022

Fernando Sabino (O improvável retorno)


— Você vai sair? — perguntava ela, apreensiva, ao vê-lo apanhar o paletó depois do jantar.

— Sair um pouco, dar uma volta.

— Mal acabou de chegar...

— Vou encontrar um amigo, conversar um pouco.

— Por que não traz seu amigo para conversar aqui?

Ele saía sem responder. Uma noite, afinal, ela protestou:

— Hoje não quero que você saia.

— Por quê? — espantou-se ele.

— Porque toda noite é isso, eu não aguento mais! — e ela começou a chorar: — Não aguento mais, fico com saudade de você.

— Mas que bobagem é essa? — e ele procurava acalmá-la, com um gesto de carinho: — Dou uma volta para espairecer, tomo um café, volto logo para casa. Que é que tem isso de mais?

— Hoje eu não quero! — insistiu ela: Hoje você não sai.

Ele sorriu, condescendente, e se dirigiu para a porta — ela cortou-lhe os passos:

— Eu vou com você.

— Você nem está vestida para sair, vai se demorar... Daqui a pouco estou de volta, que diabo.

Como resposta, ela torceu a chave da porta e retirou-a:

— Neste caso, você também não sai.

— Deixa de bobagem e me dá essa chave.

— Não dou.

— Me dá essa chave! — repetiu ele, já trêmulo de raiva.

Ela se esquivou, vitoriosa, foi estender-se no sofá.

— Olha! — insistiu ele, procurando se conter: — Se você não abrir esta porta, vai se arrepender. Eu saio de casa e nunca mais volto, entendeu?

— Não abro. Quero ver você sair.

— Ah, quer ver?

Ele se voltou, caminhou com decisão até a janela, subiu no parapeito. Olhou-a ainda uma vez, fez um gesto de adeus e saltou na escuridão.

Ela deu um grito de horror e se precipitou também até a janela, olhou para a rua, alguns metros abaixo. Teve tempo de vê-lo se erguer com dificuldade e afastar-se arrastando a perna até dobrar a esquina.

Os dias se passavam e ela não tinha dele a menor notícia. Como ele não voltasse, pôs luto fechado, nunca mais saiu. Dias, meses, anos — envelhecia ali, sozinha naquela casa, e não tolerava que se mudasse nada de lugar, que se mexesse nas coisas dele. Os sobrinhos iam visitá-la, ficavam impressionados:

— Titia, a senhora vivendo aqui tão sozinha, por que não vem morar conosco?

— Quero que ele me encontre aqui quando voltar.

Os amigos e parentes concordavam que o tio sempre fora meio esquisito, esquivo, caladão, jamais voltaria. Se ainda estivesse vivo já se teria arranjado por aí noutro lugar, com outra mulher.

Cinco anos, dez, vinte — vinte e cinco anos! Ela acabara de completar cinquenta, quando um dia teve afinal a primeira notícia dele. Notícia vaga, imprecisa, mas notícia: alguém que chegara do Rio Grande do Sul lhe falou de um fazendeiro com o mesmo nome — falou casualmente, sem saber da história, e ela se acendeu: só podia ser ele, o nome não era tão comum assim. Ficou sabendo que ele tinha ido para o Uruguai, casara-se, tivera filhos, enviuvara e afinal viera terminar com uma fazenda de gado na fronteira. Ela se pôs a escrever cartas sigilosas a quem quer que lhe desse, naquela região, maiores informações. Escreveu-lhe diretamente, ele não respondeu. Tornou a escrever — mandava-lhe cartões no seu aniversário, no Natal.

Chegou enfim uma resposta — algumas linhas lacônicas, porém amigas. Depois de mais alguma troca de cartas, ficou estabelecido que ele voltaria. E voltou. Calado, envelhecido, arrastando a perna que fraturara na queda vinte e cinco anos antes, reinstalou-se na casa como se dali jamais houvesse saído. Ela se enfeitara toda para recebê-lo — discretamente os dois procuravam ignorar as marcas que o tempo lhes impusera. A princípio ela o tratou com silencioso desvelo, buscando cativá-lo pela discrição com que aceitava o silêncio dele sobre tantos anos de ausência.

E agora ele já não fazia tanta questão de sair à noite — em geral, depois do jantar ficava no sofá fumando cachimbo e vendo televisão. Ela tricotava feliz — de vez em quando levantava os olhos e o olhava com amor.

Dois meses se passaram, até que uma noite ela se arriscou a perguntar mansamente, desta vez sem levantar os olhos:

— Ela era bonita?

— Ela quem? — estranhou ele.

— Sua mulher. Eu soube que você se casou com outra, teve filhos, enviuvou…

Ele não respondeu. Mas a essa se seguiram outras perguntas — até que um dia ele, inesperadamente, tornou a sair de casa (pela porta) para nunca mais voltar.

Ela tornou a vestir luto e, a casa sempre arrumada, continua obstinadamente a esperar a sua volta.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

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