Um dos grandes prazeres de minha infância de diabruras era pegar carona. Mas, como assim? O lance era o seguinte: Qualquer caminhão que passasse pelo bairro, na época todo feito, todo trabalhado em esburacadas ruas de chão e terra socada, era um convite, um chamariz tocado à diesel, um poleiro convidando os frangos que éramos.
A melhor das caronas era a usufruída nos caminhões de pipa d’água: Sua carga balouçante e pesada lhes impedia de andarem muito rápido, e somado a isso o caminhão tinha para-choques e poleiros como que feitos especialmente para que alguém neles se pendurasse. Coisa de design e ergometria, fui aprender anos depois. Ou não. Bem, o importante era a diversão.
E quando um caminhão vinha em nossa direção, enquanto saracoteávamos tranquilamente pela rua, e ao passar por nós víamos que já havia um ou mais moleques pendurados na traseira? Ohh! Aquilo era tomado na conta dos ultrajes, afinal ninguém poderia dar uma festa sem nos convidar. E lá íamos nós também.
Havia mesmo uma apurada técnica para escaparmos das vistas dos motoristas e ajudantes, alguns já tarimbados em lidar com aquilo. Passando pelo caminhão, continuávamos em frente, jamais observando-o diretamente ou demonstrando qualquer agitação. Alguns passos adiante, do canto da rua andávamos para o centro da mesma, até atingir o delicioso “ponto cego”, centralizados bem atrás do caminhão e ficando invisíveis aos espelhos retrovisores. Neste momento dávamos meia volta e literalmente voávamos em disparada, para agarrar nas ferragens.
Outra carona muito praticada era a realizada nas portas dos ônibus. Naqueles tempos, os ônibus possuíam um balaústre (espécie de apoio ou corrimão) para o lado de fora das portas – o que nos modelos posteriores foi sabiamente alterado, ficando agora do lado de dentro das mesmas, e sendo expostos apenas quando as portas se abrem.
Pois bem, aquelas duas “asas” para fora dos ônibus eram um convite para nos agarrarmos ali, equilibrando os pés nos sopés das portas. Íamos para a loja da Popó Piscinas, início da rua principal do bairro, e assim que o ônibus entrava, lá íamos nós agarrados, curtindo o vento nas fuças até a nossa rua. A Anarquia era deusa celebrada naqueles idos e sofridos: alguns dos motoristas já nem ligavam. Mas outros, furiosos, paravam o ônibus ou pior, aceleravam à toda, sacolejando a chulapa de ferro e lata para ver se desistíamos – ou caíamos, catapultados pelo tremelique do navio pirata.
O ônibus que atendia ao bairro fazia a linha 17, da empresa Icaraí (hoje ABC), que cumpria o trajeto entre os bairros de Maria Paula a Jardim Catarina. Ainda hoje a linha existe, mas agora passa por uma outra rua. As más línguas dizem que eu ajudei a remover o ônibus de nosso bairro, de tantos vidros que quebrei. Mas deixemos esses comentários venenosos para os maledicentes.
Quanto às caronagens clandestinas nas portas dos ônibus, eu e Renato éramos ali os talvez mais hábeis praticantes desse esporte radical e suburbano – atletas de ponta, campeões irreconhecidos dum esporte hoje proscrito pelo duro julgamento da lei.
Bem, certa feita as coisas não saíram como o corriqueiro. A atividade caronística tinha seus riscos, que eram algo calculados: O ônibus, ainda que o motorista acelerasse, geralmente parava de uma a quatro vezes bairro adentro, para descarregar passageiros, isso apenas até chegar em nossa rua, situada no quarto “ponto”. Dali em diante, por sinal, não havia iluminação pública, e ainda por cima as casas escasseavam, num “vácuo” humano que ia por quilômetros até o distante bairro de Maria Paula, já na fronteira com o município de Niterói, onde tal linha de ônibus tinha seu ponto final. Assim, de maneira alguma poderíamos passar de nossa rua, sob risco de nos vermos, em plena noite, “perdidos” e sozinhos bem longe de casa.
A boa etiqueta recomendava que descêssemos ao menos na segunda parada, por via das dúvidas. Pois vai que ninguém descesse nas seguintes? Mas nessa noite fatídica, após apanharmos nossa democrática condução, notamos que o motorista já iniciara a acelerar desde o primeiro ponto. Passou um ponto e ninguém descera, outro e nada... Chegamos no terceiro e igualmente ninguém puxou a “cigarra”, a campainha para descer do veículo. Eu e Renato ficamos preocupados. Enquanto aproximava-se de nosso limite, o ponto que dava para nossa “rua”, notamos que o miserável acelerava ainda mais – talvez já nos conhecesse! Vendo que ninguém iria descer, que o carroção tremia em solavancos cada vez maiores, e que acabaríamos lá em Maria Paula ou coisa pior, Renato, meu sinistro mestre, nãos se fez de rogado: Pulou dentro de uma fossa de esgotos que margeava certo trecho da rua! Enquanto avançava agarrado com força àquela porta, ainda pude ver o bitelão se levantando da lama, todo “borrado”. Mesmo em desgraça, encontrei tempo de gargalhar e gritar, caçoando do “espertalhão medroso”, que confirmava a fama de “Cascão”!
Entretanto, poucos metros adiante era o limite, a linha vermelha entre a civilização e o breu total. Tentei pensar o mais rápido que pude, ao ver que naquele último ponto ninguém desceria mesmo, e o satanáquia do motorista só fazia acelerar. Foi só então que me ocorreu que não havia mais fossas de esgoto. Ou moitas e matagais. Era apenas chão. Chão duro, compactado, coberto de esfoliante cascalho. Agora em mortal desespero, qual Ícaro de desfeitas asas, foi naquele chão que me joguei.
Não me lembro bem como foi o impacto. Bem, nem bem, nem mal. Testemunhas dizem que capotei pelo chão como um dublê de filmes de ação. Como de nada recordo, devo ter desmaiado na primeira pancada. O resto foi por conta e divertimento da lei da gravidade...
Acordei com algumas pessoas sobre mim, me abanando. Uma, a irmã de Renato, Rosana, correu imediatamente para avisar meus pais – o que me fez tentar levantar-me para detê-la, possuído de ódio e medo, pois eu tomaria mais uma coça, uma surra homérica! Ela não se comoveu, que não era disso, nem eu tive forças: e lá vieram meus pais. Jogado nos bancos de um Fusca ou Brasília, fui levado às pressas até um hospital para o raio-x rotineiro. Nada quebrara, por sorte.
Nos dias seguintes, aquele de quem ri, o que se jogara na maciez pútrida de uma vala, me zoou como a um asno, dizendo que eu preferira me jogar no chão duro e “apagara” como um pavão ou heroína de novela das sete.
E eu aprendera mais uma lição de meu mestre de presepadas…
A melhor das caronas era a usufruída nos caminhões de pipa d’água: Sua carga balouçante e pesada lhes impedia de andarem muito rápido, e somado a isso o caminhão tinha para-choques e poleiros como que feitos especialmente para que alguém neles se pendurasse. Coisa de design e ergometria, fui aprender anos depois. Ou não. Bem, o importante era a diversão.
E quando um caminhão vinha em nossa direção, enquanto saracoteávamos tranquilamente pela rua, e ao passar por nós víamos que já havia um ou mais moleques pendurados na traseira? Ohh! Aquilo era tomado na conta dos ultrajes, afinal ninguém poderia dar uma festa sem nos convidar. E lá íamos nós também.
Havia mesmo uma apurada técnica para escaparmos das vistas dos motoristas e ajudantes, alguns já tarimbados em lidar com aquilo. Passando pelo caminhão, continuávamos em frente, jamais observando-o diretamente ou demonstrando qualquer agitação. Alguns passos adiante, do canto da rua andávamos para o centro da mesma, até atingir o delicioso “ponto cego”, centralizados bem atrás do caminhão e ficando invisíveis aos espelhos retrovisores. Neste momento dávamos meia volta e literalmente voávamos em disparada, para agarrar nas ferragens.
Outra carona muito praticada era a realizada nas portas dos ônibus. Naqueles tempos, os ônibus possuíam um balaústre (espécie de apoio ou corrimão) para o lado de fora das portas – o que nos modelos posteriores foi sabiamente alterado, ficando agora do lado de dentro das mesmas, e sendo expostos apenas quando as portas se abrem.
Pois bem, aquelas duas “asas” para fora dos ônibus eram um convite para nos agarrarmos ali, equilibrando os pés nos sopés das portas. Íamos para a loja da Popó Piscinas, início da rua principal do bairro, e assim que o ônibus entrava, lá íamos nós agarrados, curtindo o vento nas fuças até a nossa rua. A Anarquia era deusa celebrada naqueles idos e sofridos: alguns dos motoristas já nem ligavam. Mas outros, furiosos, paravam o ônibus ou pior, aceleravam à toda, sacolejando a chulapa de ferro e lata para ver se desistíamos – ou caíamos, catapultados pelo tremelique do navio pirata.
O ônibus que atendia ao bairro fazia a linha 17, da empresa Icaraí (hoje ABC), que cumpria o trajeto entre os bairros de Maria Paula a Jardim Catarina. Ainda hoje a linha existe, mas agora passa por uma outra rua. As más línguas dizem que eu ajudei a remover o ônibus de nosso bairro, de tantos vidros que quebrei. Mas deixemos esses comentários venenosos para os maledicentes.
Quanto às caronagens clandestinas nas portas dos ônibus, eu e Renato éramos ali os talvez mais hábeis praticantes desse esporte radical e suburbano – atletas de ponta, campeões irreconhecidos dum esporte hoje proscrito pelo duro julgamento da lei.
Bem, certa feita as coisas não saíram como o corriqueiro. A atividade caronística tinha seus riscos, que eram algo calculados: O ônibus, ainda que o motorista acelerasse, geralmente parava de uma a quatro vezes bairro adentro, para descarregar passageiros, isso apenas até chegar em nossa rua, situada no quarto “ponto”. Dali em diante, por sinal, não havia iluminação pública, e ainda por cima as casas escasseavam, num “vácuo” humano que ia por quilômetros até o distante bairro de Maria Paula, já na fronteira com o município de Niterói, onde tal linha de ônibus tinha seu ponto final. Assim, de maneira alguma poderíamos passar de nossa rua, sob risco de nos vermos, em plena noite, “perdidos” e sozinhos bem longe de casa.
A boa etiqueta recomendava que descêssemos ao menos na segunda parada, por via das dúvidas. Pois vai que ninguém descesse nas seguintes? Mas nessa noite fatídica, após apanharmos nossa democrática condução, notamos que o motorista já iniciara a acelerar desde o primeiro ponto. Passou um ponto e ninguém descera, outro e nada... Chegamos no terceiro e igualmente ninguém puxou a “cigarra”, a campainha para descer do veículo. Eu e Renato ficamos preocupados. Enquanto aproximava-se de nosso limite, o ponto que dava para nossa “rua”, notamos que o miserável acelerava ainda mais – talvez já nos conhecesse! Vendo que ninguém iria descer, que o carroção tremia em solavancos cada vez maiores, e que acabaríamos lá em Maria Paula ou coisa pior, Renato, meu sinistro mestre, nãos se fez de rogado: Pulou dentro de uma fossa de esgotos que margeava certo trecho da rua! Enquanto avançava agarrado com força àquela porta, ainda pude ver o bitelão se levantando da lama, todo “borrado”. Mesmo em desgraça, encontrei tempo de gargalhar e gritar, caçoando do “espertalhão medroso”, que confirmava a fama de “Cascão”!
Entretanto, poucos metros adiante era o limite, a linha vermelha entre a civilização e o breu total. Tentei pensar o mais rápido que pude, ao ver que naquele último ponto ninguém desceria mesmo, e o satanáquia do motorista só fazia acelerar. Foi só então que me ocorreu que não havia mais fossas de esgoto. Ou moitas e matagais. Era apenas chão. Chão duro, compactado, coberto de esfoliante cascalho. Agora em mortal desespero, qual Ícaro de desfeitas asas, foi naquele chão que me joguei.
Não me lembro bem como foi o impacto. Bem, nem bem, nem mal. Testemunhas dizem que capotei pelo chão como um dublê de filmes de ação. Como de nada recordo, devo ter desmaiado na primeira pancada. O resto foi por conta e divertimento da lei da gravidade...
Acordei com algumas pessoas sobre mim, me abanando. Uma, a irmã de Renato, Rosana, correu imediatamente para avisar meus pais – o que me fez tentar levantar-me para detê-la, possuído de ódio e medo, pois eu tomaria mais uma coça, uma surra homérica! Ela não se comoveu, que não era disso, nem eu tive forças: e lá vieram meus pais. Jogado nos bancos de um Fusca ou Brasília, fui levado às pressas até um hospital para o raio-x rotineiro. Nada quebrara, por sorte.
Nos dias seguintes, aquele de quem ri, o que se jogara na maciez pútrida de uma vala, me zoou como a um asno, dizendo que eu preferira me jogar no chão duro e “apagara” como um pavão ou heroína de novela das sete.
E eu aprendera mais uma lição de meu mestre de presepadas…
Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
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